1. Muitos são os que, hoje, se queixam da falta de autoridade no país.
Dizem que as polícias não conseguem exercer a autoridade: mais concretamente, de que as não deixam bater e disparar quando e como entendem.
Dizem o mesmo quando falam dos professores e da sua relação com os alunos: falta-lhes, acreditam, a cana de bambu que vergastava as pernas dos insubordinados e preguiçosos.
Queixam-se, ainda, da falta de respeito pelos magistrados e pela Justiça; que esta é branda, mesmo quando aplica, em média, as mais elevadas penas de prisão da UE.
Queixam-se, enfim, da falta de respeito pelas instituições e símbolos do Estado: por exemplo, do depurado design da bandeira nacional que, sem grande inspiração – admita-se – serve, agora, de timbre aos documentos oficiais.
Queixam-se, como crentes que juram ser, da falta de respeito pela Igreja e pelos padres – vá-se lá saber porquê -, mas nunca referem o que diz o Papa Francisco sobre os grandes temas do catolicismo e da sociedade, de quem, objetivamente, não gostam, nem respeitam.
Queixam-se, em suma, da falta de respeito pelos que, entre nós, sempre mandaram.
Da falta de apreço e reconhecimento da autoridade dos que, há cinco décadas, deixaram de mandar e isso dói-lhes verdadeiramente.
Fazem-no raivosos e empolgados, arrancando berros de ira do seu auditório, apontando o dedo aos que consideram os causadores de tal caos: os famigerados seguidores de abril e sua descendência.
E, quando o fazem, insultam, sem pejo, por palavras e gestos, os seus interlocutores e adversários – mesmo que altos responsáveis do Estado – contribuindo, assim, para agravar ainda mais, a erosão da autoridade, de que dizem carecer o país.
2. Quem ouvir, hoje, os programas das televisões, rapidamente constata que eles reproduzem, sem critério, nem sombra de repúdio, todo o tipo de estrepitosas desconsiderações contra aqueles que, legitimamente, exercem qualquer tipo de autoridade política, social, cultural e científica.
O desgaste da autoridade – e, com ela, o da verdade – em todos estes planos da vida em sociedade tem muitas causas e responsáveis: entre eles, os que periodicamente comentam e opinam nas TVs sobre matérias de que pouco sabem e, mesmo, sobre as de que nada sabem.
Fechados em círculos corporativos cada vez mais estreitos, os detentores dos poderes mediáticos e alguns dos seus profissionais – pivots, comentadores, diretores de órgãos de comunicação e, mesmo, alguns jornalistas – entram facilmente em êxtase com os ditos supostamente espirituosos de uns e de outros.
Para manterem a ilusão da sua presumida autoridade intelectual – sobrepondo-a à dos que são alvo dos seus comentários – se necessário for, alteram mesmo a realidade sobre que se debruçam, ficcionando a existência de uma outra.
Sobre esta podem, portanto, falar livremente, pois, não existindo, a não ser nas cabeças do círculo privado que frequentam, não correm o risco de ser contrariados e desmentidos com os argumentos simples e evidentes dos que a tal núcleo de iluminados não pertencem.
Mudando, rotativamente, de posição funcional nos painéis fechados que agora organizam nas TVs, evitam, sobretudo, confrontar-se com posições sustentadas de quem, fora do seu círculo, verdadeiramente sabe.
Tratando-se entre eles pelo nome próprio e por tu – como veem fazer nos media anglo-saxónicos, mesmo que o British «you» não corresponda, necessariamente, ao nosso «tu» – peroram, excitados, sobre as hipotéticas construções que, sem nenhum tipo de sustentação, vão aventando e difundindo: «Oh Manel, não sou disto um especialista, mas acho que…tu sabes, não é?»
Outros, ainda mais afoitos tentam, por antecipação, amesquinhar a idoneidade e competência dos que sabem, chegando mesmo, quando não for suficiente, a cortar-lhes, a palavra, sempre que esta se não ajusta à hipótese que militantemente sustentam.
Quem, porventura, tiver visionado alguns dos episódios de uma série francesa (Um Caso por Resolver), exibida recentemente na RTP 2, ficará mais esclarecido sobre o que digo: está lá tudo.
