Jaime Serra. Uma conversa e quatro livros sobre um tempo em que conspira a amnésia


Estamos nas vésperas da Festa do Avante. Se lá for e entrar no pavilhão do livro, pode ser que veja os livros de Jaime Serra. Nuno Ramos de Almeida explica-   -lhe porque os deve ler. Um texto que parte de uma conversa com um operário que se formou numa altura em que os operários queriam…


Estamos nas vésperas da Festa do Avante. Se lá for e entrar no pavilhão do livro, pode ser que veja os livros de Jaime Serra. Nuno Ramos de Almeida explica-   -lhe porque os deve ler. Um texto que parte de uma conversa com um operário que se formou numa altura em que os operários queriam aprender a língua universal para falar com o mundo. A sua vida daria muitos filmes. Há de tudo: fugas audaciosas, prisões, travessias em tempestades, luta armada e muita abnegação e trabalho clandestino

Chegou à sede do Partido Comunista Português, na Soeiro Pereira Gomes, pontualmente. Eu já tinha tirado a credencial de jornalista que me dava acesso ao R/C. Fomos para a sala do fundo, onde normalmente os dirigentes comunistas dão entrevistas. Na parede, serigrafias neo-realistas, talvez um Cipriano Dourado ou coisa assim. A última vez que tinha falado com Jaime Serra tinha sido para um documentário sobre Álvaro Cunhal, há mais de 15 anos. O tempo passou e deixou marcas. Está com 94 anos, já não tem aquele ar forte que mantinha aos 70 e muitos, mas o olhar continua vivo e astuto. Pede-me que lhe diga o nome. Digo. Repito. “Ramos de Almeida é alguma coisa ao Pedro Ramos de Almeida?” “Sou filho”, respondo. “Como está o seu pai?” “Morreu”, retorqui. Silêncio. Começamos a conversa. E à medida que o tempo passa a sua fala vai ganhando a vivacidade de sempre.

Quando fez 74 anos, o filho José escreveu-lhe uma carta a pedir-lhe que lhe contasse a sua vida. Tinham crescido, por causa da clandestinidade, longe do pai e da mãe, e sabiam das opções políticas do pai mas queriam compreender e conhecer a sua vida. Só depois do 25 de Abril de 74 a família se tinha juntado toda à volta da mesma mesa. “É frequente questionar-me sobre as prioridades da vida, o que é de facto mais importante, como distinguir o essencial e encontrar o equilíbrio. A verdade é que todos os dias fazemos opções de vida. Tu também fizeste as tuas. Que têm dado origem à caminhada que tens feito. Das tuas opções resultou que a nossa família ficou dispersa. Hoje tens seis netos que nada conhecem da tua vida e quatro filhos que, além dos ideias e da luta a que te entregaste, pouco sabem das tuas opções, dúvidas e crenças mais profundas”, escrevia o filho José Serra. Foi em resposta a essa carta que Jaime Serra escreveu “Eles têm o direito de saber” e mais três livros que se seguiram.

A nossa conversa começa pela família. O pai de Jaime Serra morreu muito cedo, teria ele pouco mais de dez anos. Pergunto-lhe se tem memória dele. Fala-me do pai, que nasceu no lugar do Pezinho. Conta-me que foi com a mulher e com dois filhos para Lisboa para tentarem uma vida melhor. Aqui conseguiu um trabalho de descarregador de mar. O pai era simpatizante dos anarcossindicalistas, em casa recebiam “A Batalha” e havia literatura revolucionária. Foi muito jovem que Jaime Serra começou a ler. “Com 12 anos já tinha lido o “Germinal” e o “Trabalho” de Zola, e tudo o que apanhava à mão”, diz. É também na infância, na companhia do pai, que se lembra de ter tido consciência dos combates e das divisões sociais em que o mundo e a sua vida estavam mergulhadas.

O pai, Joaquim Eleutério, era membro da Associação de Classe dos Trabalhadores do Tráfego do Porto e de Lisboa. Participava activamente nas greves e nas lutas. Serra lembra-se de um dia ter visto o pai enrolar um cavalo marinho à da cintura e dizer-lhe: “É por causa dos amarelos [os fura-greves].”

É na sequência de uma greve prolongada que o pai de Serra se vê compelido a arranjar outro sustento. Tinha mulher e quatro filhos para alimentar. Pediu dinheiro emprestado e começou a vender, ele e toda a família, cabazes de fruta. A coisa foi crescendo, embora a fome em casa fosse tanta que às escondidas os filhos lhe comiam parte da mercadoria. Mas a necessidade era grande e da fruta passaram para os panos – esses ao menos não eram comidos. Mas a aventura comercial não teve um final feliz. Ao levar uma carroça, José Eleutério tem um acidente, é hospitalizado e morre com 41 anos, deixando mulher e quatro filhos menores.

