Quem, mesmo que nada percebendo do sistema processual penal norte-americano ou português, tiver visto alguns dos muitos filmes e séries televisivas que, nos EUA, foram e são dedicados aos temas criminais e à forma como os investigadores e, depois, os tribunais tratam tais casos, terá, pelo menos, apreendido uma coisa essencial: a relação e interação que, naquele país, existem entre os procuradores, a polícia e os juízes é muito diferente das que acontecem entre nós.
Apesar dos noticiários constantes sobre a vida judiciária nacional, muitas das ideias que uma parte significativa dos cidadãos portugueses fazem do processo penal e do seu desenvolvimento fundam-se, ainda e sobretudo, no visionamento de tais filmes e séries televisivas.
A consciência do diferente relacionamento funcional entre esses atores judiciais dos dois países é, no entanto, relevante para a compreensão do que, neste momento, se passa entre nós, no plano da crítica política e mediática ao nosso sistema judicial.
Revisitando as memórias antigas e já algo erodidas – reconheço – aparecem-me, sempre, a este propósito, as cenas em que um procurador norte-americano instado pela polícia para avançar, de imediato, para tribunal, avalia a consistência da investigação e, só então, decide, ou não, levar o caso a julgamento.
As discussões travadas entre os investigadores e os procuradores norte-americanos desenvolvem-se, pois, em geral, em torno da suficiência e validade das provas carreadas pela polícia, para que estes, aceitando levar o caso ao tribunal, possam sustentá-lo convictamente em juízo.
Em tais filmes, somos, portanto, levados a tomar consciência de duas importantes questões a resolver pelo MP norte-americano, a saber:
– A validade – legalidade – dos elementos de prova obtidos pela polícia;
– E a suficiência e adequação dos mesmos, para convencer o tribunal da culpabilidade de quem o MP decida acusar.
A primeira questão traduz-se numa análise, que tanto pode incidir sobre a legalidade substancial dos elementos de prova apresentados pela polícia ao MP, como, o que é mais frequente, com a forma – legal ou ilegal – como aquela teve acesso a eles.
Trata-se, pois, num primeiro passo, de avaliar a legalidade – em si mesma – dos elementos de prova obtidos pela polícia.
Há nos EUA, como em todos os sistemas legais de países de cultura ocidental, elementos de prova que, pura e simplesmente, não são já legalmente admissíveis.
De seguida – no mesmo debate entre o procurador e a polícia -, importa ao MP questionar e verificar a legalidade dos meios e métodos usados pelos investigadores para obter tais elementos de prova.
Tal exame visa obstar, assim, a que a defesa possa invocar, a posteriori, e já em juízo, imprevistas nulidades relativas à maneira como a polícia adquiriu aqueles elementos de prova.
A segunda questão centra-se já num outro plano; é este o da suficiência da prova e, com ela, o da estratégia, adequada à apresentação do caso em juízo.
Ou seja, admitida pelo procurador a legalidade e regularidade da atuação da polícia na obtenção dos elementos de prova, segue-se o estudo da sua pertinência e suficiência, para que o MP consiga, em juízo, apresentar um caso credível.
Estamos a partir daí, no âmbito da análise prospetiva sobre a adequação e suficiência de tais elementos de prova à construção e sustentação verosímil de um caso em juízo.
Esta segunda discussão tende a ser, no essencial, de natureza estratégica e, por isso, ela é, de certa forma, quase sempre interna ao MP.
Não basta, pois, neste segundo exame, ao MP norte-americano que os elementos de prova recolhidos pela polícia sejam legais e tenham sido validamente obtidos.
É, ainda, necessário ao procurador prever se eles são suficientes e adequados a que o tribunal acredite na versão da verdade, por ele proposta.
Recordo, a propósito, inúmeras cenas de filmes em que o MP norte-americano discute acirradamente com os investigadores e acaba por rejeitar levar, desde logo, um caso a juízo, por considerar que lhe faltam ainda provas para o poder fazer com sucesso.
Isto é, não haver naquele momento, no entendimento do procurador, provas bastantes e – quantitativa e qualitativamente – capazes de convencerem o tribunal da verosimilhança dos raciocínios lógicos e das conclusões assumidas pela polícia quando encerrou a investigação.
Recordo, também, algumas cenas épicas retratando as discussões internas ao gabinete do MP entre o titular do processo, os outros procuradores seus colegas e entre todos eles e o seu superior hierárquico, no que respeita à oportunidade e à decisão de avançar prontamente para tribunal, ou não.
Note-se, no entanto, que nos EUA, o processo só passa a ser judicializado – só passa a ser processo – a partir do momento em que o MP decide apresentá-lo em tribunal.
