«Ao Estado o que é do Estado – e que é de todos – e aos privados somente o que legitimamente adquiriram».


A opção política pela prioridade da intervenção da Justiça criminal na contenção da corrupção, mesmo que tomada com seriedade de propósitos, acaba por, a todos, fazer pagar caro os efeitos que provoca.


Não conheço os factos, não conheço a maioria das pessoas envolvidas e, em rigor, não é do processo de que hoje todos falam, tomados pelas mais variadas emoções e preconceitos, que quero escrever; nem, sendo magistrado jubilado, poderia, aliás, fazê-lo.

De todos os que os media dizem estar envolvidos, conheço apenas António Costa.

Custa-me, reconheço, acreditar que ele tenha, conscientemente, participado ou sido, de alguma forma, conivente com muitas das condutas ilícitas – a Justiça dirá – que são assacadas a outros dos envolvidos no processo.

Esta é, todavia, uma declaração de fé, uma vez que, como disse, nada sei de concreto sobre o caso que, hoje-em-dia, em Portugal, a todos ocupa e preocupa.

Também não é, no essencial, uma tomada de posição sobre a boa ou má atuação da Justiça, neste e noutros casos semelhantes.

Sobre a Justiça penal e as peripécias que sempre a rodeiam e condicionam neste tipo de casos, já escrevi demasiadas vezes: fosse das suas condições materiais, funcionais, estatutárias e organizativas, fosse de uma necessária e sempre atualizada formação jurídica – designadamente sobre o funcionamento do processo decisório na administração pública central e local  – a que magistrados e investigadores policiais que orientam e intervêm em tal espécie de processos devem ter direito e dever de frequentar.

O que, porém, pretendo analisar aqui e agora, sendo, embora, consequência do que li na imprensa sobre o referido processo, não se refere, em concreto, a esse caso, nem ao seu comentário jurídico.

Esta reflexão dirige-se, antes, à estratégia política e legislativa para conter o mais possível o fenómeno da corrupção.

Como nesta coluna muitas vezes observei já, o problema da corrupção e de outros crimes de natureza idêntica, cometidos no exercício de funções públicas, não pode, nem deve, ser encarado, prioritária e principalmente, na perspetiva da intervenção judicial e judiciária punitiva.

As iniciativas judiciais acontecem, necessariamente, a posteriori e não evitam já, por conseguinte, os danos materiais, políticos e morais produzidos na sociedade por tais condutas criminais.

Isto, quer aqueles a quem foram imputados tais crimes venham a ser absolvidos ou condenados.

Infelizmente, porém, tem sido outra a orientação e a prioridade que o poder político das mais variadas cores tem privilegiado: neoliberalismo e orientações da UE obligent.

Face à dependência, ao entorpecimento e a algo inusitada complacência de muitos dos órgãos de controlo interno, ainda atuantes no âmbito da administração pública, aquela que deveria ser a ultima ratio da intervenção estatal – a ação da Justiça penal – tornou-se, assim, verdadeiramente, o primeiro e quase o único instrumento atuante no afrontamento da corrupção.

Pressionado, desde logo, pelo populismo moralista de direita e de alguma esquerda moderna – nisto eles assemelham-se muito – tem, com efeito, o poder político europeu acedido e insistido em modificar e alargar a definição dos tipos legais de tais crimes.

Afaga-lhes e reduz, de um lado, a precisão dos tipos legais que enquadram tais crimes para, assim, abranger mais variantes das mesmas condutas, e muda-lhes mesmo, em alguns casos, a natureza dos bens jurídicos protegidos, o que os torna, pois, suscetíveis das mais variadas leituras e decisões.

O próprio conceito de benefício ilícito e a relação e tempo da sua concretização, que integravam com clareza o tipo criminal anterior, e justificavam do ponto de vista do Direito e da moral social a punição da ação ilícita, quase se esfumaram.

