Júlio Isidro: “Vivo muito mais de aplausos do que de shares, ratings e cachês”

Júlio Isidro: “Vivo muito mais de aplausos do que de shares, ratings e cachês”


“Penso que as pessoas têm respeito por mim pela minha coerência. Algumas críticas referiram-se a essa coerência como monotonia”


Falar de televisão em Portugal é falar de Júlio Isidro. Quando, no próximo ano, a RTP comemorar o seu 60.º aniversário, o profissional de televisão – “não me considero apresentador, isso é só mais uma coisae é a ponta do icebergue” – celebrará 57 anos à frente (e atrás) das câmaras. Na autobiografia que acabou de lançar, “O Programa Segue Dentro de Momentos”, Júlio Isidro, que faz 72 anos a 5 de janeiro, diz que quer retirar-se quando chegar aos 60 de carreira, mas depois desta conversa ficamos com a sensação que ainda há muitas ideias para concretizar. Hoje encontramo-lo com regularidade na antenada RTPMemória a contar histórias inesquecíveis. Foi depois de mais um dia de trabalho, a escavar nos arquivos da televisão pública, que se sentou connosco a recordar histórias de família, o segredo da longevidade e o seu papel nos dias de hoje na televisão.

O título da sua biografia, “O Programa Segue Dentro de Momentos”, mostra o seu lado de resistente, do homem que não se resigna, que vê o seu programa sempre para continuar?

O programa será sempre para continuar enquanto acontecerem duas coisas: eu me sentir física e mentalmente apto – que é a circunstância neste momento, o amanhã nunca se sabe – e enquanto as pessoas que mandam na televisão, concretamente nesta, que não faço tenções de ir para outra, considerarem que sou útil. As duas coisas, por enquanto, estão a conjugar-se e não há nenhuma razão para que o programa não vá seguindo, sempre dentro de momentos.

E os espetadores? Sente-se acarinhado?

Nunca me senti tão acarinhado pelos espetadores como agora. E digo isto com 56 anos de carreira e com picos extraordinários de grande popularidade. É como as relações entre um homem e uma mulher: primeiro a paixão e depois o amor consolidado. O que estou a viver agora é o amor consolidado, portanto até tenho mais manifestações de carinho do que tinha antes. Na altura era a grande euforia e “viva o Júlio Isidro!”; agora é mais “que bom encontrar o Júlio Isidro”, porque “pertence à minha vida”, “está na minha memória”, ou “ainda bem que me mostrou aquela música”. Ainda há bem pouco tempo recebi uma carta de uma jovem senhora a contar-me a história de um dia em que estava à porta de um teatrinho, que não a deixavam entrar porque não tinham bilhetes e ela recordou que fui eu que fui buscá-la pela mão. Nesta altura sinto-me ainda mais acarinhado e não creio que seja pela ideia do coitadinho que está velho e trôpego, mas antes pela minha vida coincidir com a vida de tanta gente.

É preciso lutar muito contra essa ideia do coitadinho do velhinho?

Naturalmente que nunca vou deixar que me chamem coitadinho – vou sair antes de isso acontecer. O “coitadinho do velhinho” é ser-se aplaudido por aquilo que se foi e não por aquilo que se é, e eu não quero isso. Nesta altura continuo a considerar que, se sair, sairei muito bem, mas ninguém vai dizer que sou uma sombra do que fui, que têm memória daquilo que fiz e por isso mereço umas palminhas pelo passado e pelo presente. Vivo muito mais de aplausos do que vivo de shares, ratings e cachês.

Vamos falar do presente, da forma como o seu trabalho chega à antena. Na RTP Memória faz, atualmente, os programas “Inesquecível” e “Traz P’ra Frente”. Mesmo sendo num canal de cabo – agora já no serviço de Televisão Digital Terrestre (TDT) – o desafio continua a ser estimulante?

