‘Um militar, fora do ativo, tem tanto direito a concorrer a um cargo político como um pescador ou um jurista’

‘Um militar, fora do ativo, tem tanto direito a concorrer a um cargo político como um pescador ou um jurista’


Chefe do Estado-Maior da Armada, tornou-se conhecido do grande público aquando da task force da covid. Publicamente, o almirante Gouveia e Melo é um dos militares mais destemidos e não rejeita uma incursão na política.


A propósito dos 50 anos do 25 de Abril, golpe militar liderado pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) que acabou com o Estado Novo, o Nascer do SOL decidiu pedir entrevistas às mais altas chefias militares (do Estado-Maior-General e dos três ramos: Armada, Exército e Força Aérea). As perguntas, a pedido dos próprios, tiveram de ser feitas por escrito e foram enviadas antes das eleições legislativas. Esta semana, publicamos a entrevista com o chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo; seguindo-se a do chefe do Estado-Maior do Exército, general Mendes Ferrão.

Onde estava e o que fazia no 25 de Abril de 1974?

Quando ocorreu a revolução de 25 de Abril encontrava-me em Moçambique, mais concretamente em Quelimane, na foz do rio dos Bons Sinais. É a cidade onde nasci, passei a minha infância e juventude e de onde tenho muito boas recordações. Foi em Quelimane que senti o sopro dos ventos de mudança da revolução e da descolonização que afetaram a vida de toda a minha família. Lembro-me perfeitamente desse dia. O meu pai chegou a casa e disse que tinha acontecido uma revolução em Lisboa. Passado pouco tempo saímos de Moçambique, quando tinha 14 anos, e fui viver durante um curto período para Viseu, antes de ir para a gigantesca metrópole de São Paulo. Curiosamente, largámos de Lisboa a bordo do paquete Cabo de San Roque, com destino ao Brasil, uns dias antes do 25 de Novembro de 1975. Nesse dia já estávamos a cerca de 150 milhas a sul do Equador. Quando recebemos a informação do que se estava a passar, o meu pai comentou que, provavelmente, tínhamos definido a nossa saída para o Brasil cedo demais.

Como analisa, cinco décadas depois, a contribuição das Forças Armadas (FA) para o processo de democratização do país?

As Forças Armadas tiveram um papel preponderante na transição de um regime ditatorial para um regime democrático, bem como na consolidação da democracia em Portugal, que este ano comemora 50 anos de existência. Ao longo destes 50 anos as Forças Armadas foram e são um dos pilares fundamentais da nossa democracia e, cumulativamente, o último reduto da soberania nacional. 

Como estão as nossas FA 50 anos depois?

Ao longo destas cinco décadas a situação nacional e internacional mudou muito. Saímos de uma guerra em África, para um período de paz e de maior aproximação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e posteriormente entrámos na União Europeia (UE). Contudo, nos últimos anos, o mundo tem caminhado para uma situação de maior instabilidade e insegurança. Atravessamos tempos difíceis e instáveis, onde as democracias e o modo de vida ocidental, baseado nas liberdades individuais e no direito enquanto elemento normativo internacional, tal como a conhecemos atualmente, poderão estar em risco. Nestes últimos 50 anos, as Forças Armadas também mudaram de paradigma. Deixaram de estar focadas e organizadas no combate contra forças de guerrilha, que se assistia nos três cenários em África, para operações mais convencionais no âmbito da NATO e em missões expedicionárias de apoio à paz, algumas delas no âmbito da UE e da Organização das Nações Unidas (ONU). Ao nível nacional, as Forças Armadas tornaram-se mais abrangentes passando a dar mais foco às missões de âmbito não militar como é exemplo as missões de busca e salvamento, coordenadas e realizadas pela Marinha e pela Força Aérea e de fiscalização dos grandes espaços marítimos sob jurisdição e soberania nacionais.

No presente momento, as Forças Armadas portuguesas encontram-se perante grandes desafios, que sendo oportunidades, rapidamente se poderão transformar em ameaças. Por um lado, temos um enorme espaço marítimo sob jurisdição nacional, que poderá ser o último ativo estratégico do país e que importa ocupar e rentabilizar de forma sustentável. Nesse desiderato, a Marinha e a Força Aérea são parceiros fundamentais para ajudar nessa ocupação e para garantir a segurança e a sustentabilidade dessa enorme zona marítima. Por outro, face situação internacional instável e perigosa, com uma guerra em curso na Europa, é necessário que as Forças Armadas se preparem para uma eventual situação de conflito mais generalizado no espaço europeu, uma vez que a cooperação parece estar fora do alcance, a melhor estratégia para evitar um conflito generalizado será a dissuasão, o que obrigará ao reforço das Forças Armadas europeias.