Tal abrandamento no rigor do desenho do tipo desses crimes confere, só aparentemente, à Justiça mais possibilidades de êxito.

Ele permite, com efeito, alguma liberdade decisória, quando a arquitetura dos factos investigados aponta inevitavelmente para uma realidade que, intelectualmente, se sabe de antemão existir, mas que, com dificuldade, se consegue, na verdade, descrever e demonstrar com base apenas nos elementos concretos de prova recolhidos: aí a sua força e a sua fraqueza.

A sua eficácia depende, inteiramente, de haver uma coincidência por parte da acusação e do juiz na leitura dos «hiatos» lógicos que, por esta via, se querem preencher.

Esta opção política, pela prioridade da intervenção da Justiça criminal, reforçada com o alongamento dos seus conceitos e, em contrapartida, a erosão dos seus princípios, mesmo quando necessária e tomada com seriedade de propósitos, acaba, demasiadas vezes, por nada evitar e, também, por nada conseguir provar e fazer punir.

 E, no entanto, como muitos defendem, existem e situam-se, sobretudo, num outro plano de intervenção institucional os melhores instrumentos para conter o uso abusivo e desbragado dos dinheiros públicos.

São eles que podem impedir, de facto e a tempo, que a maior parte de tais excessos possa ocorrer e evitar, assim, também, a erosão da credibilidade das instituições estatais e dos seus servidores.

Tendo trabalhado mais de uma década e meia como procurador no Tribunal de Contas, cedo me apercebi que, afinal, a melhor política para condicionar a corrupção e os outros crimes conexos se situa na criação de instrumentos de controlo prévio e concomitante das negociações levadas a cabo por representantes políticos ou administrativos do Estado e os setores privados com que este contrata.

A degradação da formação e do prestígio e, bem assim, a consequente desvalorização profissional e social dos, anteriormente, elevados patamares de recrutamento e preenchimento dos quadros dos técnicos e chefias do aparelho do Estado, muito têm contribuído, também, para o desencorajamento de uma intervenção mais afoita dos funcionários públicos, hoje dirigidos por superiores de escolha política e, quase todos, alheios às carreiras da função pública.

Uma orientação política que quisesse, de facto, contrariar tal deriva deveria, assim, desenvolver-se em vários planos distintos e complementares.

De um lado, na requalificação dos quadros superiores e intermédios próprios e exclusivos da administração pública, permitindo a esta não ficar – como hoje acontece – nas mãos dos quadros técnicos privados, contratados ad hoc para apoiarem a máquina administrativa do Estado e as suas decisões.

Em rigor, para, num plano externo à administração pública, justificarem juridicamente as, muitas vezes, injustificáveis decisões políticas previamente adotadas.

O reforço e empoderamento do aparelho técnico do Estado e dos seus funcionários de carreira – assim como a despartidarização desta – é, pois, fundamental para contrariar tal situação.

O caminho que, desde há anos, tem sido seguido neste plano  – com o beneplácito do bloco central de interesses que sempre nos governou, sem brilho e sem glória – é, contudo, precisamente o inverso.

Hoje, em função de tal orientação desagregadora, a administração pública está cega e sem mãos, e mais, incapaz de, por si mesma, elaborar, compreender e controlar o alcance financeiro e o desempenho técnico de muitos contratos que o Estado celebra com privados.

Os principais projetos são costurados à margem da administração pública e mediante outsourcing com entidades privadas: muitas das vezes por entidades sugeridas, mesmo, pela parte privada contratada.

A formulação jurí

dica de propostas, e mesmo alguma legislação, são, deste modo, atribuídas aos gabinetes jurídicos e económicos privados que, não raro, atuam, sobretudo, em benefício dos interesses particulares e, em alguns casos, em detrimento do interesse público.

Tais propostas concretizam-se, assim, sem intervenção e qualquer tipo de efetivo controlo pelas diferentes instâncias competentes do Estado.