A RTP Memória está incluída, desde 1 de dezembro, no serviço de TDT, mas mesmo antes, quando estava só no cabo, nunca medi o esforço do meu trabalho, o empenhamento em qualquer projeto, pelo share do canal. Posso trabalhar para um estádio e posso trabalhar para um estúdio; posso trabalhar para uma grande sala de cinema ou para uma sala de cineclube. A RTP Memória foi, durante muito tempo, uma sala de cineclube, mas curiosamente, quando eu frequentava os cineclubes, era onde passava o cinema de eleição. Talvez com menos público, mas eventualmente com mais interesse. A qualidade do meu trabalho não está feita em conformidade com o potencial do canal.

É esse o segredo da longevidade à frente das câmaras, mas também o segredo do respeito que as pessoas têm por si? Épor manter uma linha uniforme ao longo dos anos?

Penso que as pessoas têm respeito por mim pela minha coerência, sendo que, curiosamente, algumas vezes, algumas críticas, se referissem a esta coerência no sentido de uma certa monotonia ou de um estilo inamovível. Ou, de uma forma mais prática, “faz sempre a mesma coisa”. Não, o Júlio Isidro não faz sempre a mesma coisa, mas nunca deixa ser de quem é, que é uma coisa completamente diferente. Não visto roupas muito diferentes, porque as pessoas estão à espera daquilo que sou e não de outra coisa qualquer. Quero que esperem de mim aquilo que sou e não mais.

A exigência na RTP Memória vai ser maior por estar em canal aberto?

Não. A RTP Memória tem sido sempre feita com tanto rigor, exigência e com tanta vontade de fazer bem, que a única coisa que mudou foi o meio. Estando ou não na TDT, ia continuar o “Inesquecível”, o “Traz P’ra frente” e as pequenas rubricas diárias – o “Gramofone” e a “RetroEscavadora”, os locutores de continuidade, as belíssimas séries. Se está a fazer bem feito, o que vai acontecer em sinal aberto é que vai haver mais gente a fazer bem feito. Esta é a minha tese.

Tenho a sensação de que, ao longo dos 56 anos de carreira, nunca assumiu uma postura de estrela de televisão. Pelo contrário: até me parece que preferiu passar os holofotes e o estrelato para outros.

Agradeço que me ponha essa questão, porque o facto de nunca me ter assumido como estrela tem a ver com (ri-se) não ter grande consideração por esse estatuto, com aquilo que de negativo ele possa ter. Ao nível mundial há algumas estrelas, mas, curiosamente, as que brilham mais são aquelas que menos se assumem para brilhar: nós adivinhamos-lhes o brilho, mas não são elas que dão lustro a si próprias para brilhar. Para mim, o meu entrevistado ou o convidado musical é que são os protagonistas. Eu sempre considerei que era um meio e não um fim: quando os papéis se invertem, as pessoas até se sentem meio desagradadas, por excesso de representação do apresentador. Nunca o quis fazer, por uma questão formal. Mas até em termos pessoais, considero que o estrelato é lutar contra um anonimato inevitável; um combate dilacerante, trágico, perante uma coisa que as pessoas, às vezes, não querem ter noção: a de que um dia vão ser esquecidos.

Aposto que conviveu com muita gente assim.

Claro. E na atualidade muito mais! No meu tempo de jovem, as pessoas apareciam nas revistas porque estavam a fazer alguma coisa. Agora aparecem nas revistas, em primeiro lugar, e depois é que vão fazer alguma coisa. Não quero que a capa da revista tenha a ver com um divórcio, salvo seja; ou porque um dia fui mal-educado com alguém; ou por ter tido um acidente de automóvel. Quero que as revistas me abordem por questões de caráter profissional. Os namorados e as namoradas, as pequenas histórias, interessam, mas para a televisão do buraco de fechadura e não para a televisão de ecrã.

Vê muita televisão?

