Manuel Jorge Marmelo. “Este pode ser o meu melhor livro”


Um jornalista preso por matar uma estrela de reality-show é o protagonista. Maria Espírito Santo falou com o autor sobre o enredo de “O Tempo Morto é Um Bom Lugar” e a linha ténue entre a realidade e a ficção Estava a terminar de escrever um livro quando o contactaram com uma proposta: ser ghostwriter.…


Um jornalista preso por matar uma estrela de reality-show é o protagonista. Maria Espírito Santo falou com o autor sobre o enredo de “O Tempo Morto é Um Bom Lugar” e a linha ténue entre a realidade e a ficção

Estava a terminar de escrever um livro quando o contactaram com uma proposta: ser ghostwriter. Traduzindo por miúdos, trata-se de ser um escritor fantasma, escrever para outrem, na protecção do anonimato. Manuel Jorge Marmelo, na altura no desemprego, ponderou, por segundos. Mas depressa lhe surgiu outra ideia – tornar esta dica de uma amiga no ponto de partida para uma história.

Assim nasceu Herculano Vermelho, um jornalista tranquilamente atrás das grades, a recuperar os episódios que o trouxeram até ali. O jornalista está preso porque se entregou, assumindo a responsabilidade pelo assassínio de Soraya – estrela de um reality-show para quem estava a escrever uma autobiografia no formato de escritor fantasma. Herculano não sabe ao certo se é culpado, mas pensou que a prisão seria um bom lugar para reflectir e se dedicar à escrita.

Fala-se dos impostos, da crise, da televisão, versão fast-food. As várias camadas da realidade (económica, social, cultural) estão aqui e pontuam a história, qual recordação do presente. O autor descreve cenas que temos a impressão de ter visto ontem num qualquer reality-show mas garante que o trabalho de investigação não foi intenso. “Há uma parte em que o Herculano explica que só vê reality-shows quando vai a casa dos pais no Natal. Essa parte corresponde bastante à minha experiência, aquilo que sei é o que vejo na noite de consoada. Não fiz esforço para ver mais reality-shows do que era necessário.”

No género policial que o livro adopta numa primeira fase moram também o humor e a sátira, que “a reflexão sobre coisas sérias não tem de ser pesada”, recorda-nos. Depois a história desmonta-se noutros capítulos: um deles é nada mais nada menos que a autobiografia de Soraya. É mais uma novidade na escrita do autor, que pela primeira vez escreve no feminino. De resto, prevalece a corda bamba entre realidade e ficção. “Tinha essa intenção, de criar confusão entre as duas esferas. É uma coisa que o Enrique Vila-Matas faz com grande mestria, gosto muito de o ler e acho que aqui me aproximei desse objectivo.”

Faz-se o caminho sinuoso rumo à história ideal. “Cada livro é uma tentativa de atingirmos o livro ideal que temos na nossa cabeça, creio que este fica mais próximo daquilo que um dia quero fazer, se é que algum dia o farei.” Manuel Jorge Marmelo, recentemente galardoado com o prémio literário Casino da Póvoa pela obra “Uma Mentira Mil Vezes Repetida”, acredita que se conseguiu exceder. “Se este já tinha alguma sofisticação, acho que “O Tempo Morto É Um Bom Lugar” dá um passo em frente. Tenho a impressão que este pode ser o meu melhor livro.”

Do tempo morto. Para o leitor atento, ficou uma dúvida por esclarecer – para o leitor desatento, se calhar convém regressar ao arranque deste texto. O que é feito do livro que estava finalizado quando o escritor se decidiu lançar a esta aventura? Está pronto, em standby. É uma história familiar, do trisavô do autor, um mulherengo que destruiu uma fortuna a distribuí-la pelas mulheres não oficiais. A prioridade foi dada a “O Tempo Morto É Um Bom Lugar”, culpa da actualidade que se lê da primeira à última página. É uma espécie de dever da escrita, acredita. “A arte em geral e a literatura em particular não podem deixar de reflectir a enorme confusão que parece ter-se instalado no mundo. Acho que durante muito tempo vivemos com a percepção, ilusão de que isto evolui, de que há um progresso, não só a nível técnico mas social, económico. E hoje há muita gente que está perdida porque deixou de ter a percepção desse desígnio. Os livros também têm de reflectir essa confusão em que muita gente vive e não é preciso estar desempregado para que as pessoas se sintam perdidas neste tempo – muitas vezes estão a trabalhar e não sabem para quê, parece que é para pagar impostos e empréstimos. Isso é muito decepcionante, perdemos as referências para ter uma vida mentalmente saudável.”

É inevitável reconhecer as parecenças entre o autor e o protagonista da história. E por falar em estreias, esta é também a primeira vez que põe um jornalista no centro da intriga. Com mais de 20 anos a trabalhar em redacções, o escritor que está há dois anos longe dos jornais, decidiu passar essa experiência para um livro: “Muitas vezes me perguntaram porque não escrevia sobre jornalismo. Não me sentia minimamente motivado para o fazer. Mas agora estando fora, sim, consegui fazer o exercício” É uma espécie de catarse, acrescentamos nós, que nas entrelinhas se conhece o desencanto de Manuel Jorge Marmelo pela profissão de caçar histórias.

São já 18 anos a escrever, desde “O Homem que Julgou Morrer de Amor”, de 1996. O escritor franze o sobrolho, surpreendido com o número, garante que nunca tinha feito as contas. “Tenho noção que alguma coisa melhorou. E como este amadurecimento que foi feito publicamente, porque comecei a publicar muito cedo, as pessoas foram tendo noção das fragilidades mas também da evolução.” Além dos romances e contos, aventurou-se ainda na escrita para crianças, primeiro ao lado da filha, culpa de uma composição na escola primária e depois com o filho, que ficou ciumento. Não chegou a apostar seriamente no género por receio: “É uma responsabilidade muito grande, as crianças absorvem tudo, também as coisas más e uma frase escrita com a melhor das intenções pode ter um efeito perverso numa criança, sempre tive muita noção disso.”

O percurso do escritor faz-se de títulos como “As Mulheres Deviam Vir com Livro de Instruções” (1999) , “O Silêncio de um Homem Só” (2004) ou “Somos Todos um Bocado Ciganos” (2012). E no que toca ao tempo morto, é mesmo um bom lugar? “Dizia que o desemprego era a minha bolsa de criação literária”, pausa para um sorriso. “Espero que as pessoas concluam que pode ser um bom lugar. A mim deu-me para escrever, tive experiências ao nível da edição independente, aprendi a maquetar livro, fiz uma série de coisas. Este tempo acabou por me permitir muito.”