Joel Sartore. ‘Os insetos andam a evitar predadores há milhares de anos. Têm de ser inteligentes’

Joel Sartore. ‘Os insetos andam a evitar predadores há milhares de anos. Têm de ser inteligentes’


Em 2005 o fotógrafo norte-americano iniciou o projeto de fotografar todas as espécies que vivem em cativeiro, da formiga ao elefante. Ao fim de doze anos, vai a meio do trajeto, tendo já documentado 7500 animais. O b.i, conversou com o fotógrafo no Jardim Zoológico de Lisboa.


Finda a sessão, enquanto o tratador do Jardim Zoológico de Lisboa enfia num saco de pano uma serpente que acaba de ser fotografada, Joel Sartore pergunta onde há uma mangueira. Fá-lo com a naturalidade de quem está habituado a repetir o processo: precisa de limpar os dejetos deixados pelo réptil na pequena tenda branca onde fotografa os animais de pequeno porte contra um fundo neutro – branco ou preto. Até ao momento, o norte-americano já retratou cerca de 7.500 bichos para o projeto Photo Ark – uma verdadeira arca de Noé em imagens, em que Sartore tenta preservar todas as espécies conhecidas através da sua lente. Neste momento vai a meio do trajeto – no final, espera ter documentado cerca de 15 mil espécies.

O Photo Ark nasceu em 2005, «quando a sua mulher Kathy foi diagnosticada com um cancro da mama», explica o press release do projeto. Para a poder acompanhar e apoiar nesse momento difícil, Sartore resolveu cancelar as suas saídas em trabalho e passar um ano em casa. Ao fim de algum tempo, porém, lembrou-se de pedir autorização ao presidente do Jardim Zoológico mais próximo, para não perder o hábito. O curador sugeriu-lhe que fotografasse um rato-toupeira-pelado e foi «esta criatura pequena e humilde» que lhe deu a ideia de documentar exaustivamente os animais em cativeiro de forma a chamar a atenção para a forma como estamos a destruir o planeta.

Que animais fotografou hoje no Jardim Zoológico de Lisboa?

Fotografei um leão, uma girafa, uma impala, um leopardo-persa, um caimão, um milhafre, uma tartaruga… Muita coisa.

Pensava que tinha vindo fazer fotografias de animais muito específicos.

E vim.

Mas o leão e a girafa são relativamente comuns…

É uma subespécie de leão específica, o leão-de-katanga, e a girafa também é uma girafa angolana. Todos eles são animais que eu ainda não tinha. Deixe-me ver aqui [consulta a sua agenda e aponta para uma lista]. Estes são os mamíferos que fizemos hoje. Além dos que disse fizemos o lobo ibérico e três espécies de répteis.

Aí no lobo ibérico tinha uma nota que dizia ‘possivelmente problemático’…

Isso foi a minha assistente que escreveu.

É por o animal poder ser perigoso?

Não, é apenas porque não sabiam se havia um espaço que pudesse ser pintado de preto.

Quando faz uma fotografia de um grande mamífero o fundo também é preto ou branco?

Sempre.

E se for uma girafa?

Pintam as paredes de preto. Claro que tem de ser uma sala muito grande, maior do que esta.

Como chegou a esta lista de doze mil animais?

Fizemos uma soma de todos os animais que há em zoos, aquários e centros de reabilitação de vida selvagem. Estimámos que haverá entre 12 mil e 15 mil espécies que são cuidadas pelo homem em cativeiro. E decidimos que íamos tentar ter todas. Hoje, passados onze ou doze anos, já temos 7500 espécies, por isso estamos a meio caminho.

Como planeia as viagens?

Agendo-as um pouco ao acaso. Neste caso, a exposição Photo Ark estava a inaugurar no Porto e convidaram-me para vir a Lisboa falar sobre o projeto Photo Ark. A seguir vou a Roma, à Polónia, Holanda, e antes de regressar a casa ainda vou ao Parque Natura Viva em Verona, Itália.

Quando vai a um zoo leva uma lista de animais que quer fotografar. As coisas acontecem sempre como planeado?