Em tais episódios evidenciam-se, sem subterfúgios, os interesses contraditórios e os conúbios que, por meio da chantagem e do medo ou, pelo contrário, da bajulação e promoção mediática de alguns detentores do poder, o que tais órgãos de comunicação são capazes de fazer, para impor – no caso à Justiça – a verdade relativa, que, momentaneamente, lhes interessa que prevaleça.
Muitos órgãos de comunicação, em especial as TVs, colaboram, pois, mais do que admitem, com os objetivos dos que – esses sim – propositadamente, arrasam, à patada, a autoridade de quem, em democracia, exerce o poder que legitimamente lhes foi conferido pela Constituição e as leis ou por uma instituição – uma universidade, por exemplo – reconhecida cultural e cientificamente pela sociedade.
As referências negativas constantes e, frequentemente, desprestigiantes das altas instâncias político-institucionais do país assemelham-se muito, por isso, às que – mais histrionicamente – são gritadas, diretamente e já sem qualquer tipo de filtro, pelos galvanizadores políticos do núcleo de forças anticonstitucionais.
De tão parecidas – mesmo que diferentes na essência e nos objetivos – tais referências cruzadas acabam, de resto, por se justificarem mutuamente.
Não, não é apenas por coincidência, e menos ainda por total incapacidade analítica, que todos os dias os media nacionais promovem a imagem triunfante dos agressores da autoridade consagrada e conferida pela Constituição aos que, nos termos desta, compete exercer qualquer tipo de poder.
3. Muitos têm sido os que procuraram diferenciar o conceito de «poder» do de «autoridade».
Várias definições foram, ao longo da História, sendo ensaiadas por diferentes pensadores e filósofos.
A partir dos dispositivos da Constituição da V República francesa, Antoine Garapon – um juiz e pensador francês – procurou fundamentar, no que à Justiça diz respeito, as diferenças entre esses dois conceitos.
Garapon sustentou, contra a tradicional inclusão dos tribunais no âmbito de um dos poderes do Estado – o «Poder Judicial» – a melhor adequação do conceito de «Autoridade Judicial» ao ato de realizar Justiça em nome do povo.
Defendeu, portanto, que a autoridade das decisões judiciais reside, precisamente, no exercício vinculado que os magistrados fazem dos seus poderes constitucionais e legais.
É, pois, a «autoridade» que, segundo ele, legitima o exercício dos poderes do juiz e não o contrário.
No fundo, o regresso, por outra via, ao que Montesquieu, afinal, defendera, séculos antes:
« Les juges de la nation ne sont (…) que la bouche qui prononce les paroles de la loi ».
Numa abordagem mais religiosa, vale a pena ler, também, no Diário de Notícias, de 11 dezembro de 2021, um esclarecedor e didático artigo de Anselmo Borges sobre a confusão e diferença destes conceitos.
O autor disserta aí sobre a distinção entre «poder» e «autoridade» no seio da Igreja, mas a abordagem clara e simples que dela faz, serve bem para todos os que se dedicam a estudar, mais abrangentemente, a essencial diferença dos dois conceitos.
A verdade é que, depreciada a autoridade dos que exercem legitimamente o poder, este último tende a anular-se, perdendo, igualmente, os seus titulares a capacidade para tomarem decisões vinculantes e aceites como legítimas.
Isto, precisamente, por tais funções se validarem, não no poder que representam, mas na autoridade que lhes foi outorgada pela Constituição e a lei, ou num saber superior que todos lhes reconhecem.
4. Não parece, pois, estranho que os que, hoje, mais gritam, alertando contra a debilidade do estatuto dos que, em diversos níveis da sociedade, exercem o poder em Portugal, sejam, precisamente, os que mais procuram abalar o seu prestígio e, sobretudo, a sua autoridade.
É que essa autoridade reside e decorre, precisamente, do complexo edifício constitucional e social que tanto odeiam e querem derrubar.
Nunca, ninguém trabalhou tanto e tão bem nesse sentido; reconheça-se.
Estando, assim, na origem da continuada perda de autoridade dos órgãos institucionais da República e dos que científica e culturalmente a engrandecem são eles que retiram, também, maiores vantagens políticas dessa erosão.
Por isso, enquanto a minam como podem, não param de gritar: «aqui d’el rei que já não há autoridade neste país».
É importante, por isso, não alinhar levianamente – como é moda fazer-se, agora, nos media – na campanha de desrespeito institucional dos que, legitimamente, representam um dos poderes do Estado e exercem a autoridade para dar corpo aos objetivos constitucionais de que os incumbiram.