‘Para nós um acordo é sempre melhor que um conflito’

‘Para nós um acordo é sempre melhor que um conflito’


A independência da Catalunha não tem marcha atrás, mas o 1 de outubro foi apenas o fim do princípio e não o princípio do fim, de uma questão que ainda vai fazer correr muita tinta


É empresária e começou como ativista na luta contra o excesso de portagens na região. Hoje Miriam Nogueiras é deputada no parlamento de Madrid, da ala mais à direita do independentismo catalão, o Partido Democrata Catalão (PDCAT), herdeiro dos democratas-cristãos da Convergência e União. Um percurso curioso nesta descendente de andaluzes, que até 2012 votava na Esquerda Republicana da Catalunha. Para ela o processo que levou ao referendo de 1 de outubro é irreversível. Mas os catalães só serão felizes quando conseguirem fazer a independência à sua maneira: negociada e sem violência.  

Vi uma intervenção sua num programa de televisão em que dizia: “nós não somos melhores, mas somos diferentes”, o que me parece uma ideia complicada, como se a autodeterminação fosse uma diferença física nacional.

Nada disso. A minha família é de origem andaluza. Uma grande maioria dos que são hoje catalães veio de todas as partes de Espanha, penso que 70% das pessoas que cá vivem têm pai ou mãe que não nasceram na Catalunha, mas integraram-se muito bem naquilo que é a nossa forma comunitária de ser. Para nós negociar e chegar a acordo é uma vitória. Aquilo que eu digo é que a nossa forma de agir, como comunidade, é diferente da forma como as pessoas se comportam em muitos locais de Espanha. Procuramos sempre negociar. Para nós um acordo é sempre melhor que um conflito, enquanto Madrid vê, numa  negociação e num acordo, uma derrota. Por isso, querem sempre impor a sua opinião. É a única forma como veem o exercício do poder, a imposição e a força. 

Está num partido que é herdeiro da Convergência e União, conhecida por ser uma espécie de fiel da balança dos governos – apoiou tanto executivos do PP como do PSOE.

Chamavam a este tipo de atuação “la puta i la ramoneta” [expressão que se popularizou na Catalunha para qualificar alguém que faz o contrário que diz sentir e que joga na duplicidade]. Na altura o sentimento independentista não era maioritário na sociedade catalã. Havia o entendimento, que enquanto estivéssemos no Estado espanhol, se devia conseguir as melhores condições possíveis para a Catalunha e as melhores medidas para o conjunto de territórios que abarca esse Estado. Por isso, fazíamos o máximo de acordos que beneficiassem os catalães. Poder-se-iam ter feito algumas coisas melhor? Certamente. Mas nós apostamos sempre na negociação e em chegar a um acordo. Dou-lhe um exemplo, quando no Estado espanhol se tentou alterar as regras de trabalho dos estivadores por causa das mudanças na legislação europeia, a única coisa que fizeram foi impor uma lei por decreto, que deu tanta celeuma que teve que ser retirada. Aqui na Catalunha, pelo contrário, chegou-se a um acordo entre as partes que beneficiava os estivadores e a economia das empresas. 

Mas não há quem possa considerar isso uma espécie de jeito para o comércio político.

Não acho. Pelo contrário, vejo-o como uma prática democrática que respeita a ideia de comunidade e de bem comum. Quando há mais de uma centena de anos se introduziu os caminhos de ferro no território espanhol, na zona de Madrid as primeiras linhas ligavam as casas de um duque às suas propriedade de férias. Aqui, pelo contrário, ligavam empresas, portos e industrias. Enquanto no resto de Espanha era Borbónica [referência à família real e à nobreza] em vez de respeitar os interesses económicos. Em Espanha a ligação pública ao setor privado segue a regra que o privado lucra à conta do público e dos contribuintes… 

…Não se pode dizer que esse tipo de comportamento que gera corrupção teve um papel aqui na Catalunha. Veja-se a investigação à família Pujol.