Volto a recordar aqui, a título de exemplo, um caso antigo de um contrato de exploração de um hospital público por uma entidade privada constituída já depois daquele estar a funcionar e, afinal, capitalizada dissimuladamente para tal fim por dinheiros públicos que tive, então, de analisar.

O contrato, composto por três documentos, um dos quais um léxico – imagine-se – era de tal maneira opaco e propositadamente confuso que, interpretá-lo, se assemelhava à montagem de um puzzle de milhares de pequenas peças.

Todos os abusos – como os que depois ocorreram na execução do contrato – ficavam, pois, justificados pelas interpretações distintas e pela inevitável incompreensão do que havia, afinal, sido estabelecido. 

Num outro plano de mudança – complementar do primeiro -, importaria criar no seio da administração pública verdadeiros instrumentos de compliance capazes de, com total liberdade e em tempo útil, analisarem, desde o princípio, os processos negociais e alertarem as chefias dos riscos legais e financeiros que tais compromissos comportam.

Ao fazê-lo, responsabilizariam as chefias pela sua (passiva) intervenção em tais processos e, ao mesmo tempo, defendiam-nas das intromissões abusivas de natureza política que, eventualmente, sobre elas incidissem.

Não menos relevante seria, ainda, desenvolver mais a transparência dos processos negociais públicos – mesmo que, pela sua natureza, e em certos casos, circunscrita a certas instâncias de controlo menos visíveis – para impedir que as interferências espúrias e as pressões ilegítimas só no final do processo, e com ele concluído, fossem detetadas.

Auditorias internas e externas de acompanhamento concomitante dos processos negociais – e não apenas sucessivas, como hoje quase sempre acontece – mas sempre dirigidas por aparelhos públicos especializados como são, por exemplo, as Inspeções-Gerais e o Tribunal de Contas, deveriam obrigatoriamente ter lugar em todos os passos dos processos contratuais com uma dimensão financeira relevante.

Por fim, haveria que reforçar e acelerar o exercício dos poderes de controlo do Tribunal de Contas na análise prévia, não apenas no plano da legalidade formal dos contratos públicos, mas, sobretudo, na análise da legalidade substancial e da consequente razoabilidade económica desses mesmos contratos, designadamente quanto às consequências – financeiras e jurídicas – que deles, previsivelmente, pudessem resultar.

As burlas e simulações contratuais são, neste âmbito, bem mais frequentes dos que muitos pensam e prejudicam, com desfaçatez e dolo direto, o erário público.

Muitas delas são aliás concretizadas pelos próprios representantes forenses do Estado nos tribunais arbitrais, que são criados e pagos a preços astronómicos, para, principalmente, encontrarem soluções de «equidade» para a resolução dos diferendos, mesmo que o Estado esteja, no que respeita à sua atuação, sujeito ao princípio constitucional da legalidade. 

Se este tipo de controlos internos e externos fosse, de facto, introduzido e ocorresse com regularidade e, em certos casos, mesmo com obrigatoriedade, muitos destes processos criminais, que hoje nos afligem a todos pelos resultados políticos estrondosos que produzem, não seriam necessários.

Não haveria, assim, também, lugar às insinuações – mesmo que bem-intencionadas, mas muito mal informadas – de judicialização da política e da politização da Justiça.

A intervenção política dos outros órgãos de soberania desenvolver-se-ia mais confiante e não teria, depois, de andar a juntar os cacos produzidos, inevitavelmente, pelas forçosas intervenções judiciais, que tanto afetam a vida dos suspeitos e eventuais autores de tais crimes, quando inocentados, como debilitam a autoridade moral do Estado democrático.

Talvez nesta matéria, mais importante do que insistir ainda em afirmar «à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política» fosse, para que isso se realizasse de facto, reclamar, agora, «ao Estado o que é do Estado – e que é de todos – e aos privados somente o que é lhes é devido e adquiriram legitimamente».

