Não foi por falta de avisos, não escutados. Não foi por falta de sinais, ignorados. Não foi, porque as circunstâncias sempre se conjugaram com o perfil estrutural do exercício do poder político acima das realidades de um país que é mais do que Lisboa e ungido por uma proteção construída ao longo de anos de funções públicas nas diversas áreas relevantes da sociedade portuguesa. O drama da história, por mais selvática e injusta que possa ser, é que não dá para ser reescrita e mesmo as almas penadas que exercitam perdões, lamentos e rebates de consciência desconsideram o que foi feito ao partido, ao país, à democracia e ao Estado de Direito. É claro que existirão sempre os que fiéis à narrativa vigente, que, imunes às circunstâncias e às evidências, manterão o compromisso tribal com um modus operandi que tomou o poder, não ganhou eleições à primeira, desencantou um arranjinho para aceder ao poder e acabou por desbaratar as condições únicas de uma maioria absoluta com recursos financeiros para concretizar transformações, obras e respostas. Para esses, o desafio agora é aquilatar das condições dos candidatos para a manutenção do poder, como ele foi na anterior solução de governo ou como ele é, considerando o pressuposto da defesa da herança recente, em que domina uma certa forma de fazer política que conjuga a procura dos fins sem olhar a meios, a conivência com nebulosas zonas cinzentas na defesa do interesse geral e uma atitude totalmente desfasada do que exigiria o tempo atual em matéria de ética, transparência, eficácia e noção do todo. Para esses, só importará, o quem está em melhores condições para manter o poder e o que cada um ganha ou pode ganhar com isso, mas o partido e o país precisavam de mais.
Depois da cerca sanitária aos desvios da governação conduzida até 2011 e à chamada da Troika com as imposições acordadas, o Partido Socialista precisava de novo de um esforço de reposicionamento, que, não agradando a boa parte da perspetiva tribal, seria absolutamente fundamental para resgatar a perceção e a confiança dos portugueses não configurados à gratidão nivelada por mínimos das alegadas benesses da governação. Essa cerca sanitária, aos protagonistas, a um certo vale tudo em funções políticas e a um perfil desleixado ou torpe da gestão do bem comum seria um contributo decisivo para a erradicação dos riscos e das mazelas provocadas ao sistema democrático e ao Estado de Direito.
Não havendo clarividência ou condições para esse impulso renovador e de reposição de um conjunto de valores e princípios que defendem a democracia e a coesão nacional, teremos mais gestão de turno, da crise e a seguir do país, com evidentes oportunidades para os populistas, os extremistas e outras expressões que conduzem ainda a um maior deslaço ou desfasamento.
Não havendo vontade para essa cerca que se impunha, não é possível nenhum sobressalto de consciência, de pesar ou de repentina infelicidade depois do que foi dito em 2014 e do que é uma evidência há anos, em Lisboa e na órbita do protagonista central, numa apologia por ação ou omissão da promiscuidade entre a política e os negócios exercitada por seres gravitantes ao poder, no modo, no tempo e nas latitudes existentes.
Não é aceitável, em modo tribalista ou de defesa da trincheira, o ensaio de narrativas de desculpabilização ou de relativização da evidente bandalheira em que se transformou o exercício político, com exemplos na presidência da República, na Assembleia da República, no Governo e nos partidos.
É muito mais que o partido A ou B o que está em causa agora e até 10 de março.
É acabar com o lamaçal que se instalou, que se alimenta e que impede Portugal e os portugueses de serem maiores e melhores.
O que tem de estar em causa é o exercício político com pouco grau de ética, exigência, critério e transparência nas opções, nos métodos e nos objetivos.
São os órgãos de soberania desfocados do exercício constitucional, sinalizando à sociedade exemplos inacreditáveis de falta de senso e de atropelo a questões básicas de um Estado de Direito e de uma democracia com quase meio século de vida. Veja-se, por exemplo, a geometria variável da escolha dos órgãos de polícia criminal em função dos processos, Polícia Judiciária nuns casos, PSP e GNR noutros.
É a degradação generalizada do ambiente político, social e económico, que condena o país a um estado anémico, num quadro geral de incerteza, de sobrevivência e de deslaço em relação ao compromisso, às expectativas e às ambições.
E será, terá de ser, uma maior exigência cívica nas escolhas, nas opções e no exercício de funções públicas, num tempo em que, à falta de funcionamento regular dos serviços e das instituições, todos procuram soluções e subterfúgios para as necessidades e as oportunidades.
Há demasiado tempo que temos esta estranha forma de vida, no exercício, nas contemplações e nos resultados. O lamaçal não é vida, alimenta-se da sobrevivência e dos arrependimentos tardios. Haja tolerância zero.
NOTAS FINAIS
GENTE QUE NÃO SE DÁ AO RESPEITO. Sem mínimos de senso, o governador do Banco de Portugal, um dos reguladores, deixou-se enlear na possibilidade de ser líder de uma solução interina de governação. Nenhum ego pode ser maior que a instituição ou a função.
GENTE AOS ZIG-ZAGUES. A implosão da previsibilidade e as constantes guinadas nos quadros de referência do funcionamento da sociedade, para os nacionais e para o investimento privado estrangeiro, precisa de ser compensado a todo o custo com grandes projetos alavancados em incentivos fiscais e outros. Os fins justificam todos os meios, mesmo quando contrariados pelos zig-zagues das orientações políticas.
GENTE DA PRAÇA PÚBLICA E DO JEITINHO. A justiça não funciona, faz-se na praça pública. Os processos não andam, fazem-se com jeitinho, em vez de mudanças orientadas para a agilização sem perda de rigor e transparência.