Às vezes fazemos fotos adicionais, outras vezes os animais já lá não estão, foram vendidos. Não é muito frequente, mas também acontece estarem mal identificados. A maior parte das vezes trabalhamos com muita antecedência, contactamos o zoo meses e meses antes de o visitarmos. Apresentamos uma lista de 30 animais e o curador diz-nos quais podemos fazer. Se houver possibilidade, ainda fazemos um extra – desta vez pudemos fotografar um milhafre. A parte difícil é a preparação que o zoo tem de fazer. Têm de preparar as salas, de dar instruções aos funcionários, para saberem que animais toleram ser postos nestas pequenas tendas. Até porque não queremos stressar os animais sem necessidade.

Os animais às vezes ficam nervosos?

Não é costume. São animais habituados a ter pessoas à volta, nasceram e foram criados com cuidados humanos. E as sessões são muito curtas. Fotografámos alguns pássaros apenas durante 60 segundos. Se o tratador diz que começam a ficar stressados paramos.

Não é difícil conseguir que fiquem parados?

Tenho flashes que disparam 20 000 vezes por segundo, consigo congelá-los a meio de um voo. Não precisam de estar quietos, só precisam de estar a olhar para mim. Estabelecer contacto visual.

Tem algum segredo para que os animais se portem bem?

O único segredo que conheço é respeitar os animais, ser calmo e tão rápido quanto possível. E também lhes damos comida…

Durante este projeto nunca teve problemas, como alguém magoar-se ou apanhar um susto?

Nem por isso. Tentamos dar ouvidos aos biólogos e tratadores com quem trabalhamos, que escolheram cuidadosamente animais que acharam que não teriam problemas em ser fotografados.

Já lhe aconteceu sentir, enquanto fotografava, que estava a estabelecer algum tipo de ligação com o animal?

Muitas vezes. Ainda hoje fotografámos um corvo super esperto. Ele sabia que estávamos aqui, queria comida, demos-lhe comida, ninguém enganou ninguém. O leopardo, o leão, eles sabem que estou ali, são animais muito inteligentes. Aliás, até os insetos têm inteligência. Não sei se experimentam as mesmas emoções que nós, mas sabem muito bem para onde querem voar e andam a evitar predadores há milhões de anos, por isso têm de ser muito espertos. Acho que todos os animais são merecedores de igual compaixão. E dependem de facto da nossa compaixão, estão à nossa mercê. Temos de parar e perceber que nós é que precisamos da natureza, a natureza não precisa de nós. Temos de ter florestas saudáveis, oceanos saudáveis, insetos que façam a polinização, ou vamos morrer às centenas de milhões.

Perguntei-lhe se sentia ligação porque uma vez, num aquário, houve um polvo que parecia estar a olhar fixamente para mim e a seguir-me com o olhar.

Provavelmente estava mesmo a olhar para si e a segui-lo com o olhar. São animais muito espertos, brilhantes. Por isso é que nunca como polvo.

Há pouco falou da inteligência dos insetos. Também fotografa insetos?

Sim. Fotografo tudo o que os nossos olhos consigam ver, desde formigas a elefantes.

E o que é mais difícil?

Quando se trata de um grande mamífero e a sala já está pintada de branco ou de preto, teria de ser cego para não conseguir fazer o trabalho. A parte difícil é falar com o zoo e conseguir que levem a cabo aquilo de que precisamos para fazer estas fotografias. Somos rápidos, silenciosos e respeitadores, só queremos que as fotografias representem cada espécie para sempre e tentar salvar estes animais num mundo cheio de animais em vias de extinção.

Qual foi o animal mais bonito que já fotografou? E o mais esquisito?

O mais bonito foi provavelmente o faisão-do-nepal. Mas todos os animais são belos à sua maneira. No que respeita a animais esquisitos, talvez algum inseto. Mas nós também devemos parecer-lhes esquisitos, não é?

Como começou a colaborar com a National Geographic (NG)?

Sou licenciado em Comunicação Social e trabalhei para um jornal durante meia dúzia de anos. Um dia, quando tinha 28 anos, conheci um fotógrafo deles e implorei-lhe que olhasse para o meu trabalho. Ele fez-me uma recomendação, aceitaram-me e desde aí tenho trabalhado com eles.

Ainda se lembra do seu primeiro trabalho publicado na NG?

Foi uma fotografia de um prisioneiro a segurar num mocho ferido, num centro de reabilitação de vida selvagem que havia numa prisão no Kansas.

Fotografava sobretudo nos Estados Unidos ou também ia para fora?

