De repente, como se o não soubesse, ou disso não tivesse dado conta, o dia em que irei cessar as funções que sempre desempenhei aproxima-se com inusitada velocidade: ocorrerá já no próximo mês.
Trinta dias, somente, para mudar de vida e para, talvez, continuar a tentar contribuir, de outro modo, para mudar a vida.
Esse, o dia inevitável, que me chega, como não podia deixar de ser, recheado de sensações múltiplas, sendo algumas destas contraditórias.
De um lado, a ideia – agradável, admito – de que passarei a ter tempo para me dedicar, com mais atenção e cuidado, a assuntos e atividades minhas, não necessariamente relacionadas com a anterior vida profissional e que, de alguma maneira e por causa dela, sempre tive de preterir.
De outro lado, a preocupação com a capacidade de adaptação a uma vida em que quem passará a marcar as regras serei, em certa medida, principalmente eu.
A ideia da autogestão da própria vida – o mesmo é dizer da autogestão do tempo – não deixa de assustar; até porque é só aparente.
Num relance, procurei avaliar e apreciar – vício profissional, creio – a vida que levei.
E ela foi rica, disso estou certo: vivi muitas coisas, boas e más, que orientaram o sentido que lhe quis dar.
Não me estou a referir, obviamente, aos aspetos materiais, se bem que estes também interessem.
Refiro-me, particularmente, às relações humanas que mantive ao longo de uma vida de trabalho; uma carreira que terminará, exatamente, um mês depois de ter escrito este texto.
Aludo, especialmente, àquelas pessoas ao lado de quem trabalhei, que cumprimentei tantas vezes a correr, a quem ouvi e falei regularmente durante o dia, sem verdadeiramente delas e das suas vidas ter tomado nota, mas que, de alguma maneira, contribuíram, ainda assim, para que tivesse podido percorrer o caminho que fiz até aqui.
Que será feito de A ou de B, que comigo trabalharam tantos anos, com quem conversei e discuti um pouco de tudo, com quem, ao fim da tarde, tagarelando, bebia um copo?
C, rememoro agora, morreu já, e nele, reconheço, não pensava há muito.
Tantas caras, tantos risos, tantas ideias e, também, tantas zangas, algumas traições e raivas por parte de pessoas cujos gestos me moldaram para que, chegado aqui, ser hoje quem e como sou.
Que teria acontecido, quem seria eu se, com alguma delas, não me tivesse cruzado um dia?
E, notem, não me estou a referir aos contributos, sempre presentes, de avós, pais, filhos, irmãos, tios, primos, amigos de sempre.
Nem, tão pouco, aos dos meus professores, aos dos meus superiores hierárquicos, aos dos meus médicos.
Estou, sim, a procurar destapar aquelas outras caras – algumas já sem nome – que, num fugaz momento, tiveram na minha vida alguma interferência.
E tudo isto, todos estes pensamentos retrospetivos e algo confusos, todas estas imagens caleidoscópicas, porque me lembrei, a meio ainda do despacho de um dos últimos casos que me competiu resolver, que, daqui a um mês, terminando uma carreira de quarenta e seis anos, e um tipo de vida a que ela, de algum modo, obrigava, terei de passar a determinar, eu mesmo, o que fazer com o que dela resta.
Esse dia será, seguramente, como cantava Sérgio Godinho, «o primeiro dia do resto da minha vida».
Essa vida, a que acreditei ter construído por mim mesmo, foi, assim – reparo agora com maior nitidez – composta afinal, também, pelos resultados dos encontros e cruzamentos humanos fortuitos que, pela função que exerci, e pela forma como e onde a exerci, tive, nos mais variados planos e nos mais diversos lugares do mundo.
Daí a perplexidade de ter de findar uma carreira, que, reconheço também, já vinha exercendo – apesar de o não querer admitir – com algum esforço, tanto mais que, em demasiados casos, a função que desempenho evoluiu, na filosofia, no estilo e nos meios legais e técnicos, para formas de atuação com que me não identifico totalmente.
Quando escolhi ser magistrado, na ressaca da Revolução de Abril, o que mais me motivava era o facto de poder contribuir para uma leitura da lei e uma sua aplicação que, pelo simples facto de acontecerem, ajudariam a expandir e consolidar, através da afirmação do Estado de Direito, o sentido já muito amplo e magnânimo dos direitos que a Constituição generosamente consagrara.
Foi isso que me levou, como a muitos outros colegas da minha geração, a integrar a magistratura e, em especial, a do Ministério Público.
Mais do que, como magistrado, querer lutar contra o que quer que fosse – para isso tínhamos já todos contribuído um pouco, antes e durante a revolução – acreditava, porventura com alguma ingenuidade, ser possível e benéfico procurar forçar a realização dos direitos, através sobretudo do exercício do Direito.
Não se tratando de um ato revolucionário – pensava – o simples facto de fazer cumprir a lei podia contribuir para mudar radicalmente não tudo, mas muita coisa errada que havia na sociedade herdada do anterior regime.
Muito se fez então, e alguma coisa se faz ainda nessa direção, mas, reconheçamos, não é essa a perspetiva dominante, nem a que se tem mostrado mais eficaz para melhorar o mundo.
Também é verdade que o mundo mudou muito e, com ele, a necessidade, em todos os palcos, de ser imperativa uma reafirmação vigorosa dos valores e da ordem constitucional.
Uma afirmação dos valores constitucionais e de respeito pela lei que, de alguma maneira, possa ajudar a refrear a gula desenfreada dos que tudo devastam e todos esmagam, sem qualquer compaixão, nem limites.
Importa continuar a sublinhar o traço essencial de uma correta e serena afirmação da lei – mesmo da mais penalizadora – para que o frágil equilíbrio social que subsiste não se pulverize, de vez, em desfavor, precisamente, dos que mais sofrem: refiro-me à tendência de, para fazer cumprir a lei penal, se admitir já, com algum indecente à-vontade, a possibilidade da ultrapassagem de garantias individuais, que a Constituição justamente consagra.
Tal percurso é sempre perigoso, podendo, em outras circunstâncias, levar o feitiço a virar-se contra o feiticeiro.
Não vejo, aliás, a defesa da mesma abertura e elasticidade interpretativa na leitura, entendimento e aplicação das leis que consagram e deveriam impor os direitos sociais.
Iniciar, pois, com seriedade, a discussão que tal constatação exige, e procurar extrair desta o rumo mais razoável para uma mais do que necessária mudança da sociedade, parece, pois, mais uma vez, essencial.
Uma transformação que torne a vida de todos mais justa e solidária – ou mais solidária e, por isso, mais justa – terá de ser, logo, o objetivo que deve ser assumido, em conjunto, pelos democratas das mais variadas tendências; aqueles que, genuinamente, querem preservar abertos, amplos e pacíficos, os caminhos para fazer mais digna e mais feliz a vida daquela parte significativa da humanidade cuja preocupação quotidiana se resume, ainda hoje, a conseguir sobreviver.
Ajudar, pois, a abrir e a ler as páginas da Constituição e, discutindo-as com quem quiser – principalmente com os mais novos e de preferência os não juristas -, procurar ir refazendo um consenso social mais criterioso, para precisamente reumanizar, um pouco que seja, a nossa tão desequilibrada e pouco esperançosa sociedade, poderá ser, talvez, o sentido útil a dar ao resto da vida que ainda me sobra.