«Ao Estado o que é do Estado – e que é de todos – e aos privados somente o que legitimamente adquiriram».


A opção política pela prioridade da intervenção da Justiça criminal na contenção da corrupção, mesmo que tomada com seriedade de propósitos, acaba por, a todos, fazer pagar caro os efeitos que provoca.


Não conheço os factos, não conheço a maioria das pessoas envolvidas e, em rigor, não é do processo de que hoje todos falam, tomados pelas mais variadas emoções e preconceitos, que quero escrever; nem, sendo magistrado jubilado, poderia, aliás, fazê-lo.

De todos os que os media dizem estar envolvidos, conheço apenas António Costa.

Custa-me, reconheço, acreditar que ele tenha, conscientemente, participado ou sido, de alguma forma, conivente com muitas das condutas ilícitas – a Justiça dirá – que são assacadas a outros dos envolvidos no processo.

Esta é, todavia, uma declaração de fé, uma vez que, como disse, nada sei de concreto sobre o caso que, hoje-em-dia, em Portugal, a todos ocupa e preocupa.

Também não é, no essencial, uma tomada de posição sobre a boa ou má atuação da Justiça, neste e noutros casos semelhantes.

Sobre a Justiça penal e as peripécias que sempre a rodeiam e condicionam neste tipo de casos, já escrevi demasiadas vezes: fosse das suas condições materiais, funcionais, estatutárias e organizativas, fosse de uma necessária e sempre atualizada formação jurídica – designadamente sobre o funcionamento do processo decisório na administração pública central e local  – a que magistrados e investigadores policiais que orientam e intervêm em tal espécie de processos devem ter direito e dever de frequentar.

O que, porém, pretendo analisar aqui e agora, sendo, embora, consequência do que li na imprensa sobre o referido processo, não se refere, em concreto, a esse caso, nem ao seu comentário jurídico.

Esta reflexão dirige-se, antes, à estratégia política e legislativa para conter o mais possível o fenómeno da corrupção.

Como nesta coluna muitas vezes observei já, o problema da corrupção e de outros crimes de natureza idêntica, cometidos no exercício de funções públicas, não pode, nem deve, ser encarado, prioritária e principalmente, na perspetiva da intervenção judicial e judiciária punitiva.

As iniciativas judiciais acontecem, necessariamente, a posteriori e não evitam já, por conseguinte, os danos materiais, políticos e morais produzidos na sociedade por tais condutas criminais.

Isto, quer aqueles a quem foram imputados tais crimes venham a ser absolvidos ou condenados.

Infelizmente, porém, tem sido outra a orientação e a prioridade que o poder político das mais variadas cores tem privilegiado: neoliberalismo e orientações da UE obligent.

Face à dependência, ao entorpecimento e a algo inusitada complacência de muitos dos órgãos de controlo interno, ainda atuantes no âmbito da administração pública, aquela que deveria ser a ultima ratio da intervenção estatal – a ação da Justiça penal – tornou-se, assim, verdadeiramente, o primeiro e quase o único instrumento atuante no afrontamento da corrupção.

Pressionado, desde logo, pelo populismo moralista de direita e de alguma esquerda moderna – nisto eles assemelham-se muito – tem, com efeito, o poder político europeu acedido e insistido em modificar e alargar a definição dos tipos legais de tais crimes.

Afaga-lhes e reduz, de um lado, a precisão dos tipos legais que enquadram tais crimes para, assim, abranger mais variantes das mesmas condutas, e muda-lhes mesmo, em alguns casos, a natureza dos bens jurídicos protegidos, o que os torna, pois, suscetíveis das mais variadas leituras e decisões.

O próprio conceito de benefício ilícito e a relação e tempo da sua concretização, que integravam com clareza o tipo criminal anterior, e justificavam do ponto de vista do Direito e da moral social a punição da ação ilícita, quase se esfumaram.

