Dina (1956-2019). A cantora que fez o país refém

Dina (1956-2019). A cantora que fez o país refém


Tinha 62 anos e lutava há dez contra uma fibrose pulmonar


Peguei, trinquei e meti-te na cesta… Este tem de ser um dos rastilhos mais curtos que temos para uma explosão nostálgica sem igual. A letra é de Rosa Lobato de Faria, mas a voz e a fome que se nos ficaram gravadas para sempre eram de Dina. Eis do passado esse refrão que, hoje, vem falar-nos de um país mais certo, de um tempo em que, talvez mais tosca e alegremente, parecíamos ter mais sentidos para cercar e apreender as coisas simples. Mais do que um grande sucesso da música portuguesa, Amor d’Água Fresca foi o hino de uma juventude plena. E não é que o passado se tenha tornado um país estrangeiro, mas foi como se, perdido um certo encanto, vivêssemos hoje exilados num sítio cada vez menos familiar. Dificilmente Portugal voltará a caber inteiro dentro de uma balada como aconteceu guiado pela voz dela. Dina morreu esta quinta-feira, e quantos nomes próprios ainda restam à canção portuguesa?

A cantora e compositora tinha 62 anos, despedira-se dos palcos em 2016, dez anos depois de lhe ter sido diagnosticada uma fibrose pulmonar. E é uma desgraçada ironia perceber que a mulher que teve pulmões para encantar o país inteiro tenha definhado à espera de um transplante pulmonar. Morreu no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, esta sexta-feira e, por uma vez, as redes sociais hesitaram em partilhar as canções, transformar o espaço virtual num festival da rêverie, homenageando a vencedora do Festival da Canção em 1992. As composições e letras que fizeram de Dina um nome cimeiro da canção pop tinham  pouco que ver com o concerto de cordas em dó menor que afinam o coro nas redes. As suas canções estavam mais do lado do desaire emocional, de uma entrega que não rima já com os nossos dias. Seria mais fácil ir a Camões buscar um embalo que enraíze neste país a cantora que assumiu a sua bissexualidade, tendo confessado a tristeza por não ter encontrado o príncipe: «Pode um desejo imenso/ arder no peito tanto/ que à branda e a viva alma o fogo intenso/ lhe gaste as nódoas do terreno manto,/ e purifique em tanta alteza o esprito/ com olhos imortais/ que faz que leia mais do que vê escrito»…

Numa entrevista ao jornal i, em março de 2016, Dina contou como era viver com a doença: «Os dias mais húmidos são extremamente complicados. Levanto-me e já terminou o dia para mim. Imagine o que é estar o dia todo dentro de um colete de forças, sempre apertado». Recordou também as circunstâncias em que, uma década antes, recebeu o diagnóstico: «Sabe que os pulmões são um órgão muito emocional e em 2006 perdi dois irmãos, um em março, outro em julho. Perder os pais é uma coisa de que não estamos à espera mas faz parte da vida, os irmãos… eles crescem connosco. E eu sentia aqui um peso, pensei que era angústia, porque não conseguia respirar, fui ao médico (…)».

Em 2012, quando os pulmões mal seguravam o fôlego para que cantasse, ainda perdeu outra irmã. A 22 de setembro, dois meses depois da perda, lembra que teve uma última noite em que parecia haver uma magia que a fez esquecer o sufoco: «O casino estava cheio, eu, duas guitarras e um piano. Fantástico. Nem me senti cansada. No dia seguinte estava de rastos. E depois, nos ensaios, percebi que já não conseguia. Não conseguia afinar. Uma pessoa tem que ter pulmão para aguentar a nota. Depois foi piorando».

Ondina Maria Farias Veloso nasceu a 18 de junho de 1956 em Carregal do Sal (Viseu). Depois de ter começado a compor em 1975, no Quinteto Angola, estreou-se no ano seguinte, gravando o seu primeiro EP para a editora Alvorada, então ainda com o nome artístico de Ondina. Foi por esses anos que teve a sua estreia na televisão, mas é com a primeira participação no Festival da Canção, em 1980, com o tema Guardado em Mim, que Dina começa a ganhar visibilidade. Nesse ano ficou-se pelo 8º. lugar, mas levou para casa o Prémio Revelação. Houve ainda uma outra participação no Festival em 1982, com as faixas Em Segredo e Gosto do Teu Gosto, não alcançando o êxito esperado, mas dez anos depois, em 1992, teve finalmente o triunfo que esperava e que fez desse o seu ano. Com Amor d’Água Fresca venceu o concurso e foi a Malmö (Suécia) representar Portugal na Festival da Eurovisão, e ainda que não tenha conseguido melhor do que o 17.º lugar, tinha o país refém daquela canção que tem uma tal carga contagiante que chega a tornar-se embaraçosa. «Depois do lançamento do Pérola, Rosa, Verde, Limão, Marfim», como contava na entrevista ao i, «lanço o álbum Aqui e Agora, que não agitou muito. Então foi aí que pensei: ‘Tenho que fazer uma canção para ganhar’. E fiz uma canção, pus nos auscultadores da minha filhota, ela cantou, e pensei ‘está feito’. A Rosinha [Lobato Faria] pôs-lhe o cocktail das frutas e ganhei com uma diferença…». Na noite do triunfo, já depois das entrevistas dadas aos jornais, ao sair do recinto, e com o desatavio que lhe era próprio, como lembravam as manchetes no dia seguinte, enfiou os dedos na boca e assobiou fazendo parar um táxi, desaparecendo na noite chuvosa.