Ao fim de algum tempo comecei a fotografar também em África, Austrália, Europa. Agora trabalho muito fora dos Estados Unidos. Fotografo o que os zoos Americanos têm, mas também os europeus e asiáticos, viajo a toda a hora.

Imagino que ao longo da vida já tenha visto muitos sítios incríveis, onde poucas pessoas estiveram. De qual gostou mais?

A Antártida é o sítio mais maravilhoso onde já estive, em todos os sentidos. Faz pensar no mundo quando tinha acabado de ser criado. O Albertine Rift, no Uganda, também é muito interessante pela sua cultura e vida selvagem, tal como a Encosta Norte do Alasca, o Pantanal brasileiro. Todos são especiais e memoráveis à sua maneira.

Fotografar animais selvagens na natureza tem qualquer coisa de aventura?

A mim, dá-me sobretudo cabo dos nervos. A National Geographic não pode publicar as minhas desculpas, por isso passo muito tempo a tentar aumentar as minhas possibilidades de ser bem-sucedido, fazendo pesquisa e falando com biólogos que conhecem a fundo uma determinada espécie ou zona geográfica. A sorte favorece aqueles que estão bem preparados.

Tem de se esperar muito tempo por que os animais apareçam? Às vezes não se torna aborrecido?

Ao longo da vida já esperei muitas horas para que os animais chegassem a clareiras, a carcaças de outros animais, que atravessassem rios… Mas não é aborrecido. O que se passa é que começo a ficar ansioso se passa mais de um dia em que não consigo fazer boas fotos

Uma vez que estamos num jardim zoológico, não queria deixar de perguntar-lhe que opinião tem sobre estes lugares.

Acho que os jardins zoológicos desempenham um papel tremendo. É graças a eles que muitas espécies ainda existem. Estão extintas na natureza e se não fossem os zoos tê-las-íamos perdido para sempre, por isso costumo dizer que são os guardiões do reino. E deixaram de ser simples menageries, coleções de animais para as pessoas se distraírem, para se tornarem verdadeiros centros de conservação. Pagam a pessoas para impedirem a caça furtiva, financiam a reconstituição de habitats em países estrangeiros, e sobretudo educam as pessoas. Imagine um mundo sem zoos. É disso que tenho medo. Imagine um mundo em que o único sítio onde podem ser vistos é aqui [aponta para o ecrã da sua máquina fotográfica], em imagens, ao lado dos videojogos e das celebridades. Há uma coisa incrível que acontece quando as pessoas vão ao zoo. Podem ouvir, ver, cheirar, às vezes até podem tocar nestes animais. Isso muda as pessoas e leva-as a interessarem-se, a preocuparem-se. Se não conseguirmos que as pessoas se interessem, vamos meter-nos em sarilhos. Vamos demolir o planeta, arrasar tudo, derrubar cada árvore. Os zoos têm um papel educacional muito importante.

Mas, comparando com os que estão em liberdade, não tem pena destes animais em cativeiro?

Não, não tenho. Se for um animal bem tratado e estiver num bom jardim zoológico, onde há a intenção de cuidar, onde têm áreas amplas, estão na companhia de outros animais, são bem alimentados, estão num bom clima, acho que é bom para eles. E se a escolha é entre a extinção ou ter uma população no zoo que é bem tratada, nem há qualquer dúvida. Quero ver estes animais em segurança até sermos espertos o suficiente para replantar as florestas, libertar o oceano da poluição, permitir o regresso da natureza e dos habitats.

E não vê animais em más condições?

Não vou a maus zoos. Se tiver um leão numa jaula minúscula, claro que me faz confusão. Mas vou a sítios onde têm excelentes condições e os animais mostram que estão bem porque procriam, têm interações sociais e são bem alimentados. Vivem boas vidas.

Reparei que tem o seu filho a trabalhar consigo. Ele gosta? Nunca se queixa?

Ele gosta de viajar pelo mundo e o nosso trabalho em prol da National Geographic Photo Ark é uma boa forma de ele conhecer muitos países enquanto ainda é jovem. Sempre fomos próximos e adoro tê-lo por perto. Não, não se queixa.

Quando visita um sítio como Lisboa, vai direitinho para o Jardim Zoológico? Não aproveita para passear um pouco e conhecer a cidade?

Vou direitinho para o zoo, faço o meu trabalho e apanho o primeiro voo de regresso a casa. Talvez seja por isso que o meu casamento dura há 33 anos. E continua.