Com a falta de efetivos, pensa que as missões portuguesas estão em risco? Neste momento há mais oficiais e sargentos do que praças…

A falta de efetivos é um dos principais problemas das Forças Armadas ou mesmo o mais importante. No caso da Marinha, continuamos a cumprir com as missões nacionais e internacionais que nos são incumbidas. No entanto, este empenhamento só tem sido possível devido ao elevado esforço, abnegação e espírito de missão por parte de todos os militares, militarizados e civis da Marinha, principalmente aqueles que se encontram em missão, seja no mar ou em terra. Importa realçar que o nível operacional atual não será sustentável sem reforços significativos de pessoal.

As FA têm mesmo meios e capacidade para honrar os compromissos assumidos com a NATO?

Como Chefe do Estado-Maior da Armada, posso afirmar que nos dedicamos, todos os dias, a fazer a gestão mais eficiente e eficaz dos recursos materiais e humanos que temos à nossa disposição, de forma a honrar os compromissos nacionais e internacionais.

A ‘tropa’ portuguesa é bastante enaltecida em países estrangeiros devido à sua participação em zonas como a Bósnia ou a República Centro Africana. Em Portugal tem o mesmo reconhecimento?

As Forças Armadas portuguesas, por norma, executam as suas missões de forma exemplar. A Marinha, por exemplo, coordena as ações de busca e salvamento marítimo na nossa área de responsabilidade nacional com taxas de sucesso muito acima da média e que são uma referência a nível internacional. A Marinha e a Força Aérea, têm apoiado a Autoridade Marítima Nacional, mais concretamente a Polícia Marítima, no combate ao narcotráfico de haxixe, tendo sido obtidos resultados muito positivos. Tal como referiu, o Exército tem feito um trabalho de referência no difícil cenário da República Centro Africana. Julgo que as Forças Armadas são reconhecidas pelos portugueses, uma vez que algumas sondagens indicam que a população deposita muita confiança nas suas Forças Armadas e nos militares.

Como analisa a situação da segurança na Europa?

Tal como já referi, vivemos momentos de grande instabilidade e insegurança. Estes momentos são geradores de mudanças verdadeiramente significativas quer na geoeconomia quer na geopolítica. Nestes ciclos, a história humana é pródiga em acontecimentos cujos resultados consistem invariavelmente na derrota das sociedades supostamente mais “civilizadas” às mãos das mais “bárbaras”. As sociedades mais avançadas e com melhores índices de bem-estar são normalmente um alvo fácil. A raiz desta derrota não reside em qualquer superioridade moral-ética, material, ou económica dos mais “bárbaros”, mas a maior parte das vezes, como a história demonstra, simplesmente pela pura força de vontade e capacidade de sacrifício destes, alicerçada numa perceção de inevitabilidade utópica, geralmente autocrática e, em grande parte, fruto de sentimentos mais básicos de cobiça e raiva. Os “bárbaros” encontram uma atitude acomodada, receosa, e consequentemente uma resposta tardia dos “civilizados”. Muitas vezes em tentativas vãs de negociar a preservação do status quo anterior que são habitualmente encaradas como fraqueza e oportunidades pelos primeiros. Atualmente, em especial no mundo ocidental, vivemos tempos perigosos e ignorá-los não é uma opção. Estamos perante um momento em que dois dos pilares da nossa segurança e prosperidade, a NATO e a UE, poderão vir a ser submetidas às maiores provações e testes de stress. Face à situação atual, a Europa ocidental deverá considerar a reativação urgente de uma indústria militar, que não se fazendo em tempo, pode vulnerabilizar a segurança europeia e ocidental. A Rússia já tem grande parte da sua máquina industrial a “todo o vapor”, com três turnos diários, a contribuir para o crescimento económico e para o desenvolvimento tecnológico desta. Caso a Europa não desenvolva/reforce rapidamente, num prazo de três anos, um complexo industrial-militar sólido que reponha stocks e crie um forte efeito dissuasor, três situações poderão ocorrer a breve trecho: insuficiência militar; incapacidade de competir tecnologicamente a uma escala global; e uma significativa vulnerabilidade geoestratégica a curto médio prazo.