Daí, poder dizer-se que, ao contrário do que sucede no nosso país, o tempo do processo (judicializado) é, em regra, curto: o período, mais ou menos longo, da investigação policial (o nosso inquérito) não é tomado em consideração para a duração do processo judicial, pois este, enquanto tal, só passa existir, de facto, depois de o MP ter apresentado a juízo o caso.
O que destas memórias cinematográficas quero, antes do mais, retirar é a importância fulcral que, para o MP norte-americano, têm as fases de debate ante o grande júri ou ante o tribunal de julgamento e, bem assim, o desenho da estratégia e o papel que, em tais fases, o procurador assume.
É nelas que o MP norte-americano realiza a sua função essencial.
O procurador norte-americano que interveio no escrutínio prévio da investigação policial é, note-se, por tal razão, o mesmo que, em princípio, leva o caso a julgamento e é responsável por o sustentar efetivamente em juízo.
Deste modo, em regra, apenas um procurador – o mesmo procurador – se responsabiliza e dá a cara pela acusação.
A sua maior ou menor intervenção na fase da investigação situa-se, fundamentalmente, na prévia análise da legalidade e suficiência dos elementos de prova carreados pela polícia e na subsequente preparação, estruturação e ordenação estratégica da sua apresentação em juízo, a fim de obter uma sentença condenatória.
Caso considere insuficientes esses elementos de prova para, em juízo, conseguir uma condenação firme – mesmo que pessoalmente esteja convencido da culpabilidade do suspeito – o procurador norte-americano raramente se atreve, pelo menos no cinema, a displicentemente, «atirar ao barro à parede».
Reveste, com efeito, grande importância para o sistema norte-americano de Justiça penal – e, em especial, para o gabinete do MP – a repercussão pública (negativa) que o decaimento de uma acusação num caso mediático comporta.
Em tais circunstâncias, é a credibilidade funcional do departamento do MP, e a própria reputação pessoal do procurador que resolveu avançar sem ter reunido um sólido dossiê que sustentasse a sua decisão de acusar que estão em causa.
Claro está que, nos filmes que retratam as diferentes intervenções do MP, existem figuras de procuradores mais escrupulosos e outras de profissionais menos ortodoxos.
Estes são apresentados como facciosos, ambiciosos ou vedetas; profissionais que tudo arriscam – incluindo a invocação das teses mais extremas e juridicamente difíceis de sustentar – para forçar e obter, ainda que à revelia da usual cautela e do bom-senso, uma inopinada vitória.
É, no entanto, essa eventual e arriscada vitória que, pelo impacto público que gera – caso aconteça – permitirá a tais ousados procuradores, projetar-se e progredir, mais tarde, em sociedade.
É essa arrojada e nem sempre credível vitória que – assim esperam – lhes irá abrir, por fim, o caminho para outros e mais altos voos, designadamente nas grandes firmas da advocacia privada e, até, em alguns casos, na vida política.
As figuras cinematograficamente caricaturadas destes procuradores – uns levianos, outros fundamentalmente arrivistas – apesar de, em regra, serem retratados nos filmes como inteligentes, muito imaginativos e, sobretudo, audazes, são, na verdade, idealizadas, para, precisamente, veicularem uma crítica social ao carreirismo e à ambição desmedida que evidenciam os que, na vida real, desse modo procedem.
Isto, apesar da cultura de feroz competitividade que caracteriza, em geral, a vida e as carreiras profissionais nos EUA.
Em outros enquadramentos e cenários ainda mais críticos, tais paradigmas de procuradores ousados e destemidos são mesmo concebidos como instrumentos, mais ou menos conscientes, mais ou menos inconscientes, de estratégias políticas, e outras ainda mais duvidosas, totalmente alheias à Justiça.
Por isso, em tais enredos cinematográficos, não raro a sua atuação acaba mal e, mesmo quando apresentada como parcialmente bem-sucedida, tal padrão de procurador é mostrado como socialmente censurável.
Não nos esqueçamos nunca da existência de uma vertente eminentemente moralista na maioria dos enredos dos filmes norte-americanos.
A reter para o debate que, entre nós, se trava já hoje amplamente, por via da inesperadamente controversa, mas corajosa e sem dúvida útil, iniciativa da Procuradora-Geral Adjunta Maria José Fernandes, o facto de, nos EUA, a ponderação da iniciativa penal do MP depender, no essencial – como convém a um processo de natureza acusatória – da escrupulosa verificação da possibilidade, ou impossibilidade, da sua sustentação em juízo.
Por causa de tal ponderação, ou devido à sua falta, alguns casos criminais mais relevantes vêm a ter, com efeito, distintos desfechos em tribunal.
É, pois, no rigor de tal aferição e na qualidade da subsequente sustentação da acusação em juízo que se evidencia, afinal, a credibilidade institucional do competente departamento do MP norte-americano que assumiu o caso, e se demonstra, igualmente, a qualidade cívica e profissional do procurador titular do processo.