Sou um pouco restrito a ver televisão. Vejo televisão numa perspetiva meramente prática e utilitária: vejo informação – e gosto de ver informação das várias fontes, para perceber melhor o que é a informação, a forma como está coordenada. Gosto do contraditório, apesar de às vezes ter dificuldade em encontrá-lo porque o coro canta muito afinado.

Os anos de experiência na televisão deixam-no perceber quando é o coro que está a cantar demasiadamente afinado?

Tento, mas se conseguisse perceber essas coisas todas era um privilegiado. Não deixo de ser um consumidor, que está do outro lado. Gosto muito da informação, de documentários e devo dizer que na televisão em Portugal, e não apenas aqui na minha casa, se faz bom documentário de investigação. Poder-se-ia fazer mais, mas as coisas demoram tempo a ser feitas e é preciso encontrar jornalistas para o fazer, mas também patrões que estejam dispostos a patrocinar aquilo que aparenta ser um grupo de jornalistas a fazer muito pouco.

Sobretudo numa altura em que se vive com a necessidade de imediatismo.

É a embalagem perdida. É o soundbyte. É muito mais interessante fazer entrevistas para aprofundar o conhecimento de alguém que estamos a entrevistar e das implicações da sua atividade, da sua leitura do mundo, do que propriamente captar um soundbyte à saída de uma porta ou entrada numa sala. É isso que desperta o espírito coscuvilheiro que todos temos, mas que não tem a consistência que eu gostava que tivesse.

E entretenimento na televisão, não vê?

Tenho que me sentir mesmo entretido. Há muitas coisas do entretenimento que não me entretém. Mas devo dizer que, se o entretenimento tiver alguma componente formativa, começa a interessar-me muito mais.

Quer dar um exemplo?

Gosto de ver um ou outro concurso de cultura geral. Os quiz shows normalmente interessam-me, mas já existem muito antes da invenção do arroz doce! Aliás, até há um filme extraordinário chamado “Quiz Show”! Quando comecei a crescer e, aos meus 12 anos, apareceu a televisão em Portugal, via o Artur Agostinho a fazer o quê? Um quiz show! Perguntas às pessoas, com um cartãozinho à frente. Depois foram-se metendo componentes, mas a essência é a mesma. Tal como os concursos de talentos: agora mete-se mais tecnologia, mais um gimmick [artifício] ou outro – a cadeira que roda ou o júri que diz umas coisas – numa coisa que já existia.

É difícil fugir ao essencial?

As coisas podem ser retrabalhadas, mas quando alguém disser que inventou a pólvora é importante recordar-lhe que já existia.

É isso que torna a televisão, eventualmente, menos apelativa? É isso que faz com que as pessoas procurem alternativas ao entretenimento televisivo?

As pessoas são insaciáveis e têm direito a isso. Mas há uma insaciabilidade que me incomoda: aquela de comer e deitar fora. A televisão, do meu ponto de vista, não deve nunca perder a noção de que é um meio de comunicação social. Aquilo que eu penso que está cada vez mais em causa é a ideia de comunicação social. Será que socialmente estamos a comunicar? Isso era uma tese que nos deixaria a falar muito tempo, mas será que nós, no nosso dia-a-dia, estamos mesmo a comunicar? Temos cada vez mais meios de comunicação à disposição, mas a comunicar cada vez menos. Esta nossa entrevista pode ser longa, mas tenho certeza que vai ser muito menos do que aquilo que lhe estou a dizer; e se fosse um vídeo transformaria isto num clipe de dois minutos.

Em televisão, o Júlio Isidro já fez de tudo: começou, aos 15 anos, por apresentar um programa de bricolagem. Mas também apresentou notícias, fez entrevistas e reportagens, tauromaquia, talk-shows e os chamados programas de variedades. Diz que são mais de 20 mil horas em direto!

Só não fiz futebol! Mas fiz Fórmula 1 durante muito tempo, só que para rádio. Há algumas coisas que fiz em rádio e não fiz em televisão.

Onde é que se vai buscar tanta versatilidade?

