De repente, quando comecei a empacotar as coisas que fui acumulando em Haia ao longo de nove anos, para as enviar para Portugal, apercebi-me de alguns dos diferentes e mais marcantes momentos por que passei nessa cidade.
Não por acaso, a maioria de tais coisas que encaixotei eram livros: sempre gostei de comprar livros e de os ler.
Seguiram-nos, em interesse e número, os CDs.
Comprei aí muitos, que já não encontrava em Lisboa.
Adquiri-os em lojas especializadas que já fecharam, pois pouca gente compra, agora, CDs.
Com todos eles, livros e discos, enchi doze caixotes.
Ao proceder à sua arrumação, fui recordando as razões da compra de muitos deles e os instantes de prazer ou enfado que me proporcionaram.
Notei, no que aos livros se refere, a existência de uma primeira revoada de obras escritas em inglês, muitas de História e outras tantas sobre a cooperação judicial internacional e europeia.
Correspondeu tal fase à minha insistência em aperfeiçoar o meu inglês (pouco) corrente e, sobretudo, o inglês jurídico.
Porém, como diz o nosso povo: «burro velho não aprende línguas».
Resolvi, em todo o caso, tentar contrariar tão sábio ensinamento e, mesmo sem ter atingido plenamente o meu objetivo, lá fui conseguindo aprimorar, um pouco, a fala e a escrita do inglês.
Mais do que nas matérias jurídicas, nessa etapa da vida que levei em Haia, a minha obstinação centrou-se, sempre, em melhorar a minha capacidade de intervenção e comunicação com os membros dos outros gabinetes nacionais, na Eurojust.
Quando intervinha em público, insistia, todavia, em levar e ler sempre as minhas intervenções já escritas: procurava a correção do discurso e, sobretudo, a segurança de não ser mal interpretado.
Como a língua holandesa estava já além das minhas possibilidades e como quase toda a gente, nesta cidade e na Eurojust, sabe falar, e bem, o inglês, consegui, deste modo, fazer-me a entender por quase todos.
À custa da aprendizagem do inglês possível, estudei, entretanto, muita História europeia e mediterrânica – tantas guerras – além de filosofia do Direito, de cooperação judicial em matéria penal e de organização judiciária europeia e, ainda, algum Direito Internacional.
Muito li eu, em inglês, nessa primeira fase da minha presença em Haia.
Se começava, obrigava-me, dicionário eletrónico ao lado, a ler o livro até ao fim.
Estudar e ler inglês não significa, apenas, compreender essa língua, implica, também, mergulhar na visão que conservam do mundo aqueles que têm tal idioma como língua nativa.
E ela é, por vezes, tão diferente da nossa.
Comecei, depois, a encher outro caixote com livros em língua francesa.
Acumulei-os na fase em que, para a minha satisfação e descompressão, comecei a ir a Bruxelas em representação da Eurojust e aí, nos tempos livres, a frequentar as livrarias de língua francesa, sobretudo a Filigranes e a Tropismes, onde, além do mais, sempre podia matar saudades de um pastel de nata.
Em francês, encontrei, por isso, nas estantes de casa que estava a largar, muitos livros da primeira vaga de romances policiais escandinavos com conotações políticas, alguns livros sobre sociologia judiciária e outros mais especializados em crimes cibernéticos e em proteção de dados.
Acho que, de alguns destes últimos, só li mesmo o índice e, apesar disso, não deixei de ter tido prazer em os comprar e, agora, de os arrumar.
Descobri, ainda – com muito mais satisfação – alguns livros, também policiais, de um autor hispano-mexicano (Paco Ignacio Taibo II) que, entre outros efeitos, tiveram o de me levar a trocar, rapidamente, as traduções francesas dos seus livros, que inicialmente adquiri, pelas versões originais, escritas em espanhol.
Quando em Espanha, descobri e iniciei, também, na Marcial Pons, a aquisição de magníficos e pioneiros livros de direito sobre os mais variados problemas da cooperação judiciária em matéria penal, escritos ou traduzidos, para espanhol.
Embora com mais dificuldade na leitura, mas não menos entusiasmo, revi-me, depois, nas livrarias italianas onde, para além de alguns dos livros de Direito que mais me envolveram – por exemplo, um discurso claro, emocionado e educativo de Calamendrei sobre a Constituição – descobri, também, quase toda a obra de Erri de Luca, um escritor magnífico, mas maldito, principalmente entre os magistrados desse país.
A razão de tal rejeição nada tem a ver, porém, com a qualidade da sua literatura ou os temas que aborda.
Ela respeita, antes, ao seu passado de militante da Lotta Continua nos anos de chumbo da democracia italiana, e sobre os atos que, então, terá ou não praticado.
E, no entanto, e talvez por isso, um dos livros que mais me fez pensar no papel do Direito e no comportamento e aptidão dos magistrados para entender a realidade que pretendem investigar, foi escrito por ele.
Como na filosofia, os italianos têm a sabedoria de, também na literatura, trazer para o concreto o pensamento mais abstrato e complexo dos autores alemães.