Jaime vê-se obrigado a abandonar os estudos e a ir trabalhar. Aos 12 anos um vizinho arranja-lhe lugar numas obras no Barreiro. Carregava tijolos e argamassa e dormia no barracão das obras. “O primeiro ano que passei foi muito rigoroso, dormia dentro de uma banheira de pedra com um pouco de palha a servir de colchão. Só mais tarde tive direito a ocupar uma tarimba”, escreve no “Eles Têm o Direito a Saber”. No estaleiro o almoço era sempre bacalhau e batatas. Comeu durante três anos bacalhau com batatas todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Pergunto-lhe se ainda consegue comer bacalhau. Sorri-me e diz: “Gosto muito de bacalhau.”

Foi no barracão das obras em que dormia que conheceu o primeiro comunista. Era de Porto Brandão e levou Serra a frequentar a biblioteca dos Penicheiros, no Barreiro. Assistiu também a aulas de esperanto, um projecto de língua universal que tinha muita popularidade em sectores da classe operária. Sinto curiosidade por esta gente que queria ler, aprender línguas universais que dariam as palavras a um mundo sem fronteiras e que tentavam conhecer as matemáticas, a física e tudo o que acontecia de mais moderno no mundo. Falo-lhe de uma conversa que tive com Dias Loureço que me dizia que usou a prisão para aprender álgebra e alemão. Era uma forma de sair dos limites da classe em que nasceram? Jaime Serra contesta-me e diz-me que tem muito orgulho em ser da classe operária, mas, tal como tinha consciência de que o seu trabalho criava riqueza, achava que tinha o direito de conhecer o melhor do mundo. O conhecimento era uma forma de libertação.

Na sequência da revolta do 18 de Janeiro, a PIDE e a GNR vão prender às oficinas da CP, do Barreiro, um dirigente sindical. Os operários, alertados para a prisão, tocam as sirenes, revoltam-se e cercam as forças policiais exigindo a libertação do camarada. Os operários das redondezas incorporam-se no protesto. Serra larga o trabalho e participa na revolta de tal forma que conta no seu primeiro livro que um engenheiro da CP olha para ele e lhe diz: “Então, pequeno e já andas no pica-pica a incitar os mais velhos?”

Com o fim do trabalho começa a militar no PCP, em 1935. A revolta dos marinheiros em 1936, quando os revoltosos tentam sublevar os navios de guerra e levá-los a combater ao lado da República espanhola, que se defrontava contra o exército franquista sublevado e apoiado pela Alemanha nazi e pela Itália fascista, apanha Jaime Serra a caminho do trabalho, uma obra perto do forte e do Duque. Vê os preparativos militares e é aí que ouve os primeiros disparos da artilharia de costa contra os barcos tomados pelos marinheiros da Organização Revolucionária da Armada, ligada ao PCP.

A sua primeira prisão dá-se nas vésperas de fazer 16 anos; o aniversário passa-o preso. “Estava a distribuir Avantes e fui ter a uma taberna à noite para dar um a um camarada. Como estávamos na altura da Guerra Civil de Espanha, a polícia fazia rusgas frequentes. Fui revistado. Quando viram o “Avante!” mandaram–me para o Governo Civil de Lisboa. Durante uns dias bateram-me, para explicar como tinha o jornal. Respondi-lhes sempre a mesma coisa: tinha apanhado o jornal do chão e levei-o para casa para ler. Mandaram-me para casa com o aviso de que era má ideia deixar-me apanhar outra vez.

Depois da prisão passou vários meses sem trabalhar. Mudou de profissão, por influência de Alfredo Diniz (Alex), posteriormente assassinado pela PIDE, matricula-se num curso nocturno da Escola Industrial Marquês de Pombal. Em 1939, depois de estar na equipa de construção de uma lancha da Marinha de Guerra, concorre para o arsenal do Alfeite e é admitido. Ajuda a organizar a célula clandestina do PCP no Arsenal, que tinha mais de 50 militantes e distribuía 100 exemplares do “Avante!” clandestino, entre os mais de 3 mil trabalhadores. É nesse período que começa a viver com a Laura, a sua companheira de sempre.

Em 1945 dão-se por muitas cidades do país as manifestações que assinalam a vitória dos Aliados sobre os exércitos nazis. Nas fábricas os operários saem com bandeiras dos Aliados e muitos paus sem pano, a simbolizar a bandeira vermelha da foice e do martelo da União Soviética. Na sequência dessas acções de massas e do crescimento da revolta contra o regime é criado o MUD (Movimento de Unidade Democrática) e muitos comunistas passam a ser referenciados pelas autoridades, dadas estas actividades paralegais. O crescimento do movimento obriga os poucos funcionários clandestinos do PCP a intensificarem o trabalho. É nesse contexto que é assassinado Alex (Alfredo Diniz), pela PIDE, na estrada de Bucelas, quando se deslocava de bicicleta a caminho de uma reunião clandestina. Em várias fábricas de Lisboa, os operários afluíram ao Hospital de São José, onde o corpo estava depositado na morgue. Depois das greves de 1947, Serra está referenciado pela polícia e tem de passar para a clandestinidade. A segunda filha de Jaime Serra, Olga Maria, nasce em 1948 na clandestinidade. O parto foi assistido pela mãe de Serra.