Não se vai buscar: inicialmente é quase que imposta. Esse conceito de há uns anos, do meu ponto de vista e que me desculpem as novas gerações – era melhor, tal como o ensino. Já sei que podem chamar-me de conservador, ainda que não o seja, ideologicamente, mas considero que um ensino mais universalista nos dá uma visão muito maior do mundo e das coisas. Na altura, em termos profissionais, não havia esta compartimentação tão grande como hoje, além de que havia menos gente para fazer a mesma coisa. Lembro-me que, num mesmo dia, a partir das 16h, num programa de três horas de rádio, o “Movimento”, em que eu era o repórter e o pivô era o Fialho Gouveia, fiz quatro coisas completamente diferentes: saí com o carro de exteriores e fui fazer a reportagem da fase final de construção do parque de estacionamento dos Restauradores; logo a seguir fui fazer um concurso hípico que estava a decorrer no Campo Grande; depois fui fazer uma entrevista e terminei com outra entrevista ao realizador francês Claude Lelouch, a propósito do filme “Les Uns e Les Autres”, à porta do hotel Ritz, no banco de trás do carro de exteriores, porque não tinha cabo para ir até ao quarto. Isto permitiu-nos, a mim e aos meus colegas, sermos uma espécie de clínicos gerais: tocávamos em tudo! Hoje faz-me imensa confusão que a parte de produção tenha um papel quase tão exclusivo que o apresentador seja só o apresentador.

A educação que começou por ter em casa foi muito importante. O seu pai, José Isidro do Carmo, teve um papel determinante?

Em vários aspetos! Primeiro a conceder-me inteira liberdade para ser aquilo que quisesse. Mas nem nesse aspeto eu lhe disse alguma vez que queria ser profissional de televisão – porque não me considero apresentador de televisão, isso é só mais uma coisa, a ponta do icebergue. O meu pai sabia dos meus sonhos, intenções e das coisas de que eu gostava, mas em termos de formação cultural, devo-lhe tudo. Não foi daqueles pais que me punha uma resma de livros na mesa-de-cabeceira com o aviso de que ia perguntar-me coisas sobre o que tinha lido. Falávamos sobre muitas coisas e eu acompanhava com imensa curiosidade e orgulho, ouvia o meu pai como um livro aberto. Em termos do léxico, devo-lhe muito; em termos da minha construção gramatical, escrita e falada, devo-lhe tudo. Bastava fazer uma pergunta ao meu pai sobre uma palavra qualquer e ele ia logo explicar-me se o étimo era latino ou grego.

O seu pai tinha formação em Filologia Clássica e Histórico-Filosóficas, mas não era professor.

É verdade. Ele tinha tanto talento como tinha pouco jeito para se promover na vida. Tinha essa formação, mas nunca ensinou: foi funcionário de uma companhia de seguros, sem ter a aspiração de ser aquilo que as suas aspirações lhe permitiam, com a agravante de que tinha skills [talentos] de caráter pessoal extraordinários, como as qualidades musicais quase anormais! Não sabia uma nota de música, mas chegou a fazer os ensaios da Orquestra da Emissora Nacional e era afinador de pianos, tocando todos os instrumentos possíveis e imaginários. Foi sempre inspirador para mim. Eu sou aquilo que o meu pai não foi, com menos de metade daquilo que ele era.

E da sua mãe, Brígida de Pinho do Carmo, o que herdou?

Um pouco do espírito de iniciativa. Da mistura entre a retração natural, quase antissocial, do meu pai e a expansividade da minha mãe resultou o Júlio Isidro. Também não sou como a minha mãe era, uma verdadeira artista de palco sem ser, muito extrovertida, capaz de meter conversa em qualquer lado, de alimentar aquelas conversas sociais. Eu fiquei a meio caminho: sou persistente, trabalhador, sou razoavelmente comunicativo: mais comunicador do que comunicativo.

