Reino Unido. Carlos não terá uma vida fácil

Reino Unido. Carlos não terá uma vida fácil


Apesar de ter tido a vida toda para se preparar para o trono, o novo monarca não começa com a mesma onda de otimismo que se assistiu na coroação da mãe.


Se Isabel II, a monarca que teria o mais longo reinado britânico, cresceu sem sonhar que alguma vez chegaria ao trono, o seu filho Carlos passou a vida toda a preparar-se. A mãe foi coroada jovem, com uns meros 25 anos, entre pompa e fanfarra, em 1952, tomando as rédeas de um extenso império cuja decadência, embora já estivesse em curso, ainda não parecia irreversível. Já o filho seguiu os seus passos com uns vetustos 73 anos, com muito menos entusiasmo do público, apontam analistas. Isto num momento em que cada vez mais antigas colónias britânicas recusam a monarquia e até a unidade do Reino Unido parece posta em questão, com crescentes apelos pela independência da Escócia e a reunificação da Irlanda.

Preveem-se tempos complicados para a monarquia. «Isabel II foi a rocha em cima da qual a Grã-Bretanha moderna foi construída», salientou Liz Truss, no seu discurso de despedida da Rainha, tendo de enfrentar este momento histórico logo no seu segundo dia como primeira-ministra (ver página 55). E até os republicanos se começam a agitar, bem conscientes que, se somente 27% dos britânicos querem a abolição da monarquia, segundo uma sondagem recente do YouGov, a percentagem sobe para os 40% entre aqueles com menos de 25 anos.

«Para a maioria das pessoas, a Rainha é a monarquia. E depois dela morrer o futuro da instituição fica em sério risco», salientara Graham Smith, diretor-executivo do Republic, um grupo que tem lançado sucessivas campanhas contra a monarquia britânica, com anúncios nas redes sociais e em cartazes. «Carlos pode herdar o trono, mas não herdará a deferência e respeito de que gozava a Rainha», prometeu Smith à Reuters.

 

Tensões no reino

Após ser setenta anos como herdeiro, Carlos III tornou-se rei no momento em que a mãe deu o seu último suspiro, mas ainda tem um longo caminho até à coroação. No caso de Isabel II, esse processo demorou 16 meses desde a morte do seu pai, Jorge VI.

Antes da operação da casa real para preparar a coroação, apelidada de Mudança de Maré, traduzindo para português, o novo monarca terá de tomar a liderança das cerimónias fúnebres da mãe, que culminarão no seu enterro desta na abadia de Westminster, ao décimo dia.

Carlos III, no seu regresso do castelo de Balmoral, na Escócia, onde faleceu Isabel II, foi recebido por manifestações de luto às portas do palácio de Buckingham, em Londres. Insistiu em cumprimentar a multidão, sorrindo ao lado da rainha-consorte, Camila, antes da sua primeira audiência com Truss, com a qual discutiu os novos papéis de ambos durante cerca de meia hora.

Depois, o novo monarca seguirá para os seus restantes domínios no Reino Unido, começando pela Irlanda do Norte, onde deverá receber uma mensagem de condolências em Hillsborough Castle e participar numa oração na Catedral de St. Anne, em Belfast. Antes de visitar o País de Gales, recebendo uma moção de pesar no Senedd Cymru, o parlamento galês, e orando na catedral de Llandaff, em Cardiff. Enquanto isso, irão chegando a Londres delegações vindas de toda a Commonwealth, que serão recebidas pelo novo rei.

Aqui, Carlos III terá a missão delicada de se apresentar aos representantes de países onde a agitação contra a monarquia britânica tem escalado ao longo dos últimos anos. Isabel II, apesar de todo o seu peso histórico, ainda o ano passado assistiu enquanto os Barbados – uma nação-insular em tempos conhecida como «pequena Inglaterra», pelos seus laços próximos à antiga metrópole – se tornavam uma república, passando a rainha a ser chefe de Estado de apenas 14 países.

A expectativa é que aumentem os apelos a que outros estados da Commonwealth sigam o rumo dos Barbados. «À medida que a importância da monarquia se torna menor na sociedade, sítios como a Nova Zelândia mantiveram-na porque tinham um grande respeito pela Rainha pessoalmente», explicou Cindy McCreery, professora da Universidade de University of Canterbury, à Time. O mesmo se poderia dizer da vizinha Austrália, onde o líder dos Verdes, Adam Bandt, deu as suas condolências pela morte de Isabel II à família real, no Twitter, mas fez questão de rematar que, agora, o seu país «deve seguir em frente».

Já nas Caraíbas, a oposição à monarquia britânica é bastante mais vigorosa. Aqui, é associada a um crescente sentimento anticolonial, antecipando-se que a morte de Isabel II despolete novos apelos ao pagamento de reparações pelos crimes do império que esta encabeçou. Aliás, na Jamaica 56% da população é a favor de deixar de ter um monarca britânico como chefe de Estado, segundo uma sondagem citada pela Reuters. E o próprio primeiro-ministro, Andrew Holness, já sugeriu querer seguir o exemplo dos Barbados, tendo sido instado pela oposição a cumprir essa promessa ainda esta semana.

O assunto subira à ribalta com a recente viagem às Caraíbas do príncipe William e da sua mulher, Kate, naquilo que se transformou num desastre de relações públicas. Tendo até a visita do casal a uma fazenda de cacau, no Belize, de ser cancelada devido a protestos, enquanto uma foto sua a cumprimentar crianças negras através de grades se tornava viral. Culminando numa carta aberta assinada por mais de cem personalidades jamaicanas, dirigida a William, agora príncipe herdeiro.

