A Constituição da República sofre muito às mãos do legislador. Uma vez por ano a tortura do texto constitucional atinge o apogeu com a aprovação da Lei do Orçamento de Estado (LOE). Esta tornou-se mais ou menos incompreensível, quer pelas dezenas de artigos desprovidos de conteúdo normativo e que mandam o Governo (o autor material da Proposta de LOE…) estudar, reunir, avaliar, reflectir, dialogar, sensibilizar, comunicar e anunciar, quer pela multiplicação das palavras cruzadas jurídicas em que o sexto travessão, da sub-alínea x), da alínea y), do nº 19, do artigo 153º, na redacção em vigor (expressão que corresponde à versão jurídica de uma praga algarvia que comece por “t’arrenego maldeçoade!”) nas alterações aos diversos códigos tributários.
Em matéria de impostos manda a Constituição fazer uma separação entre o rendimento, o património e o consumo. A primeira e a segunda categorias integram os impostos directos, a terceira os impostos indirectos. Em relação a estes o artigo 104º da CRP dispõe: “A tributação do património deve contribuir para a igualdade entre os cidadãos” (nº 3) e “A tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo.” (nº 4). Se aplicarmos a grelha constitucional aos veículos automóveis, verificamos que os mesmos merecem a atenção do fisco no momento da compra (Código do Imposto sobre Veículos e IVA) e ao longo da vida do veículo, até ao momento do abate da matrícula (Código do Imposto Único de Circulação). O IUC tributa um elemento patrimonial mas, por força do artigo 1º do respectivo Código, procura estabelecer critérios materiais para a tributação do uso dos veículos: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”
O princípio da equivalência far-nos-ia sonhar com uma tributação ao quilómetro, aproximando o IUC do efectivo custo viário da circulação real. Infelizmente o legislador foi menos generoso e a componente de desgaste viário é concretizada pelo peso dos veículos. Também a componente ambiental é tratada como possibilidade, não se taxando as emissões reais (resultantes de um determinado número de quilómetros percorridos em cada ano) mas sim as emissões potenciais (as emissões do veículo tal como certificadas pelo fabricante).
Na proposta de LOE para o ano de 2024 o Governo, possuído por um ímpeto justiceiro, decidiu corrigir, retroactivamente, o que julga ser uma grave falha do Código do IUC, aprovado pela Lei 22-A/2007, de 29 de Junho e que se aplicou a partir de 1 de Julho de 2007 aos veículos de categoria B (ditos veículos ligeiros) matriculados depois dessa data.
Os veículos matriculados antes de 2007 acabam por pagar um valor de IUC menos elevado. São por certo veículos que, do ponto de vista patrimonial, valem pouco e que, do ponto de vista do consumo, não percorrerão provavelmente muitas centenas de milhar de quilómetros por ano, pelo que o desgaste das vias e as emissões não serão relevantes. Quem conservou um veículo por mais de 16 anos deveria ser positivamente discriminado em nome da economia circular, por comparação com quem comprou 4 veículos no mesmo período, 1 a cada 4 anos.
Repescando os critérios constitucionais para a tributação do património (igualdade) e consumo (justiça social) não se compreende como é que o aumento da tributação dos veículos matriculados antes de 1 de Julho de 2007 possa ser justificado, sobretudo quando o aumento anunciado fará com que o valor do IUC pago venha rapidamente a coincidir com o valor comercial do veículo.