Tem duas irmãs gémeas: a Dadão (Maria da Conceição Amaral) e a Dadinha (Maria Eduarda Barreto). Aos quatro anos, quando elas nasceram, ficou gago com o trauma de ver duas crianças a aparecerem-lhe lá em casa e a roubar-lhe o protagonismo. Como é que se desenvolveu a relação com as suas irmãs?

A minha relação com elas era a melhor possível. Uma enorme cumplicidade em que elas apararam sempre as minhas ideias. Eu escrevia peças de teatro lá em casa, o meu pai revia-as e depois era eu que, com as portas da sala tiradas, fazia o palco. Comprava chita para fazer pano de boca e as minhas irmãs eram as atrizes, juntamente com amigas delas e alguns amigos meus. Também cheguei a fazer cinema em casa, numa caixa de papelão: o meu pai alugou uma máquina de oito milímetros e uns pequeninos filmes, do Buster Keaton, do Charlot, Bucha e Estica… adorava estar perto do meu pai como ajudante de projecionista porque ele era péssimo em tudo o que fosse bricolagem! Era incapaz de pregar um prego. Sempre estive muito atarefado a fazer essas coisas. Uma vez a minha mãe até me disse: “As pessoas é que não sabem, mas aquilo que tu fazes na televisão é exatamente aquilo que fazes aqui em casa.”

E morava muita gente em sua casa, na Avenida João Crisóstomo, em Lisboa: os pais, as irmãs, a avó, tias, empregada doméstica e o filho da empregada doméstica… Como eram os serões lá em casa?

Eram muito interessantes até começar a televisão! Havia uma mesa de jogo: as avós jogavam coisas infantis, sem ser a dinheiro; o meu pai conversava com visitas que iam lá quase todas as noites e a miudagem ouvia. Mas os serões eram em família e amigos. Quando apareceu a televisão, habituados que estavam ao cinema, ficávamos sentados na sala no escuro total! Víamos televisão como se fosse cinema: quando acabávamos de jantar, a empregada punha as cadeiras em fila, tal como no cinema, e sentávamo-nos à frente do ecrã, caladinhos. Foi logo aí que começou a diminuir a nossa capacidade de convívio.

Esses serões lá em casa a ver televisão foi o que lhe fez ter vontade em querer pertencer àquele mundo da televisão?

Nada! Eu via a televisão como uma coisa normal. Nasci na Avenida João Crisóstomo, mesmo ao pé da Sá da Bandeira, estava ali o muro da antiga Feira Popular, para onde eu ia de propósito ver o que era aquela coisa da televisão. Nós vivíamos num ambiente extremamente pacífico, com dez ou 11 anos os meus pais deixavam-me ir lá sozinho. Como não tínhamos dinheiro para pagar a entrada, eu dava a mão a uma senhora qualquer que fosse a entrar, como se fosse filho dela – as crianças acompanhadas de adultos não pagavam! Vi a televisão nascer e três anos mais tarde estreei-me. Mas nunca pensei que isto se transformaria num ofício.

O que é que pensava que ia ser?

Eu tinha imensos planos: quase todos relacionados com a aviação. Pensei em ir para a academia Militar, para Aeronáutica, mas aos 16 anos, num teste desportivo, fiquei a saber que era daltónico e isso era incompatível. Havia uma enorme contradição entre o meu esprit de géométrie e o meu esprit de finesse: tal como o meu pai, era muito virado para letras, mas os meus amigos eram todos fulanos vocacionados para ciências. Então debatia-me entre ser engenheiro ou filósofo. Não fui nem uma coisa nem outra.

Foi a algum casting na RTP?

Fiz provas porque me convidaram. Uma equipa de produtores da RTP foi lá ao meu liceu. Eu cantava no Orfeão do Liceu Camões e o padre Ávila, o regente, sugeriu que fosse fazer provas.

E o casting foi logo com a câmara à sua frente?