Tal livro reproduz, no essencial, um diálogo definitivamente inviável entre um velho ativista, já reformado das lides revolucionárias – mas sobre quem recaía a suspeita, atual, de ter, mais recentemente, morto um antigo delator -, e um jovem procurador da república bem-intencionado, mas a leste do que se passou, no seu país, nos anos mais conturbados.
Na estória, dadas as totalmente diferentes idiossincrasias de cada um daqueles personagens – embora o idioma que falassem fosse o mesmo – o discurso de um e o de outro era, para ambos, indecifrável.
Chama-se o romance «Impossibile» e, sem muitas mais explicações, recomendo a sua leitura, principalmente aos jovens magistrados.
Como se depreende pelo que antes escrevi, cirandei bastante, não só entre países e cidades com salas de congressos, palácios e catedrais, como entre livrarias, literaturas e obras de teoria jurídica-judiciária.
Aconteceu, com efeito, o mesmo com a música e os CDs que fui comprando.
Recordo, quão maravilhado fiquei quando, entrando na Dussmann, uma enorme e bem fornecida livraria e discoteca alemã situada na Friederich Strasse, em Berlim, mergulhei, sem prevenção espiritual e, sobretudo, financeira, no seio de uma infindável coleção de CDs de Jazz da ECM.
Também aquando da revisão e armazenamento desses CDs, pude recordar e reapreciar as minhas variações de humor e, sobretudo, de gosto, ao longo dos anos vividos em Haia.
Vivi muito tempo sozinho durante a pandemia – tendo sido infetado pelo vírus em Haia – e o tempo que a solidão me ofereceu marcou-me e modificou-me.
Entre outras proveitos, permitiu-me ouvir a música que queria, com o volume de som que, na altura, pretendia e sem que ninguém me chamasse à atenção.
Fechados os caixotes, concluí, porém: «é-me difícil arrumar, desde já, o meu passado recente, falta-me o método e sobretudo a vontade».
O passado salta, com efeito, imprevisto, vingativo, divertido, ou sentimental da página de um qualquer livro, ou de cada nota de um disco.
Aquietá-lo nem sempre é fácil, mesmo para mim, que, cantarolando, gosto sempre de seguir em frente.
Acabei, porém, por perceber que mais difícil me seria, ainda, arrumá-lo de novo e imediatamente, no meu país e na casa que nele habito, onde parte significativa dele não aconteceu.
O passado, afinal, também tem berço.
Parei, pois, por algum tempo, de emalar memórias e bebi um copo de vinho branco e fresco.
Um copo faz maravilhas e, segundo li recentemente no jornal, aplaina a pressão e até a depressão de alguns jovens magistrados.
Já mais tarde, recomecei, pois, com mais à-vontade, o encaixotamento, cuidadoso, de garrafas de vinho com que, ao longo destes anos e, mais recentemente e antes da minha partida, muitos colegas de outros países me presentearam.
Tenho de pedir perdão às letras e à música, mas senti, aparentemente, as mesmas emoções que já sentira, quando comecei a encaixar as ditas garrafas.
Nem todas, claro; muitas de tais garrafas e vinhos ficaram, felizmente, pelo caminho e foi precisamente arrumando as poucas que conservei, que recordei os sabores e humores que elas me despertaram.
Não sei, porém, se foram as páginas dos livros, ou o som dos discos, que relembrei ao arrumá-los, que me fizeram despertar, também, o gosto dos vinhos antes bebidos, ou se, pelo contrário, foi a memória dos sabores destes que me obrigou a reviver as sensações e lições geradas pelos livros e discos que anteriormente guardara.
Olhar para os últimos nove anos de vida encaixotados em cartão – e cujo transporte foi avaliado e pago ao metro cúbico – proporciona um estado de espírito singular.
Trata-se – e não estou disso seguro – de uma sensação indefinida de prazer, temor e esperança.
Esperança de ainda os poder ler e ouvir a todos com prazer e o medo de já não o conseguir fazer.
Está visto – pensei – que mantenho ainda alguma atenção crítica ao que em meu redor sucede, mesmo, ou sobretudo, quando tal apreciação incide, mais ou menos benigna, sobre mim mesmo.
Arrumando os livros, os discos e os vinhos, procedi como se me olhasse de fora e me visse como um terceiro: alguém que não exatamente eu e que tanto me divertia num momento, como me perturbava no outro.
Malditos exames de consciência e autocrítica que, aprendido um em criança e exercitado o outro ainda jovem, nunca deixei, verdadeiramente, de praticar.
Neles, a razão pela qual sempre procurei fazer tudo bem feito e acabei fazendo, também, demasiadas vezes, tanto disparate e, mesmo, algumas maldades.
«Ainda não comecei a distender-me», concluí então, condescendente, depois de beber o último trago do vinho que tinha no copo e, já sentado, olhando, apesar de tudo sorridente, para os caixotes que guardavam nove anos da minha vida.