Tal abrandamento no rigor do desenho do tipo desses crimes confere, só aparentemente, à Justiça mais possibilidades de êxito.

Ele permite, com efeito, alguma liberdade decisória, quando a arquitetura dos factos investigados aponta inevitavelmente para uma realidade que, intelectualmente, se sabe de antemão existir, mas que, com dificuldade, se consegue, na verdade, descrever e demonstrar com base apenas nos elementos concretos de prova recolhidos: aí a sua força e a sua fraqueza.

A sua eficácia depende, inteiramente, de haver uma coincidência por parte da acusação e do juiz na leitura dos «hiatos» lógicos que, por esta via, se querem preencher.

Esta opção política, pela prioridade da intervenção da Justiça criminal, reforçada com o alongamento dos seus conceitos e, em contrapartida, a erosão dos seus princípios, mesmo quando necessária e tomada com seriedade de propósitos, acaba, demasiadas vezes, por nada evitar e, também, por nada conseguir provar e fazer punir.

 E, no entanto, como muitos defendem, existem e situam-se, sobretudo, num outro plano de intervenção institucional os melhores instrumentos para conter o uso abusivo e desbragado dos dinheiros públicos.

São eles que podem impedir, de facto e a tempo, que a maior parte de tais excessos possa ocorrer e evitar, assim, também, a erosão da credibilidade das instituições estatais e dos seus servidores.

Tendo trabalhado mais de uma década e meia como procurador no Tribunal de Contas, cedo me apercebi que, afinal, a melhor política para condicionar a corrupção e os outros crimes conexos se situa na criação de instrumentos de controlo prévio e concomitante das negociações levadas a cabo por representantes políticos ou administrativos do Estado e os setores privados com que este contrata.

A degradação da formação e do prestígio e, bem assim, a consequente desvalorização profissional e social dos, anteriormente, elevados patamares de recrutamento e preenchimento dos quadros dos técnicos e chefias do aparelho do Estado, muito têm contribuído, também, para o desencorajamento de uma intervenção mais afoita dos funcionários públicos, hoje dirigidos por superiores de escolha política e, quase todos, alheios às carreiras da função pública.

Uma orientação política que quisesse, de facto, contrariar tal deriva deveria, assim, desenvolver-se em vários planos distintos e complementares.

De um lado, na requalificação dos quadros superiores e intermédios próprios e exclusivos da administração pública, permitindo a esta não ficar – como hoje acontece – nas mãos dos quadros técnicos privados, contratados ad hoc para apoiarem a máquina administrativa do Estado e as suas decisões.

Em rigor, para, num plano externo à administração pública, justificarem juridicamente as, muitas vezes, injustificáveis decisões políticas previamente adotadas.

O reforço e empoderamento do aparelho técnico do Estado e dos seus funcionários de carreira – assim como a despartidarização desta – é, pois, fundamental para contrariar tal situação.

O caminho que, desde há anos, tem sido seguido neste plano  – com o beneplácito do bloco central de interesses que sempre nos governou, sem brilho e sem glória – é, contudo, precisamente o inverso.

Hoje, em função de tal orientação desagregadora, a administração pública está cega e sem mãos, e mais, incapaz de, por si mesma, elaborar, compreender e controlar o alcance financeiro e o desempenho técnico de muitos contratos que o Estado celebra com privados.

Os principais projetos são costurados à margem da administração pública e mediante outsourcing com entidades privadas: muitas das vezes por entidades sugeridas, mesmo, pela parte privada contratada.

A formulação jurí

dica de propostas, e mesmo alguma legislação, são, deste modo, atribuídas aos gabinetes jurídicos e económicos privados que, não raro, atuam, sobretudo, em benefício dos interesses particulares e, em alguns casos, em detrimento do interesse público.

Tais propostas concretizam-se, assim, sem intervenção e qualquer tipo de efetivo controlo pelas diferentes instâncias competentes do Estado.