Não vou negar que também aqui se fizeram coisas mal feitas, embora não haja sobre o caso que alude nenhuma sentença transitada em julgado. Mas eu nunca fui militante da Convergência e, até 2012, votei sempre Esquerda Republicana da Catalunha. Quando participei na campanha Novullpagar [contra o pagamento das portagens nas autoestradas], falamos com os vários partidos, mas apenas a Convergência quis negociar connosco. Conseguimos parar uma quantidade de multas que tinham passado às pessoas. Foi nesse momento que eu pensei que os únicos que estavam disponíveis para falar eram os da Convergência e, no final de 2012, quando comecei a participar, comecei a perceber que os que trabalhavam e não se importavam com a fotografia. Os outros trabalhavam, mas queriam aparecer na fotografia. Por exemplo, o congresso tem um acordo em que viajamos em primeira classe de Madrid até aqui, porque sai mais barato do que se viajássemos em turística. Os outros preferem pagar mais, para fingir que viajam em condições mais baratas.

Considera-se uma pessoa de direita ou de esquerda?

Repare que eu votava na Esquerda Republicana da Catalunha e agora estou no PDCAT. Eu acho que a função de um político é servir as pessoas e rodear-se dos melhores. Nós nunca seremos os melhores em tudo. Para mim é menos importante a cor política das pessoas do que a sua competência. O setor político do PDCAT foi o único que cortou com a gente que já não os representa e abriu-se à sociedade. Vieram pessoas de muito lado. É um partido central e transversal, que não é nem muito à esquerda, nem de direita, e que tem a ambição de governar para todos. Isso não significa que não haja divergências e a necessidade de assumir uma posição não pode eludir esses problemas. Há temas que são morais e um partido não pode evitar que haja posições diferentes no seu seio, porque implicam questões morais, como por exemplo o debate que agora se faz no congresso sobre a questão da “morte digna”. Em questões como a eutanásia é impossível conseguir que toda a gente tenha a mesma posição. Nenhum partido deve ter a pretensão de capitalizar estas questões. 

Em que medida o chumbo do Estatuto afeta a autonomia e os levou a este processo?

De muitas maneiras. Há dezenas de leis que aprovamos com um largo consenso no parlamento catalão, que são pura e simplesmente chumbadas sem outra razão senão afirmar o poder de as chumbar. Aprovamos uma lei da Pobreza Energética, que permitia apoiar as famílias mais carenciadas que não tinham capacidade de pagar a energia. O Tribunal Constitucional chumbou-a. Passado um tempo, os partidos que defenderam o chumbo e o governo apresentam a mesma lei, com pompa e circunstância, no parlamento Espanhol. Ficamos sem saber a razão por que é Constitucional uma coisa que para nós não o é. Por que razão destróis o que eu faço, se acabas por fazer o mesmo? A ideia devia ser deixar trabalhar e funcionar a autonomia da Catalunha, em vez de estar a obstaculizá-la permanentemente. Chumbaram 36 leis aprovadas pelo parlamento da Catalunha, e depois têm a lata de dizer que a única coisa para que trabalhamos é para o “processo” [nome dado à dinâmica independentista para conseguir sair do domínio do Estado espanhol]. Foram aprovadas no parlamento de Espanha nove leis, e 22 no da Catalunha. Depois dizem-nos que somos nós que não trabalhamos, quando são eles que se dedicam mais a obstaculizar o trabalho dos catalães do que a fazer qualquer coisa de positivo para o povo. Aquilo que estamos a viver é o desligar da Catalunha e dos catalães de Espanha, aqui as pessoas já se sentem pouco representadas por esse poderes centrais. 

Não me parece que esse processo vá no caminho de ser pacificamente negociado.