Pode identificar as principais carências de armamento do seu ramo? E das FA em geral?

Trata-se de informação classificada que, por razões óbvias, não irei comentar.

Como vê a condição socioprofissional das FA?

As Forças Armadas, como referido anteriormente, são um dos pilares fundamentais da nossa democracia e, cumulativamente, o último reduto da soberania nacional. Embora seja do desconhecimento de muitos portugueses, os militares, face à sua condição militar, têm os seus direitos diminuídos e os seus deveres ampliados, comparativamente ao cidadão comum, com total disponibilidade, incluindo, se necessário, o sacrifício da sua própria vida. Esta condição militar é essencial para o bom funcionamento das Forças Armadas e da Defesa do país, assim como do próprio regime democrático. Os Chefes do Estado-Maior da Marinha, do Exército e Força Aérea são representantes dos militares perante o Governo e sobre estes recai o dever de tutela. Este dever obriga as chefias militares a pugnar pelos direitos dos seus nos fora apropriado junto do poder político.

Justifica-se revisitar o debate sobre o Serviço Militar Obrigatório?

Face à atual situação geopolítica na Europa faz todo o sentido pensar e debater a capacidade de gerar rapidamente recursos humanos pera a Defesa de um país em caso de necessidade. Noutros países da Europa, o Serviço Militar Obrigatório, ou uma variante deste, tem sido implementado. Não fui adepto de qualquer serviço militar obrigatório até muito recentemente, em resultado da invasão da federação Russa da Ucrânia. O mundo mudou muito nestes últimos dois anos. Há uma guerra convencional de elevada intensidade na Europa que pode vir a comprometer dois dos pilares básicos da nossa segurança e prosperidade, a NATO e a UE respetivamente. 

O que pensa do protagonismo dos militares comentadores, alguns dos quais com posições muito próximas da Rússia?

Que eu tenha conhecimento, todos os comentadores militares encontram-se, fora da efetividade do serviço, normalmente na situação de reforma, pelo que não vejo qualquer inconveniente em comentarem assuntos militares ou políticos. Felizmente, vivemos numa democracia, pelo que cada um tem direito à sua opinião. 

Há muitos oficiais a passarem à pré-aposentação e à reforma muito cedo. A que se deve este desencantamento?

Sempre que um militar da Marinha sai de forma extemporânea (por abate aos quadros permanentes, rescisão ou não renovação de contrato, licença limitada ou licença registada) é efetuado um inquérito para se compreender as razões que o motivaram a sair. Há inúmeras razões para a saída, não só de oficiais, mas também de sargentos e praças na Marinha. A maioria sai por motivos de baixa remuneração e incentivos, pela elevada taxa de esforço e por uma mudança da lei da reforma que desprotege os militares no final de vida.

O protagonismo alcançado pelo senhor Almirante durante a Covid tem sido benéfico para a instituição? Isto é, tem havido mais candidatos?

A missão da Task Force para a vacinação contra a Covid-19 foi, provavelmente, a missão mais mediática em que as Forças Armadas portuguesas estiveram envolvidas nos últimos anos. Eu e o meu Estado-Maior, composto por militares da Marinha, do Exército e da Força Aérea, envergámos o camuflado com a perfeita noção que a imagem das Forças Armadas estava em jogo. Como nas restantes missões que nos são incumbidas, empenhámo-nos nesta com o normal afinco, dedicação e espírito de missão. Sob a minha liderança efetuámos um bom planeamento estratégico, um rigoroso controlo na execução e uma comunicação proativa, aberta e esclarecedora, que foram fundamentais para o sucesso do processo de vacinação. Espero que a Task Force para a vacinação contra a Covid-19 tenha dado uma boa imagem das Forças Armadas, bem como de todas as entidades envolvidas, e que tenhamos sido inspiradores para alguns jovens concorrerem à Marinha, ao Exército e a Força Aérea. É importante realçar que esta exigente, intensa e complexa missão não seria um sucesso, sem a participação dos municípios e sem a dedicação incansável e profissional de todas as pessoas e entidades envolvidas, direta ou indiretamente, na distribuição, no transporte, no agendamento, na preparação e na inoculação das vacinas, em especial das equipas de saúde, auxiliares e voluntários que encontraram nos diversos centros de vacinação COVID-19, bem como de todos os portugueses que não hesitaram em vir ao processo de vacinação.