Sim, no estúdio do telejornal. Claro que não era a nave espacial de hoje em dia, mas antes uma simples secretária de mogno.

Como é que reagiu à câmara?

Foi a olhar para uma coisa que tinha uma data de objetivas que andavam à roda, consoante o enquadramento. Mandaram-me falar olhando para a câmara, li um texto em português, francês e inglês, pediram-me um improviso sobre uma coisa qualquer de caráter pessoal.E depois pediram-me uma reportagem sobre uma coisa que eu não estava a ver: o 10 de junho. Mas como lá em casa já tínhamos televisão, já tinha uma ideia do que dizer.

Nunca teve aquele nervosinho do direto?

Não! Primeiro por inconsciência e agora é porque já não vale a pena enervarmo-nos. Ainda aqui há dias estava a falar com o José Costa Reis [cenógrafo] sobre a altura em que eu fazia os grandes diretos do “Festa é Festa”, “A Festa Continua”, “Passeio dos Alegres”. Ele disse-me que tinha uma imagem minha: nunca usei aqueles ratinhos de orelha [auriculares] nem teleponto – só mesmo quando estou com outra pessoa para bater tudo certo. E ele lembra-se que aparecia um assistente com um cartaz a dizer “Júlio, aguenta”, quando eu nem sabia o que tinha acontecido e quando retomava o ritmo do programa, não era de barafustar. Claro, se estava resolvido, ia barafustar com o quê? Eu não me enervo a fazer televisão, nem perante os contratempos.

Os seus colegas aqui na RTP pedem-lhe conselhos?

(Ri-se) Não, nunca ninguém me pediu conselhos.

Mas poderia ser um bom formador, não acha?

Já corri o risco de dar opinião, mas sou mais capaz de dar opinião a alguém por quem eu tenha especial carinho, ou em quem eu acredite nas potencialidades. Normalmente é no sentido de análise muito concreta da performance de uma pessoa, mas eu só posso “achar algo sobre alguém”. Enquanto estiver a fazer o mesmo ofício sujeito-me, naturalmente, a que uma pessoa que tenha menos 20 ou 30 anos também ache algo de mim.

E fazem-no?

Normalmente não. Mas esse é um dos maiores sintomas da nossa hipocrisia. Eu próprio, enquanto estive a fazer o master grade de Produção e Realização, ouvi, muitas vezes, as pessoas a dizerem tudo: até comecei por ficar chocado, mas comecei a habituar-me. Lembro-me que quando acaba o teste de alguns, o professor Ted Post dizia: “First reactions?” [primeiras opiniões]. E o fulano que tinha acabado de prestar provas sujeitava-se a tudo! Ninguém o ofendia, mas diziam tudo olhos nos olhos! E quando chegava a mim, eu mantinha a hipocrisia da tradição nacional: “Eu achei bem!” O ser português vive em conspiração permanente, como disse alguém.

Como é que o menino de 15 anos que ia fazer sessões de bricolage na televisão passou a ter tanta importância nas tardes de domingo da televisão?

Essas passagens acontecem sem que eu alguma vez me tenha insinuado. Pedi trabalho, algumas vezes, e é das coisas que mais me arrependo na vida. Ninguém dá trabalho a quem pede. Só pedi algumas vezes e saiu-me muito mal. Mas aconteceu que eu fazia um programa juvenil e já escrevia o guião dos meus momentos – e debitava no programa, sem telepontos. Perceberam isso e começaram a pedir-me para escrever mais umas coisas. A pouco e pouco começaram a ter mais confiança naquilo que fazia. E, inevitavelmente, houve um dia em que terei apresentado a ideia de um programa e alguém aceitou! Quando apareceu a Rádio Comercial, o diretor era meu colega do lado, o João David Nunes. E perguntou-me: “tens alguma ideia para o programa diário das 10h às 13h?” E foi aí que lhe apresentei o “Grafonola Ideal”, que começou a ter imenso sucesso, de tal forma que sugeri começar a fazer mais ao sábado de manhã, desde que me pagassem horas extraordinárias. Foi assim que nasceu o “Febre de Sábado de Manhã”, um programa de rádio que meteu 50 mil pessoas no Estádio de Alvalade por mais três horas extraordinárias do meu ordenado, que era uns quatro contos – 20 euros! Foi nessa sequência que a Maria Elisa me perguntou se eu tinha alguma ideia e se estava disponível para agarrar as quatro horas e meia todos os domingos à tarde na RTP: claro que estava! Se já trabalhava de segunda-feira a sábado, já só faltava o domingo. Foi aí que apresentei a ideia d’“O Passeio dos Alegres”.