Volto a recordar aqui, a título de exemplo, um caso antigo de um contrato de exploração de um hospital público por uma entidade privada constituída já depois daquele estar a funcionar e, afinal, capitalizada dissimuladamente para tal fim por dinheiros públicos que tive, então, de analisar.

O contrato, composto por três documentos, um dos quais um léxico – imagine-se – era de tal maneira opaco e propositadamente confuso que, interpretá-lo, se assemelhava à montagem de um puzzle de milhares de pequenas peças.

Todos os abusos – como os que depois ocorreram na execução do contrato – ficavam, pois, justificados pelas interpretações distintas e pela inevitável incompreensão do que havia, afinal, sido estabelecido. 

Num outro plano de mudança – complementar do primeiro -, importaria criar no seio da administração pública verdadeiros instrumentos de compliance capazes de, com total liberdade e em tempo útil, analisarem, desde o princípio, os processos negociais e alertarem as chefias dos riscos legais e financeiros que tais compromissos comportam.

Ao fazê-lo, responsabilizariam as chefias pela sua (passiva) intervenção em tais processos e, ao mesmo tempo, defendiam-nas das intromissões abusivas de natureza política que, eventualmente, sobre elas incidissem.

Não menos relevante seria, ainda, desenvolver mais a transparência dos processos negociais públicos – mesmo que, pela sua natureza, e em certos casos, circunscrita a certas instâncias de controlo menos visíveis – para impedir que as interferências espúrias e as pressões ilegítimas só no final do processo, e com ele concluído, fossem detetadas.

Auditorias internas e externas de acompanhamento concomitante dos processos negociais – e não apenas sucessivas, como hoje quase sempre acontece – mas sempre dirigidas por aparelhos públicos especializados como são, por exemplo, as Inspeções-Gerais e o Tribunal de Contas, deveriam obrigatoriamente ter lugar em todos os passos dos processos contratuais com uma dimensão financeira relevante.

Por fim, haveria que reforçar e acelerar o exercício dos poderes de controlo do Tribunal de Contas na análise prévia, não apenas no plano da legalidade formal dos contratos públicos, mas, sobretudo, na análise da legalidade substancial e da consequente razoabilidade económica desses mesmos contratos, designadamente quanto às consequências – financeiras e jurídicas – que deles, previsivelmente, pudessem resultar.

As burlas e simulações contratuais são, neste âmbito, bem mais frequentes dos que muitos pensam e prejudicam, com desfaçatez e dolo direto, o erário público.

Muitas delas são aliás concretizadas pelos próprios representantes forenses do Estado nos tribunais arbitrais, que são criados e pagos a preços astronómicos, para, principalmente, encontrarem soluções de «equidade» para a resolução dos diferendos, mesmo que o Estado esteja, no que respeita à sua atuação, sujeito ao princípio constitucional da legalidade. 

Se este tipo de controlos internos e externos fosse, de facto, introduzido e ocorresse com regularidade e, em certos casos, mesmo com obrigatoriedade, muitos destes processos criminais, que hoje nos afligem a todos pelos resultados políticos estrondosos que produzem, não seriam necessários.

Não haveria, assim, também, lugar às insinuações – mesmo que bem-intencionadas, mas muito mal informadas – de judicialização da política e da politização da Justiça.

A intervenção política dos outros órgãos de soberania desenvolver-se-ia mais confiante e não teria, depois, de andar a juntar os cacos produzidos, inevitavelmente, pelas forçosas intervenções judiciais, que tanto afetam a vida dos suspeitos e eventuais autores de tais crimes, quando inocentados, como debilitam a autoridade moral do Estado democrático.

Talvez nesta matéria, mais importante do que insistir ainda em afirmar «à Justiça o que é da Justiça e à Política o que é da Política» fosse, para que isso se realizasse de facto, reclamar, agora, «ao Estado o que é do Estado – e que é de todos – e aos privados somente o que é lhes é devido e adquiriram legitimamente».