Em 1949, todo o secretariado do PCP é preso: Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro vão parar à prisão. Durante esse processo repressivo Jaime Serra tem a sua prisão. “Aí já não havia desculpa de ter apanhado o “Avante!” no chão. Recusei- -me a fazer qualquer declaração. Nada. Puseram-me imediatamente a fazer de “estátua” [tortura em que os detidos eram obrigados a ficar longos períodos em pé imobilizados, e quando se mexiam eram espancados]. Quando acabou, tinha as pernas tão inchadas que não conseguia tirar as botas, tiveram de ser cortadas com uma faca.” Como era possível não falar na tortura? “O que nos aguentava eram as convicções e não querermos que outros dos nossos passassem pela mesma coisa.” Durante meses ficou nos calabouços do Aljube, à espera das sessões de tortura, em que o inspector da PIDE Gouveia profetizava que ia “vergar”. Tal não aconteceu.

Foi transferido para Peniche, e daí consegue fugir em 1950, na companhia de Francisco Miguel (Chico Miguel) que é recapturado. Volta a ser preso em 1956 e 1958. Tenta fugir uma vez. É apanhado. E foge mais duas vezes, a última das quais, em 1960, na famosa fuga de Peniche na qual escapam vários elementos do PCP, entre os quais Álvaro Cunhal. Nunca mais é preso. “Como eram possíveis tantas fugas?”, interrogo-o. Com um olhar divertido, diz-me: “Tínhamos muito tempo para pensar nisso.” Acrescenta, mais sério, que a primeira tarefa de um revolucionário preso é tentar escapar. “E entre os presos tínhamos o tempo e a determinação para observar a vida na prisão, ver nas rotinas as fraquezas e preparar essa fuga.” O último livro que escreveu versa aliás essa experiência colectiva, “12 Fugas das Prisões de Salazar”.

Em 1952, Jaime Serra passa a fazer parte do comité central do PCP e posteriormente da comissão política. Tem um papel relevante no 5.o Congresso, o do chamado “desvio de direita” na história oficial do partido, em que apresenta com o nome de guerra Freitas, o relatório sobre política colonial e no 6.o Congresso, o único realizado no estrangeiro, em Kiev, em que Cunhal depois da fuga toma as rédeas do partido. Serra trabalhou com Júlio Fogaça e Cunhal. Sobre o primeiro é de poucas palavras, quase mudo.

Em 1962, entre várias tarefas, o partido encarrega-o da operação de fazer sair de Portugal os dirigentes dos movimentos de libertação Vasco Cabral e Agostinho Neto. Arranja um barco para essa acção e, no meio de uma tempestade, em que Serra tem de abrir o motor à machadada, conseguem desembarcar os dois com as famílias em Marrocos. “Chegou a ver Agostinho Neto depois?”, pergunto-lhe. “Alguma vez lhe perdoou a tempestade [risos].” “Sim, vi-o em Portugal, tanto me desculpou que me convidou para visitar Angola. Infelizmente morreu antes de eu concretizar a visita”, informa.

Em 1970 envia uma carta ao comité central defendendo as acções armadas contra o regime. Fica responsável pela criação da ARA (Acção Revolucionária Armada). Esta organização faz um conjunto de acções contra a máquina de guerra do regime: a bomba no paquete Cunene, a destruição de mais de 20 aeronaves da força área em Tancos, a interrupção das comunicações durante a reunião da NATO em Lisboa são algumas delas. Depois de uma vaga de repressão que atinge parte dos operacionais, o PCP decide, pela aproximação dos momentos eleitorais, em que o regime permitia uma maior acção da oposição legal, interromper as acções da ARA. Nessa repressão distinguiu-se um elemento do CC do PCP que trai o partido e começa depois da sua prisão a dar informações à PIDE. Augusto Lindolfo sofre um atentado, uma rajada de pistola-metralhadora. Ferido, sobrevive e é enviado pela PIDE para o estrangeiro. Pergunto a Jaime Serra se o atentado tinha sido feito pela PIDE, para que Lindolfo denunciasse mais gente, ou pelo partido. Já tínhamos, em anterior entrevista, conversado sobre isso. Sem nenhuma resposta. Desta vez Jaime Serra nega que tenha sido a PIDE. “Foi o partido?”, pergunto-lhe. Os olhos parecem responder mas mantém o silêncio. E depois diz: “Não interessa saber quem foi, até porque não resultou.”

O casal viveu na clandestinidade sem os filhos. Quando saiu para a União Soviética a última filha, Maria Armanda, e depois o mais novo, José, Serra e Laura acusam o duro golpe e protestam ao partido pela decisão. Pergunto como foi depois do 25 de Abril para recuperar a vida familiar. “Muito difícil. Há sequelas difíceis de curar. Mas tudo se faz com tempo e insistência”, justifica. Quando nos separamos à porta da Soeiro Pereira Gomes aborda-me uma última vez: “O teu pai também esteve na clandestinidade. Tu estiveste com ele?” “Sim”, sussurro envergonhado. Olha para mim: “Tempos difíceis.” Falando sinceramente, os meus e dos meus foram fáceis comparados com os de Jaime Serra. Quase turismo. É pena que a vida de muitos como ele se vá perdendo sem que as pessoas conheçam a sua história.