Deixou de apresentar ideias na RTP?

Apresentei muitas. Mas desde que estou na RTP Memória que não apresento nada à RTP – à RTP Memória, com certeza que apresento.
 
E à RTP não apresenta porquê?

Olhe, acho que não vale a pena. Há muita gente com ideias, muitas coisas para fazer, e eu também tenho muito que fazer e não quero estar naquela expectativa do “será que vão ou não aprovar?”

Já não quer lidar com as expectativas?

As regras são iguais para todos, não venho com estatuto de general. Sou soldado raso como os outros. O meu envolvimento com a RTP Memória levou a que eu diga estar a viver um grande momento de alegria na minha vida, porque sabia há muito tempo que a RTP Memória devia estar em canal aberto. Fiquei tão satisfeito, ainda mais agora para os 60 anos da RTP – 2017 – que já falei com o meu boss sobre várias. Ele disse-me que são ideias giras, mas, lá está: “vamos ver”!

Li que o Júlio Isidro ainda gostava de vir a fazer dois programas: um deles de bricolagem, mas em casa de telespetadores.

A reparação seria o pretexto para conhecermos pessoas que nos abriam as portas e falavam da sua vida. Uma visita de amigo! Mais do que um canalizador, seria um social canalizador!

O outro programa era um Late Night Show, diário, com convidados.

Como vocação natural da minha vida e da minha carreira, era mesmo fazer um programa onde eu pudesse, de novo, abrir portas a quem está aí de novo ou a quem estando por aí ninguém liga nenhuma. Como se estivessem apagados do mapa.

E nenhum destes programas teria cabimento numa grelha de televisão?

Estou a trabalhar na Rádio e Televisão de Portugal que é paga pelos contribuintes e presta serviço público. No caso de uma televisão pública como esta, com uma administração que até fez uma carta de princípios de ter um caráter distintivo sobre o que é o serviço público de televisão, estas duas propostas são perfeitamente normais. Dizer que os programas são bons porque tem boa audiência? Não é tão líquido quanto isso. A ideia deve ser fazer televisão que seja suficientemente boa, interessante e apelativa para que as pessoas vejam, mas é evidente que ao descer o nível e criando aliciantes de gosto duvidoso, chama audiências.

Disse também, noutra entrevista, que arrepende-se de poucas coisas que tenha feito. Arrepende-se de ter deixado algumas coisas por fazer?

Ter pena de não ter feito alguma coisa, nem por isso. Praticamente não há nada que não tenha qualidade a que eu não tenha deitado a mão, sempre na esperança que talvez reparem. Eu tenho feito exame sempre! Eu diria que esta coisa de estar a fazer exame até pode ser uma injustiça, mas eu encaro de outra maneira: ainda bem que é assim. A complacência que vi ter em relação a algumas pessoas, não as ajudou. Como nunca senti transigência ou complacência, cada vez que me convidam para alguma coisa, preparo-me melhor: faço cada vez mais trabalho de casa, estudo cada vez mais, porque nesta fase da vida não tenho uma segunda oportunidade para uma última boa impressão. E como faço tenções e de abandonar um dia destes, quero sair com uma boa impressão e por isso tento fazer sempre bem feito – sem ser professor, conselheiro ou crítico. A não ser de mim próprio.  J