As chitas estão de volta. Nasceu primeiro exemplar no Zambeze

As chitas estão de volta. Nasceu primeiro exemplar no Zambeze


Finalmente aconteceu. No mês tradicional das ofertas e oferendas, o delta do Zambeze tem um novo felino, a primeira chita registada na área, este século, depois dos grandes gatos terem desaparecido da região nos registos das grandes caçadas, no longínquo ano de 1905.


Fernando Lima*

no delta do Zambeze, Moçambique 

Finalmente aconteceu. No mês tradicional das ofertas e oferendas, o delta do Zambeze tem um novo felino, a primeira chita registada na área este século, depois dos grandes gatos terem desaparecido da região nos registos das grandes caçadas, no longínquo ano de 1905.

A equipa de conservação estacionada na Coutada 11 (C11), em Mungári Rio, no centro de Moçambique, tirou as primeiras fotos ao bebé chita no passado domingo, dia de Natal, depois de nas duas últimas semanas os movimentos controlados de uma fêmea translocada de Mabula, província do Limpopo (RSA), indicarem a permanência prolongada num lugar de vegetação espessa.

Foi uma penosa espera de 16 meses, depois das primeiras 13 chitas terem sido reintroduzidas no vale do Zambeze em 2021, a partir de África do Sul e do Malawi. Pelo caminho, sete exemplares foram dizimados pela caça furtiva e pelos leões. Apesar de serem os mais velozes felinos em África – 90 a 120 km/hora – a sua resistência é curta e não conseguem manter esta velocidade por mais de 60 segundos.

Não obstante a quarentena a que foram sujeitos no ano passado, os animais, depois de libertos com colares de GPS (Global Positioning System), empreenderam movimentos a grandes distâncias, não se fixando em grupos. “Uma das chitas foi recuperada perto da cidade da Beira (270km), dois animais avançaram até Inhaminga (90km)”, explica-me um dos responsáveis da C11. O que pode explicar também as dificuldades de acasalamento, segundo a bióloga Tamar Kendon.

Em setembro do ano passado foi feita uma nova tentativa de repovoamento. Oito grandes gatos foram soltos na C11 sem qualquer período de adaptação. “Soltura de choque”, uma tradução para “hard release”, numa tentativa de tentar fixar a uma área, núcleos de animais tradicionalmente muito solitários. Sem respostas definitivas, a equipa de conservação notou resultados mais positivos neste segundo grupo, nomeadamente a interacção entre machos e fêmeas. Como o período de gestação é habitualmente de 90-98 dias, “talvez apareçam bebés em dezembro”, disse-me esperançada Tamar Kendon quando estive na C11 no final de novembro.

A monitoria diária dos movimentos via satélite deu resultado. Habitualmente as chitas podem gerar até seis crias, mas no caso do dia 25, há apenas um registo.

As chitas são felinos muito esbeltos, uma espécie de grandes gatos de pernas alongadas, mas muito frágeis. São muito atacados por mabecos (cães selvagens), hienas e leões e não têm os mesmos “argumentos” para se defenderem. As crias são um alvo preferido dos predadores. Ao contrário dos leopardos, a espécie mais parecida com a chita, estes felinos gostam de habitar espaços abertos e desenvolvem grande parte da sua actividade de caça durante o dia. O leopardo é sobretudo um animal activo durante o período nocturno. Nas coutadas de caça, como é extremamente difícil avistar um leopardo, as caçadas fazem-se com o auxílio de grandes matilhas de cães treinados.

As chitas não temem a proximidade do homem, são facilmente domesticadas e são também presa fácil para os laços dos caçadores furtivos. Do grupo que chegou em setembro já morreu um macho, ficando agora o grupo reduzido ao repovoamento inicial: sete fêmeas e seis machos.

O último relato de uma chita nos tandos a sul de Chupanga data de 1905, através dos diários das caçadas de Reginald Charles Fulke (1866-1956), um diplomata britânico que serviu nos consulados de Quelimane e na Beira e escreveu três livros sobre a fauna e a flora ao longo do vale do Zambeze, e também nos antigos distritos de Manica e Sofala. Maugham, o apelido literário de Fulke, desta vez não esteve em Mungári para testemunhar o repovoamento das chitas, mais de um século depois das suas épicas caçadas.

