1. Como referimos no artigo anterior, a preocupação com o destino do direito ao trabalho e o dos direitos dos trabalhadores é, hoje, partilhada por muitos dos mais ilustres juristas europeus.
Entre eles, podemos citar, a título de exemplo, Mireille Delmas-Marty, em França, e Gustavo Zagrebelsky, em Itália.
Foram estes juristas – cujos estudos eram anteriormente dedicados a matérias jurídicas mais clássicas – que, a este propósito, escreveram, não há muito tempo, duas importantes obras sobre a crescente perda de força vinculante das leis do trabalho e as consequências civilizacionais daí derivadas.
Respetivamente os títulos : Le Travail à l'Heure de la Mondialisation (Ed. Bayard/ Collège de France) e Fondata Sul Lavoro (Einaudi Ed. Torino, 2013).
Mas esta sua inquietação com a progressiva enlanguescência das leis laborais, mesmo não tendo considerado a mais radical crise que, a esse propósito, a inteligência artificial poderá trazer, obriga-nos a refletir sobre o estatuto do trabalho e o dos trabalhadores de forma mais abrangente.
Referimo-nos a uma abordagem que coloque o homem, o trabalho e o trabalhador no centro da discussão sobre a sociedade atual e o futuro da humanidade.
2. Tomemos, por exemplo, nota dos problemas suscitados pelo teletrabalho, seus benefícios e perversões.
O teletrabalho, sabemos hoje, tende a esbater o espaço entre o tempo do trabalho e o tempo da vida própria do trabalhador.
Isto, mesmo quando liberta o trabalhador do tempo gasto nos transportes de casa para o local de trabalho, e deste para casa.
Esse tempo, vivido nos transportes pelos trabalhadores, não sendo, obrigatoriamente, um tempo desvinculado dessa sua condição, não pertence, também, à sua atividade profissional, nem, assim, necessariamente, ao seu empregador.
É um tempo que tanto se pode perder, como ganhar, dependendo da distância da habitação, da qualidade dos transportes públicos, da condição familiar e, ainda, da iniciativa e cultura do trabalhador e, por isso, da forma como este o despende ou utiliza.
É um tempo «limbo», um espaço «baldio»; e, como tal, de certa maneira, também de liberdade.
Com o teletrabalho, esse tempo de ninguém tende – para o bem e para o mal – a definhar e, até mesmo, a desaparecer.
Mas é precisamente essa advinda confusão de tempos que o teletrabalho proporciona que, na ausência de normas disciplinadoras, é suscetível de contribuir, ainda mais, para a redução do tempo próprio do homem (trabalhador), transformando-o numa máquina em permanente laboração.
Ele não é mais o trabalhador, apenas quando trabalha; passa a sê-lo, também entre outras condições, enquanto membro da sua família, par do casal, pai e filho.
Toda a sua atenção pode tender (tenderá) – queira ele ou não – a estar concentrada na produção, ou a ser por ela confiscada em qualquer momento.
Assim se vão erodindo, também, os espaços e tempos de vida que ele – qualquer homem – deve reservar para desfrutar da vida, como ser reflexivo, amante, desportista, apreciador de arte e não, apenas, como instrumento de produção.
Qual a função e aquisição do Domingo, em termos civilizacionais?
Não será o Domingo, antes de tudo o mais, antes mesmo de um dia dedicado a Deus – ou precisamente por tal motivo – o tempo cogitativo próprio do homem?
Há quem diga que os tempos de hoje são, precisamente, os tempos resultantes de tais confusões e inadequadas perceções.
Para o teletrabalhador, se não se alcançar, entretanto, um grau de proteção legal pelo menos tão concreto como o que existe para outras formas de trabalho, reduzir-se-ão, talvez, os tempos autónomos de verdadeiro lazer, de família, de cultura, de fruição.
A pressão – mesmo que, inconsciente e inadvertidamente, fixada pelo próprio teletrabalhador – sobre o nível de produtividade a atingir invadirá, gradual, mas seguramente, todas as dimensões da sua vida.
Ele passa – ou julga passar – a ser o patrão de si mesmo e do seu tempo.
Na verdade, porém, em muitos casos, ele apenas se tornou no capataz de si próprio.
Assim, aquilo que, aparentemente, o teletrabalho poderá comportar de libertação e de devolução de tempo ao homem que ele quer ser, pode, se mal gerido, acabar por conduzi-lo, também, à auto escravização, no que este conceito significa de indisponibilidade de tempo para si e de disponibilidade total para o seu “senhor”.
Nesta perspetiva, o teletrabalho, – o trabalho – se não ou mal regulado, pode tornar-se num fim exclusivo da vida humana, na sua total submissão.
Que homem será esse – amanhã -, o teletrabalhador?
3. Como salientou Mireille Delmas-Marty na já referida obra, desde os anos oitenta/noventa, instituições como o Banco Mundial e o FMI tiveram como prática avaliar negativamente, nas suas classificações de países favoráveis ao investimento económico, aqueles cujas leis laborais conferiam mais direitos aos trabalhadores.
E, ainda que, nos últimos anos do século XX, tenham sido atenuados os aspetos mais agressivos e escandalosos daquele tipo de "classificação", foi, precisamente, com os mesmos instrumentos e bitolas de notação que os mercados e as "troikas" continuaram a qualificar e a tentar "reformar" o Estado e o direito social dos países vítimas da crise financeira.
Portugal e os trabalhadores portugueses sofreram bem, e ainda sofrem, as suas consequências.
Sofrem-nas na situação do SNS, no montante das pensões, na degradação da qualidade da escola pública, nas dificuldades no acesso à habitação e, mais do que tudo, nos miseráveis salários que a maioria dos trabalhadores aufere: sofrem-nas na sua injusta e desnecessária pobreza.
Refletir sobre as causas do definhamento do estatuto do trabalho e dos direitos dos trabalhadores implica, assim, pensar, também, todo um conjunto alargado de outros temas, designadamente sobre como agir face à desproteção do Direito.
Dizia, aliás, Mireille Delmas-Marty, na obra já citada, «…atualmente (…) é, porventura, a mobilização da cidadania, o papel das organizações não governamentais, o papel dos cidadãos, dos sindicatos» que tem mais probabilidades de trazer o futuro (tradução nossa).
4. Por outro lado – importa não esquecer – o trabalho reflete-se, também, e muito profundamente, na esfera pessoal e vivência exclusiva de cada homem.
Trabalhar ajuda – e isso não é menos importante – a moldar a ideia que cada um faz de si próprio, quer enquanto indivíduo, quer enquanto ser solidário e útil à sociedade em que está inserido.
O exercício de uma função, a competência profissional com que um trabalhador a realiza e o conhecimento e reconhecimento público dessa sua capacidade são, deste modo, um dos fatores que afirma e distingue, ainda, cada um dos trabalhadores (cada homem) no seio do grupo social, mais ou menos restrito, mais ou menos amplo, em que se move.
Elevar o estatuto do trabalho – e do trabalhador – contribui, assim, tanto para a dignificação do homem como obreiro de si próprio, como para a realização do bem comum, que, através do trabalho, ele realiza.