De repente, como um vento gelado que nos tolhe a caminhada matinal de um um dia de Inverno, alguém diz: «Morreu o Pelé», e a gente não acredita porque há muito tempo que o Regulador dos Universos lhe tinha passado, em papel azul de vinte cinco linhas e selo branco no fim, um documento oficial declarando a sua imortalidade. Depois houve alguém que começou a desconfiar que poderia haver algo de verdade naquela notícia sem sentido. No ano passado, um médico descarado diagnosticou-lhe um cancro no colón. E foi então que a dúvida se instalou no cérebro colectivo da Humanidade: E se nos mentiram? E se Pelé também pode morrer como se fosse um fulano qualquer, caixa de banco, passe no bolso, lendo as notícias no ecrã do telemóvel quando regressa a casa no metropolitano de fato amarrotado? Hoje, a grande mole dos seres pensantes, a mulditão que se arrastou para ver o seu cadáver exposto no centro do relvado de Vila Belmiro, campo do Santos que ele transformou num dos maiores clubes do mundo, limita-se a aceitar que às 15h27 do dia 29 de Dezembro de 2022, Edson Arantes do Nascimento partiu para a planície da eterna saudade. Há mesmo quem, vejam bem!, seja capaz de engolir a patranha de que foi assolado por uma falência múltipla de órgãos depois de um mês internado no_Hospital Israelita Albert Einstein, ali ao Morumbi, em São Paulo. Ah! Tanta ingenuidade… Mas agora, pergunto eu, há lá atestado de óbito que impeça Pelé de ficar vivo para sempre? Pelé o atleta, Pelé o campeão, Pelé o inimitável, Pelé o irrepetível, Pelé o melhor de todos os melhores de todos os tempos. Absolutamente impossível! Podem até tê-lo enterrado no Memorial Necrópole Ecuménica que não é isso que provará que esteja morto. Não. Era preciso conhecer Pelé e eu conheci bem Pelé. Ele está vivo e bem vivo. E quer é que a morte se quilhe. E eu estou com ele. Que se quilhe a morte!
Milhares e milhares de pessoas, mais de 230 mil, apresentaram-se no velório de Pelé e contribuíram para aquele logro. Os jornais e a televisão mentem-nos à descarada e bovinamente acreditamos? Eu vejo-o de peito erguido contra os italianos, em 1970, saltando por sobre as torres da catedral de Milão para fazer o golo de cabeça que abriu as portas da conquista do tri-campeonato para o Brasil e a posse definitiva da Jules Rimet. Se estivesse em Santos, no dia em que o enfiaram à força por debaixo de sete palmos de terra, invocaria todas as forças do universo que se juntaram nele e formaria uma barreira humana de contra-velório, de contra-funeral, que o carregasse em ombros cantando: «Não fiques para trás oh companheiro/É de aço esta fúria que nos leva/Para não te perderes no nevoeiro/Segue os nossos corações na treva». E Pelé estaria tão vivo como está!
Homem-Revolta!
Pelé era a revolta. Foi sempre a revolta. Revoltou-se contra as lágrimas do pai quando o Brasil perdeu o Mundial de 1950, no Maracanã, e foi pela vida fora ganhando Mundiais para oferecer a seu Dondinho. Vejam bem, no dia 7 de Setembro de 1956, aos 20 minutos da segunda parte, o Santos vencia o Corinthians por 5-0. Então, Lula, treinador do Santos, não teve dúvidas: tirou Del Vechio e fez entrar o menino que não completara ainda dezasseis anos. Por esses dias, Pelé já era Pelé, mas não muito. Havia quem o chamasse de Gasolina. Subiu ao relvado com a camisola nº 13. Quinze minutos decorridos, Raimundinho deu a bola para Tite e este passou a Pelé, à entrada da grande-área. Pelé deu um toque ligeiro, fez passar a bola por sobre a cabeça de um defesa e, apertado por outro, chutou por entre as pernas do guarda-redes adversário: o sexto golo de um encontro que o Santos venceria por 7-1.
Zaluar Torres Rodrigues: ficou para a história como o primeiro guarda-redes a sofrer um golo de Pelé. Abandonaria a carreira pouco depois. «No primeiro golo, Pelé já era um craque», afirmou certa vez. E mandou imprimir cartões de visita: Zaluar Rodrigues, o Primeiro Goleiro a Sofrer um Gol de Pelé. Depois desse viriam mais 1282, entre Santos, Cosmos e selecção do Brasil. Parece-vos contabilidade de alguém que está morto? Ele continua marcando golos, prestem atenção, sinto no ar a vibração daquele soco no firmamento à medida de corria e armava o salto feroz.
Eu! Eu! E eu!
Nelson Rodrigues foi o maior cronista de Pelé. Sabia tido sobre Edson e nunca li nada dele sobre a morte de Edson. Pelo contrário: «Ele tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimónias. Já lhe perguntaram: “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: “Eu”. Insistiram: “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé!» Só faltou perguntar também: Quem é o melhor goleiro do mundo? E Pelé não vacilaria: «Eu!» Porque até entre os postes era tão bom que chegou a jogar no Santos como titular da baliza. Como morre, então, um homem que sabe fazer tudo? Fazer tudo é igual a não morrer. Saber não morrer.
No dia 2 de Agosto de 1959, contra a Juventus de São Paulo, outro guarda-redes poderia ter mandado fazer um cartão de visita: Durval de Moraes, Goleiro que Sofreu o Melhor Golo de Pelé. Edson atravessou quatro adversários seguidos passando a bola por cima das suas cabeças antes de ir para a conclusão definitiva. «Atrás da risca do meio-campo, o Pelé já saiu em disparada», gabava-se Durval. «Eu gritei para o Julinho: “Olha o Cão, atenção!”. Eu chamava o Pelé de Cão… Pensei que o Julinho ia cortar de cabeça, mas o Pelé matou no peito, tirou a bola, já o encobriu… Depois foram os outros. Fiquei por último… Quando eu levantei, com a bola lá dentro, o Rei comemorando, aquela gritaria toda no estádio, o Clóvis estava debaixo do gol. Olhei para ele e disse: “Pô, como é que pode esse cara meter um gol assim, dessa maneira?” Ele me respondeu: “Esse aí é o Diabo em forma de gente!”»
Querem ver, agora, que o Diabo também não ´imortal. Não há quem morra a fazer o impossível. Caminhemos ao contrário, no anti-funeral e que ninguém fique para trás, oh companheiro! Recusemos a morte do eterno Pelé, recusemos a ordem de um ser divino porque não ninguém tão divino quanto ele. No cabeçalho desde obituário devia estar Edson Arantes do_Nascimento: 1940 – até ao nunca mais. E a massa de povo devolvê-lo-ia ao estádio, que é o seu lugar, e ao drible e ao golo, que são seus irmãos gémeos. Vamos! Caminhem comigo. Num instante seríamos milhões. «Aqueles que se percam no caminho/Que importa? Chegarão no nosso brado/Porque nenhum de nós anda sózinho/E até mortos vão a nosso lado». Ao lado do homem vivo que nos dizem ter morrido. Não mintam! Teimarei a afirmar que está vivo e bem vivo na vasta memória que abrange todos os génios de todas as artes.