Há uns anos, havia voluntários com 16 e 17 anos. Hoje o cenário é completamente diferente. 

A falta de efetivos, tal como referido anteriormente, é um dos principais problemas da Marinha e das FA. Nos últimos anos, na Marinha, fizemos tudo o que está ao nosso nível para melhorar o recrutamento. Eliminámos todas as barreiras que são possíveis de eliminar, tornámos os processos de concurso mais fáceis e mais céleres para os/as candidatos/as e abrimos mais concursos. Também apostámos mais na divulgação e promoção dos concursos. Temos melhorado os quantitativos de inscrições e candidatos, mas para que o problema seja resolvido é necessário implementar mais medidas que não estão ao nível da Marinha.

O que pensa da GNR ter competências marítimas?

Como português que paga os seus impostos, considero que estes devem ser gastos da forma mais eficiente e eficaz. No mar, o modelo de atuação, pela própria natureza dos atores (vestefalianos e não vestefalianos), dos fenómenos (humanos e naturais) e das atividades (económicas, políticas, militares, criminais, lazer e outras) apresentar-se-á como essencialmente transversal e abrangente. O mar liberum é poroso por natureza, sem um controlo efetivo, nele coexistem e cruzam-se todos os tipos de atividades humanas e todo o espetro de interesses. Uma marinha mais fechada, concentrada só na atividade militar, não poderá compreender o ambiente marítimo onde opera, na sua totalidade, e sofrerá de uma cegueira seletiva, contrária aos próprios interesses do Estado. 

Por outro lado, países de pequena dimensão e poder vêm-se confrontados com a impossibilidade de sustentarem diferentes marinhas, cada uma com um foco específico numa parte da atividade marítima. A par dessa dificuldade expressa, a multiplicação de atores estatais, com responsabilidades sobre o mar, poderá contribuir para uma atuação mais incoerente e dificilmente sincronizada. Mesmo organizações poderosas como a NATO, estão a mudar a forma com encaram a atividade militar nos espaços marítimos, para modelos idênticos ao da Marinha de duplo-uso, militar e não militar, face as novas estratégias e táticas híbridas usadas por atores estatais ou grandes grupos criminosos.

Atendendo às sondagens que o dão muito bem posicionado na corrida a Belém, poderá equacionar candidatar-se?

Neste momento estou focado 110% na Marinha, a realizar um projeto de transformação estrutural, genética e operacional que se encontra em curso.

Porque acha que há tantos anticorpos quando se fala na possibilidade de um militar concorrer a Presidente da República?

Essa é uma questão que deve colocar a quem acha que um militar, na reforma ou fora da efetividade do serviço, não tem direito a candidatar-se a Presidente da República ou a qualquer outro cargo político. Felizmente, vivemos num regime democrático. Um militar, desde que não se encontre no ativo, tem tanto direito a concorrer a um cargo político como um pescador, um serralheiro, um engenheiro, um advogado, um jurista ou um médico. O mais importante é que o candidato, ou candidata, em questão tenha qualidades de liderança, governação e sentido de Estado. No fim, em democracia, quem escolhe é o “povo”. 

Portugal tem uma zona económica exclusiva enorme, das maiores do mundo. A Marinha tem capacidade para cobrir todo esse território?

Portugal é uma nação marítima. Foi o mar que nos forjou como povo e país. Foi graças a este que atingimos uma dimensão global. Como já referi, as áreas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional são o último grande ativo estratégico do país que importa ocupar e rentabilizar em proveito do povo português, bem como o facto desse ativo estar no cruzamento das principais rotas marítimas do mundo ocidental e Europa. O país necessita de se voltar novamente para o mar e pode contar, como sempre contou, com a sua Marinha. A configuração arquipelágica do território português, a dimensão do espaço marítimo sob soberania e jurisdição nacional, os interesses e as alianças exigem que Portugal seja dotado de uma Marinha de dimensão oceânica, capaz de ocupar e dissuadir atuações ilegítimas e/ou contrárias aos interesses nacionais. A Marinha, na sua transformação, estrutural, genética e operacional pode e é um parceiro essencial para alavancar as universidades e a indústria neste regresso ao mar, contribuindo para gerar conhecimento e riqueza para o país e ocupar e controlar os nossos espaços marítimos. O mesmo mar que é uma oportunidade, se não for ocupado e controlado, pode também transformar-se rapidamente numa ameaça.