Estudos preliminares indicam que a zona dos tandos de Marromeu pode acolher 137 animais, mas há algum nervosismo em relação à sua reintrodução. Duas experiências tentadas na zona da Gorongoza foram um fracasso total. Um dos factores que pode funcionar a favor das chitas é o seu novo habitat ser muito despovoado, logo longe da cobiça dos furtivos pela sua pele como troféu valioso para ritos tradicionais. Outra das condições de importação dos animais foi a de virem de “espaços selvagens”, onde tinham que caçar para a sua sobrevivência, uma condição que tornou mais fácil a sua adaptação no delta do Zambeze.

A “operação chitas” só foi possível com a colaboração da Fundação da Família Cabela dos EUA, que contribuiu com meio milhão de dólares para apoiar todo o projecto. Mary Cabela já antes tinha estado por detrás do projecto do repovoamento de leões trazendo em 2018, da África do Sul, 24 felinos.

A Coutada 11 era o retiro privado do magnata português António Champalimaud. Não havia safaris comerciais. Vinham apenas os seus amigos e convidados que aterravam directamente em Mungári Rio, a norte de Inhaminga. Aí está implantada a C12, uma concessão do Grupo Entreposto em processo de entrega ao parque nacional da Gorongoza. Durante a guerra, a C11 foi uma importante base da Renamo. Muitos dos seus actuais trabalhadores foram guerrilheiros do movimento de Afonso Dhlakama.

Conservação vs operação comercial Para se ter uma ideia dos efeitos devastadores da guerra, em toda a região do Delta do Zambeze, depois de 1992, apenas foi identificado um “leão nativo”, identificado por satélite como o “M-001”. Das novas crias nascidas desde 2018, o M-001 é responsável por 27, o que atesta a sua “popularidade” entre as fêmeas sul-africanas. Os veterinários especialistas em fauna consideram que o fenómeno é importante para a genética da espécie na região.

Os detractores do esforço conservacionista da C11 consideram controversa a atitude de uma coutada que se dedica à caça turística. “Trazer leões e outros felinos para depois os abater”, apontam o dedo acusatoriamente.

Os responsáveis do projecto defendem-se e contra-atacam. “Isto mostra o potencial do sector privado. Fazemos caça, com os resultados podemos fazer conservação e ainda melhorar as vidas da população em redor”. Só em “contribuições para a comunidade” são três milhões de meticais por ano (USD 47.500,00), mais 30 toneladas de carne fresca provenientes das caçadas e a entrega de três búfalos e 20 changos, “completos”, ou seja com tripas, peles e troféus. Quanto aos leões e as chitas, não há qualquer plano de abate nos próximos anos. 

Se as comunidades recebem três milhões, a ANAC, a Administração das Áreas de Conservação recebeu em 2021, USD 1,5 milhões (94,8 milhões de meticais) em senhas de animais para abate, outras taxas e licenças e os cerificados internacionais da CITES (Convenção do Comércio Internacional de espécies em Perigo de Fauna Selvagem e Flora). A C11 mantém 22 fiscais, uma parte, antigos homens do gatilho da Renamo. Usam motociclos todo o terreno (15) e dois helicópteros R22, ambos patrocinados a partir do Texas. Os furtivos não dão tréguas e os números anuais mantêm-se constantes: 70/80 apreensões ano, com grandes cumplicidades entre as autoridades tradicionais e administrativas na região. Ao efectivo de prevenção há agora mais seis motociclos todo o terreno propulsionados por energia solar. “made in Tailândia”.

Para aumentar a renda dos camponeses, a coutada, nas zonas tampão onde vive a população, introduziu a produção de mel a partir do pólen das plantas da floresta do miombo. Para isso recorreu aos serviços de um ribatejano de gema vindo de Alpiarça, nos anos 80. São milhares as colmeias que implantou em todo o país. Em Mungári são 260. Por isso o seu nome mudou de José Alcobia para Zé Colmeia, a figura do urso simpático dos cartoons para crianças que tem como passatempo empanturrar-se em mel. Na Gorongosa, o modelo de produção de renda é o café, muito mais lucrativo que o milho e a mapira tradicional.

O números do negócio dos safaris foram completamente alterados com a pandemia. Na C11, é um bom ano ter 70 turistas na época cinegética que começa em março e termina em novembro. “Este ano esperamos ter 72 safaris, mas o ano de 2020 foi desastroso”, diz-me um dos responsáveis da C11. Por causa da pandemia não vieram turistas do exterior. Só no final do ano, “com permissão para funcionarmos em dezembro, fizemos seis safaris. Deu para pagar algumas despesas correntes”.