«Durante os seus setenta anos no trono, a sua avó não fez nada para encarar e expiar o sofrimento dos nossos antepassados, que ocorreu durante o seu reinado, ou durante todo o período de tráfico de africanos, escravatura, trabalhos forçados e colonização», acusava a carta. Que recordava que William e Kate «são beneficiários diretos da riqueza acumulada pela família real ao longo de séculos», boa parte dela através destas práticas.

No entanto, Carlos III nem mesmo no Reino Unido terá uma vida descansada. No que toca à Escócia, considera-se que a popularidade de Isabel II – ainda que a monarquia seja historicamente menos apreciada neste país – teve um papel chave no referendo à independência, em 2014, que culminou num «não», com 55,3% dos votos. A monarca – que passou a maior parte dos seus verões em Balmoral, uma enorme propriedade nas Terras Altas da Escócia, o local onde os seus familiares diziam que era mais feliz – tecera um raro comentário político nas vésperas da votação, instando os escoceses a «pensar cautelosamente quanto ao futuro».

Ainda assim, apesar das turbulentas relações entre Londres e o Edimburgo, onde governam os independentistas do Partido Nacional Escocês (SNP, na sigla inglesa), Isabel II conseguiu manter a aprovação de 75% dos escoceses, cimentando a unidade do Reino Unido. No entanto, partiu num momento delicado, em que a líder do SNP, Nicola Sturgeon, exige uma repetição do referendo de 2014, argumentando que o Brexit alterou a matemática, dado 62% dos escoceses terem votado para se manter na União Europeia.

Um novo referendo, que Sturgeon quer que ocorra daqui a dois anos, requereria o consentimento do Governo britânico, algo que Truss já recusou. Contudo, o facto de pouco mais de metade dos escoceses considerar que Carlos seria um bom Rei, segundo uma sondagem recente do YouGov, certamente não ajudará ao aliviar das tensões.

 

Da monarca televisiva até ao príncipe malvado dos paparazzi

Carlos III terá a difícil tarefa de suceder a uma monarca que se conseguiu manter com taxas de aprovação a rondar os 70%, muito acima da vasta maioria dos dirigentes políticos eleitos pelo mundo fora. Isabel II soube tornar-se sinónimo de estabilidade, uma presença constante entre os britânicos, a primeira Rainha televisiva. Ao mesmo tempo conseguia resistir a diminuir a ostentação da família real, lembrou a Foreign Policy, ao contrário do que fizeram outras monarquias europeias, receosas que ver isso na televisão isso pudesse cair mal entre o público.

Os membros da realeza britânica «continuaram a viver um esplendor de conto de fadas nos seus muitos palácios e castelos, aparecendo em ocasiões públicas coreografadas, como casamentos e na abertura do Parlamento com um uma pompa sem paralelo em qualquer monarquia do mundo moderno», salientou a revista. «Em vez de a alienar das pessoas, a distância e dignidade da Rainha ajudou a preservar a mística em que a monarquia se alicerça».

Já o herdeiro de Isabel II, enquanto príncipe de Gales, foi apresentado ao público na era de ouro dos tabloides britânicos, em que paparazzi reduziam a escombros qualquer distância entre o público e a vida privada da família real. Décadas depois, Carlos continua a ser conhecido por muitos britânicos como o ex-marido da infeliz princesa Diana, continuando bem viva a memória de sucessivos escândalos e alegações de infidelidade com Camila Parker-Bowles, hoje rainha-consorte.

O novo monarca terá de arranjar forma de criar uma nova imagem. Tentando ao mesmo tempo não arriscar a estrita imparcialidade política cultivada por Isabel II, considerada um dos motivos pelo qual a coroa britânica desfruta de apoios de um lado ao outro do espectro político, incluindo de 48% dos eleitores trabalhistas, segundo o YouGov. Já Carlos, enquanto príncipe de Gales, teve uma abordagem diferente da mãe, misturando alguns toques de conservadorismo com ativismo ambiental, o que lhe pode dificultar a vida, por exemplo no que toca à diplomacia. É algo que se notará sobretudo nas abordagens diplomáticas com os Estados Unidos, onde temas como as alterações climáticas são muito mais polarizados, avaliou o Politico.

«O tipo especial de diplomacia da Rainha Isabel II – suave, doce e distintamente apolítico – encantou os americanos durante décadas», recordava este site noticioso. Isabel II, que se encontrou com 13 dos últimos 14 presidentes americanos, chegaria a ser declarada por Barack Obama como uma das suas pessoas preferidas no mundo. Parece difícil que o seu filho venha a gozar do mesmo estatuto de celebridade do outro lado do Atlântico.

«É improvável que isto faça descarrilar a chamada relação especial entre os EUA e o Reino Unido, construída através de décadas de aliança, partilha de segredos e compatibilidade linguística», ressalvou o Politico. «Ainda assim, a perda de interesse significaria a perda de uma ferramenta britânica que ofereceu um poder discreto do lado americana durante a maior parte do último século, ajudando a solidificar aquela que é debativelmente a mais essencial relação transatlântica». Ainda para mais quando o estatuto da monarquia britânica já estava ferido nos EUA, devido às alegações de racismo no seio da casa real britânica feitas por um dos filhos de Carlos III, Harry, e a sua mulher, Meghan Markle, durante a famosa entrevista com Oprah Winfrey.