por João Campos Rodrigues, na Guiné-Bissau
Na Guiné-Bissau, a visita de um Presidente português não é uma visita como as outras. Neste pequeno país, forjado no calor da guerra colonial, lusófono mas rodeado de países francófonos, com crescente influência chinesa, a chegada de Marcelo Rebelo de Sousa, esta segunda-feira, é aguardada com ansiedade. Tanto pela ligação forte que muitos guineenses mantêm com Portugal – em Bissau, a conquista do campeonato nacional pelo Sporting foi uma festa imensa e vê-se gente vestida com o equipamento dos leões por todo o lado, entre resmungos dos muitos benfiquistas e portistas – como por este encontro poder abrir portas na União Europeia.
Pelo menos é essa a esperança do Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló. «Portugal tem de ser a porta de entrada da Guiné-Bissau na UE. E a Guiné-Bissau tem de ser a porta de entrada de Portugal na CEDEAO, junto dos outros 15», afirmou Embaló ao Nascer do Sol, referindo-se à Comunidade Económica de Estados da África Ocidental, que reúne países vizinhos, como o Senegal e a Guiné-Conacri, partilhando uma moeda comum, o Franco cfa.
A Guiné-Bissau é um país cada vez mais integrado neste bloco esmagadoramente francófono – o francês é uma presença constante em Bissau, das expressões coloquiais aos sinais na rua. Mas a herança colonial portuguesa ainda se vê em todo o lado. Daí que a visita de Marcelo Rebelo de Sousa seja vista como «um reencontro entre irmãos», assegura Embaló – que estudou em Lisboa, no ISCTE, e recebeu o Nascer do Sol no seu palácio presidencial, que costumava ser a residência dos governadores portugueses, antes de 1974.
Está na agenda da visita uma deslocação conjunta ao cemitério municipal de Bissau, onde estão enterrados os soldados portugueses deixados para trás na guerra colonial, bem como uma procissão ao túmulo de Amílcar Cabral, líder independentista histórico, onde Marcelo deverá deixar uma coroa de flores.
Além disso, «uma visita do Presidente português seria sempre muito importante, mas sobretudo quando Portugal está na presidência da UE», acrescenta Susy Barbosa, ministra do Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau. «Aí é a União Europeia que visita também».
Não se trata de algo menor para o Governo guineense. Embaló, um general que assumiu o poder após eleições contestadas pela oposição, traçou como rumo para o pais atrair mais investimento estrangeiro, depois de décadas marcadas por instabilidade política e sucessivos golpes de Estado. E promete transformar essa imagem. Apesar de algumas das suas posições – da ameaça de pôr os serviços de segurança a vigiar críticos nas redes sociais à insistência em afirmar-se chefe absoluto da Guiné-Bissau, e à garantia recente de que «quem tentar golpe de Estado será morto» – provavelmente não ajudarem.
Debaixo da superfície
De bengala na mão, vestido com uma sabadora – uma túnica longa, típica da região – dourada, Embaló tem uma presença tranquila, atenta, com um tom baixo e calmo, quase um sussurro. Mas rapidamente se revela a exasperação, a impulsividade debaixo da superfície, num homem proclamado o «general do povo» pelos seus apoiantes.
Sobretudo quando o tema são as críticas de que tem sido alvo, além de acusações de mandar raptar e espancar jornalistas e opositores políticos, ou ainda de fraude eleitoral vindas do líder do PAIGC, de Domingo Simões Pereira. O mau sangue vem de trás – aliás, o partido de Embaló, o Madem-G15, surge de uma rutura no PAIGC, o partido histórico que conquistou a independência guineense, após Embaló se incompatibilizar com Simões Pereira, levando consigo boa parte da base do partido e 15 deputados.
«Nos PALOP, só os guineenses é que dizem mal do seu país. Em Moçambique, Angola, Cabo-Verde não se vê isso. Bom filho da terra fala bem da sua terra», diz Embaló, num tom ressentido.
De facto, enquanto conversávamos, algumas dezenas de guineenses juntavam-se à frente do Palácio de Belém, com as mãos pintadas de branco, onde se viam cartazes com frases como ‘Marcelo não és bem-vindo’, acusando o Estado português de legitimar o Governo nomeado por Embaló – o que levou inclusive os deputados do PAN a absterem-se na votação para autorizar a visita do Presidente, descrevendo o regime guineense como uma ditadura.
Para Embaló, o problema «é só o pessoal do PAIGC, que é o inimigo número da Guiné-Bissau». «E o meu temperamento não me permite ver a Guiné-Bissau ser humilhada», avisa.
«Mudar essa imagem, essa perceção errónea, é uma prioridade do Governo», faz questão de frisar a ministra dos Negócios Estrangeiros, encarregue de organizar a «diplomacia agressiva» de Embaló – o Presidente já fez 70 visitas ao estrangeiro em pouco mais de um ano de mandato – e que quer aproveitar a visita do Presidente português para celebrar «tudo o positivo que nos une».
Lamenta que, para quem não conhece a Guiné-Bissau, a perceção possa ser a de um destino de risco, apesar das taxas de criminalidade baixas no que toca a crime comum. «Há países em que não me atrevo a circular de carro de janela aberta», conta. «Aqui, eu, Susy, circulo desprotegida, sem medo e sem qualquer problema», garante.
De facto, nas ruas de Bissau, a sensação é de tranquilidade, toda a gente conhece toda a gente. E, entre a vasta maioria dos guineenses com quem falamos, o grande desejo é viver a sua vida em paz e condições – historicamente, a população sempre evitou meter-se nas tricas sangrentas entre os seus governantes.
Contudo, essas condições de vida são cada vez mais complicadas, após o Governo ter aumentado a carga fiscal no último orçamento de Estado, queixa-se União Nacional dos Trabalhadores da Guiné (UNTG), a principal central sindical do país, que lança greves sucessivas da função pública há meses, da saúde à educação. É que há novas taxas sobre funcionários, bens essenciais, materiais de construção – num país onde tantos vivem debaixo de chapas de zinco – e até algo chamado o imposto da democracia.
«É estranho mesmo», diz Júlio Mendoza, secretário-geral da UNTG. «Não passa de um imposto inconstitucional. Inventaram isso, dizem que é para acumular dinheiro para as eleições. Mas não sei porque pagam apenas os trabalhadores, quem trabalha por conta de outrem».
«Não se justifica essa demolição do poder de compra de produtos de primeira necessidade com esses novos impostos», lamenta Mendoza, num país que nem sequer tem salário mínimo desde 1988, nos tempos do peso, a anterior moeda guineense. O dirigente sindical deseja que Marcelo Rebelo de Sousa levante essa preocupação com o Governo.
Já na sede da UNTG, o entusiasmo com a visita do Presidente português é maior. «Vai ser uma grande festa ele vir, vai estar tudo fechado, vem muita gente do interior para o receber», assegura José Basani, funcionário da casa.
Não é um homem fácil de encontrar – à boa moda guineense, estava sentado à sombra de uma árvore, a fugir à torreira do sol, bem longe da receção. À frente de um edifício de arquitetura colonial, majestoso mas degradado, Basani, no seus 70 anos, diz que tem idade para lembrar a presença portuguesa em Bissau. E não esquece, «foi de português que tive aulas, não foi de francês».