Os turistas vêm de todo o mundo, especialmente da Europa e dos Estados Unidos. Muita “gente importante”, sobretudo famílias abastadas e da antiga realeza europeia. Este ano, veio de novo a família real saudita. 11 caçadores mais “staff” logístico, 12 dias com passagem pelo Bazaruto, avião às ordens estacionado na Beira “para as emergências”. E uma cláusula de confidencialidade no contrato.

Operação cinegética Em 2022, as chuvas intensas no delta do Zambeze só possibilitaram as operações de caça cinegética nos finais de julho. Quando as zonas de pantanal ficam alagadas só é possível movimentar turistas através dos anfíbios de lagartas comprados em segunda mão à polícia sueca.

“O ano não foi mau. Estamos a recuperar dos números do covid-19. E temos agora um número crescente de observadores de pássaros”, refere com optimismo renovado um dos sócios da C11. Em 2021 conseguiram “fintar” a covid, trazendo a Mungári Rio quase 80 turistas.

Há também uma nova área em exploração. Os safaris para “observadores de pássaros” estão em crescendo. O seu grande animador é um empresário retirado da área imobiliária baseado em Peitermaritzburg, no Kwazulu Natal. “Vim à C11 a primeira vez em 2015 e confirmei o habitat único de pássaros nesta região do continente africano”, conta John Robinson. Em 2017 organizou o primeiro safari e todos os anos cresce o número de entusiastas.

Os pássaros mais apreciados nos longos passeios de floresta são o atacador de fronte castanha, a pitta agolensis, o pintadinho de papo vermelho, o calau de faces prateadas e o pica-pau de dorso verde. O guia do grupo, através de software apropriado, emite os sons do cantos dos pássaros – macho e fêmea – fazendo aproximar as aves para observação, caso estejam presentes na área. 

O criador de gado Angus, Brian Armour adorou a experiência. Ele foi um dos 38 observadores de pássaros que vieram este ano a Mungári. Trouxe o filho Clinton, o dono de uma cadeia de 15 hotéis Anew Hilton espalhados pela região do Kwazulu Natal. “Este ambiente é único e esta não será certamente a minha última visita”, diz em jeito de postal de viagem o patriarca Brian. 

John Robinson, também comprou casa no “resort” de Machangulo, na baía de Maputo, um local de “ricos e famosos” entre príncipes, desportistas de topo, cantores de rock e artistas de cinema. Ele diz que o hobby dos pássaros é para continuar. Em 2021 trouxe 22 visitantes. As excursões começam às quatro da manhã, quanto despontam os primeiros raios solares. Ao fim da manhã há espaço para uma refeição frugal com carne de caça e uma “siesta” retemperadora. Nova saída às 15 horas até ao pôr do sol. 

Depois é Maugham revisitado. À volta da fogueira, snacks e bebidas por conta da coutada. Incluindo o “gin” com água tónica do A Rainha de África, uma relíquia de Hollywood dos anos 50 do século passado, interpretada por Katherine Hepburn e Humphrey Bogart.

E como ainda estamos na África profunda das febres palúdicas, dos insectos venenosos e das cobras mortíferas, mesmo com tendas de último modelo “Banana Republic” e fatos “Coronel Tapioca”, há a recordação triste da morte de Sebastian Wicker, 40 anos, grande parte da sua vida passada nos tandos de Marromeu. Ele e o pai fundaram a Nyati Safaris, na concessão da Coutada 14 (C14), entre a C11 e a reserva de búfalos de Marromeu. Em setembro foi mordido por uma mamba preta (black mamba) em plena coutada. Apesar de assistido e levado de helicóptero para a Beira, não resistiu ao veneno letal do ofídio.

Os ventos do futuro De volta à Beira que é onde tudo começa habitualmente, como no antigamente, Peter, o piloto do helicóptero Bell que faz a logística para a C11, mostra-me o capim fresco no tecto das novas habitações, como o barro claro recente com que são maticadas as paredes. “Nos últimos anos é assim, a população está a avançar sobre as áreas das coutadas”. Os solos são muito pobres, não dão para a agricultura. Os novos residentes da floresta fazem lenha e carvão e armadilhas para caçar antílopes. As mesmas onde caem leões, chitas e búfalos.

O comboio entre Inhaminga e o Dondo leva a caça para a Beira, o grande mercado informal de carne de bravio na zona centro.

Premonitório, Reginal Charles Fulke, ou Maugham, em 1914, no seu Wild Game in Zambezia escrevia que chegará o dia em que todas as espécies do continente terão de ser confinadas em reservas para serem apreciadas, porque o desenvolvimento das comunidades humanas, inexoravelmente, levará à extinção as grandes concentrações de animais selvagens nos seus habitats naturais.

Está a acontecer.