Isso porque para o governo espanhol qualquer acordo é visto como uma perda. Não estão interessados em nenhuma negociação, apenas lhe serve a imposição. Veem qualquer esforço de conversar e de chegar a um acordo como uma derrota. Chegamos até aqui de uma maneira que nós não queríamos chegar. Dizem-nos: “é que não há diálogo da vossa parte”. Não é verdade, tentamos, tentamos, tentamos dialogar, mas encontramos sempre as portas fechadas. Há dois anos fomos ao Congresso dos Deputados  pedir que houvesse um referendo, a resposta foi não, porque não era constitucional.

Mas os catalães votaram essa mesma Constituição?

Eu não tinha nascido. 70% da população que vivia nessa altura, morreu. Para além disso, quando se pôs a questão do Estatuto da Catalunha, em 2009, esperou-se a sentença do Tribunal Constitucional. Ficou claro, foi expresso dezenas de vezes nos jornais, o que significava romper e não aceitar esse estatuto. Aquilo que estava em causa era a manutenção do pacto constitucional, a não concretização e desenvolvimento dos poderes das autonomias significava exatamente isso, o esgotar desse pacto. O ridículo é que o Constitucional chumbou artigos que permitiu ficarem vigentes em outras autonomias. As regras aceites por todos em 1978, hoje já não fazem consenso. E não fazem, não só porque passou tempo, como, sobretudo, porque eles mudaram a leitura delas e não há infelizmente um árbitro neutro. 

O que se vai fazer depois de 1 de outubro?

A força que nós temos e que eles não têm é a da vontade das pessoas. Essa é a nossa força e a expressão dela vai tornar a independência um processo irreversível.

Não teme que o único irreversível seja a repressão e as multas? Depois da consulta popular de novembro de 2014, a justiça inabilitou uma série de políticos e o Tribunal de Contas multou com 5,2 milhões de euros ao antigo presidente do governo catalão, Artur Mas.

Isso é o cúmulo, aqui o dinheiro dos contribuintes foi utilizado nas escolas e outras medidas sociais, em vez de servir para tapar buracos financeiros e salvar banqueiros. A Audiência Nacional recusou-se a julgar os culpados do caso Bankia. É um exemplo, entre muitos, de uma justiça e de um Estado que multa com 5 milhões quem defende o direito de um povo a decidir o seu futuro, mas ao mesmo tempo deixa sem serem devidamente julgadas pessoas que dão 50 000 milhões de prejuízo aos contribuintes. Naturalmente, essas medidas só servem para nos tentar atemorizar. Aquilo que é importante é dar aos catalães o seu direito a expressarem-se. Apesar de nós sabermos que isso vai ser um caminho complexo até porque vivemos num país em que grande parte da informação é intoxicação governamental. Há escândalos, a esse respeito, que muita gente pretende varrer para baixo do tapete. Porque razão, por exemplo, a TVE foi expulsa, em 2015, do comité informativo da União Europeia? Porque foi considerada que não era uma televisão pública, mas uma espécie de aparelho de propaganda do Partido Popular [no dia seguinte ao referendo os trabalhadores dos canais público da Catalunha emitiram um comunicado a protestarem por terem sido proibidos de filmar e passar as imagens da violenta repressão das forças policiais durante o 1 de outubro]. Essa notícia, que seria primeira página em qualquer país, não é possível ler em nenhum dos muitos jornais que falsificam notícias sobre a realidade que se vive na Catalunha. Esta gente quer manter o seu poder. Mas é preciso continuar a lutar, tenho pessoas que me dizem que lhes dá mais medo prosseguir na situação em que estão do que a incerteza de saírem de Espanha, tal é a forma que as coisas estão. O dia de 1 outubro é o princípio do fim daquilo que está, e vai ser o início de uma nova era. 

Não há um pouco de pensamento mágico nisso?

Não sei o que se vai passar no futuro próximo, mas tenho a certeza que o dia 1 de outubro foi um marco que assinala um momento de viragem.