Gostava dele: devo ser dos poucos na classe jornalística a afirmá-lo. Artur Jorge de Braga Melo Teixeira, nascido no Porto a 13 de fevereiro de 1946, era um tímido por natureza. Consegui, desde que o conheci, entender essa sua timidez que muitos confundiram com arrogância. Sendo uma personagem ímpar dentro do universo pequenino do futebol português, soltou algumas frases que se lhe colaram à pele e todos entenderam como negativas, sobretudo quando resolver confessar que desligava o som da televisão ao ver jogos e punha um disco de música clássica para evitar os comentários. Foi um ver se te avias. As críticas choveram como gotas ácidas sobre a sua filosofia, como se não fosse natural que um homem formado em germânicas envolvesse os seus pensamentos em filosofia.
Ainda garoto, como aluno do Liceu D. Manuel II, mostrou as características de um futebol diferenciado e que o levaram aos juvenis e juniores do FC Porto. Alto, magro, elástico, foi O Homem do Pontapé-de-Moinho, um movimento que repetia com frequência e consistia em deitar-se no ar para, quando a bola surgia ao seu alcance, a pontapear numa bicicleta imaginária virada de lado, se assim me posso exprimir. Golos de encher o olho! Na Académica, onde esteve de 1965 a 1969, foi um aluno diligente e tirou o curso de Filologia Germânica. No ano extraordinário de 1967, no qual a Académica lutou ombro a ombro com o Benfica pelo título, na véspera da visita dos encarnados a Coimbra, quando questionado se estávamos perante o jogo decisivo, respondeu encolhendo os ombros: «Segunda-feira tenho um exame de alemão mais importante do que qualquer jogo». Era assim, o Artur. Sempre foi assim. Na famosa final de 1969, também frente ao Benfica, faltou ao encontro com a História em plena crise estudantil: estava a cumprir o serviço militar, o Regime não o deixou sair, era importante que a Académica não ganhasse esse jogo. Passou seis anos no Benfica juntando-se a um grupo notável de avançados: Eusébio, Simões, Jordão, Nené, Vítor Baptista… Era a estrela introvertida no meio de todas as outras estrelas. Continuava a fugir à popularidade, à entrega ao entusiasmo das massas, metia-se para dentro, não gostava de dar entrevistas e o seu discurso parecia ter algo de monocórdico, com a sua frase «fizemos coisas bonitas». A certa altura alguém lhe perguntou porque teimava em se assim, distante. Respondeu: «Não sou distante. Nunca fui uma pessoa de falar muito sobre mim nem sobre os outros. Mas isso não diz nada sobre a pessoa que sou na verdade». Foi o primeiro presidente do Sindicato de Jogadores de Futebol e essa escolha foi de uma naturalidade límpida como os olhos da Elizabeth Taylor. Tinha queda para liderar. Acabou a carreira no Belenenses com uma perna partida e com a ideia revolucionária na altura de ir para o estrangeiro e completar aí um curso de treinador. Tinha sido operado cinco vezes. Estava farto. Escolheu Leipzig, na República Democrática Alemã. Enquanto por lá esteve escrevia crónicas semanais para o jornal A Bola, intitulavam-se: Do Frio Para o Calor.
Campeão da Europa!
Artur Jorge era de uma cultura fecunda. E um homem de esquerda que admirava Che Guevara e lia Jean Paul Sartre. Como era possível não fazer estremecer os alicerces do nosso ‘futebolzinho’ que, como dizia Vítor Santos, o grande chefe do jornal que teve toda a existência como morada na Travessa da Queimada, até que agora o extraíram do Bairro Alto como se extrai um dente, o futebol do ‘embrocation’?
Voltou para ser treinador e José Maria Pedroto que teve sempre por ele um carinho especial desde que era menino e dava pontapés certeiros nos baldios que se estendiam da Rua das Flores ao Largo do Colégio frente à fachada da Igreja dos Grilos. Passou pelo Belenenses, pelo Portimonense, chegou ao FC Porto em 1984 e, três anos mais tarde, em Viena, num jogo entre os azuis-e-brancos e o Bayern de Munique tornava-se no primeiro treinador português a ganhar a Taça dos Campeões Europeus.
Foi para Paris, para o Matra Racing (curiosamente na companhia do seu grande amigo António Florêncio que também morreu esta semana), voltou ao FC Porto, regressou a Paris, para o Paris Saint-Germain na fase de crescimento do clube da Cidade Luz. A vida, entretanto, começou a correr-lhe mal. O falecimento da filha abalou-o profundamente, na sua passagem como treinador do Benfica descobriram-lhe um tumor na cabeça, precisou de se afastar. Cada vez mais ensimesmado, desenvolvia interesses distantes do futebol, como colecionar quadros de pintores conhecidos e dedicar-se aos seus inúmeros discos de jazz. Em 1996 foi convidado para selecionador nacional. Vivia no Bairro Alto, na Travessa da Espera, e a notícia caiu na redação já tarde na noite. O chefe, Joaquim Rita, disse-me: «Vê lê se ele fala contigo». Liguei-lhe para casa e atendeu-me a mulher. Disse-lhe quem era e recebi a resposta: «Acho que ele consigo fala». Típico. Sempre tivemos uma relação de mútua estima. Fui a casa dele com a Carla Carriço. Ela fez algumas fotos e, de repente, o Artur fala-me ao ouvido: «Manda a rapariga embora para falarmos à vontade». Nada a fazer com aquele feitio tão próprio dele, tão cheio de um estranho medo de se expôr para lá dos limites que impunha a si próprio mas que também eram balizados por uma fortíssima exigência por si mesmo e pelo seu trabalho. Os clubes foram-se multiplicando e os insucessos também. Artur Jorge, o Rei Artur, era rei do mundo. Também passou pelo Al-Nassr, o atual clube de Ronaldo, terminou no Mouloudia Club d’Alger, em 2015. O treinador-poeta, que escreveu O Vértice da Água e desapareceu da vista de todos nós. Pelos vistos para sempre.