A Constituição, a Habitação, o Urbanismo e o Direito a uma vida justa


Pelo preço que custaram e pelas rendas que por elas pedem os seus proprietários, parece evidente que muitas das habitações hoje construídas não se destinam, de facto, ao mercado normal da habitação.


No último fim de semana, ocorreram, em diversas partes do nosso país, manifestações populares reivindicando do Estado e, através deste, de outras instituições por ele apoiadas – e, em alguns casos, mesmo, subsidiadas – a concretização de um direito constitucional: o direito à habitação.

Desde há vários anos, tem-se assistido a uma evolução do enquadramento político, económico e social do país que, neste como em outros aspetos necessários à construção de uma vida decente para os cidadãos, tem preterido, radicalmente, as mais importantes obrigações políticas do Estado, tal como a Constituição da República Portuguesa (CRP) as define.

Entre elas, evidenciam-se as que devem ser dirigidas à promoção da dignidade da pessoa humana e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (palavras do art.º 1.º da CRP).

No que, especificamente, diz respeito à habitação, a omissão de políticas eficazes de promoção, construção e disponibilização de habitação, por parte do Estado, aos cidadãos, conduziu, como se sabe, a uma crise grave.

Portugal é um dos países da União Europeia onde a habitação social detida pelo Estado (central e local) representa uma das mais baixas percentagens no número geral de habitações existentes.

Confrontamo-nos, agora, com uma crise que ameaça não só as classes populares como, neste momento, também, estratos sociais que, anteriormente, não conheciam problemas sérios no acesso à habitação.

Neste aspeto – como em outros – podemos até dizer que o nosso Estado estagnou e, em algumas áreas, regrediu mesmo nas políticas de promoção da dignidade e qualidade de vida dos cidadãos.

Isso é o resultado da preferência que o Estado vem, desde há muitos anos, dando a opções políticas fundadas, maioritariamente, em apoios pontuais e nunca em medidas projetadas sistematicamente ao futuro.

Políticas que não privilegiam, assim, a construção das condições para que a maioria dos cidadãos possa ter, hoje, esperança fundada de, amanhã, beneficiar de uma vida mais livre, justa e solidária.

Nos termos do seu artigo 65.º, que à habitação respeita, a CRP incumbiu, concreta e detalhadamente, o Estado de promover tais políticas nos seguintes termos:

«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;

d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.

3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.

5. É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território.»

Isso significa que – entre outros aspetos mais determinantes da política pública de habitação definida pela CRP – embora a sua concretização possa ser executada por intermédio das propostas e iniciativas do setor económico privado, a planificação urbanística, a sustentação e a definição dos objetivos da edificação de novas habitações deve ter sempre em conta os objetivos constitucionais prioritários, que compete ao Estado projetar, controlar e, se necessário, impor.

Ora, de acordo com tais objetivos, os planos de construção de habitação devem servir, em primeira mão, para colmatar as necessidades da maioria dos cidadãos e não apenas – como frequentemente acontece – uma minoria de privilegiados nacionais e estrangeiros.

Todavia, pelo preço que custaram e pelas rendas que por elas pedem os seus proprietários, parece evidente que muitas das habitações hoje construídas não se destinam, de facto, ao mercado livre e normal da habitação.

Muitos deles não habitam, nem se propõem habitar, as casas que adquiriram por valores milionários, nem, por outro lado, querem, verdadeiramente, pô-las no mercado a preços compatíveis com os rendimentos da esmagadora maioria dos portugueses.

Limitam-se a, nelas, empregar o dinheiro que têm, como quem, a título de investimento, compra barras de ouro.

Por tal motivo, na escolha e aprovação de propostas de edificação de habitações, o Estado (central e local) deveria, nos termos das prioridades definidas e detalhadas por aqueles preceitos constitucionais, privilegiar planos e projetos que visassem, de facto e em primeira mão, assegurar as necessidades de habitação dos cidadãos, de forma a contribuir, desse modo, para a sociedade justa que o artigo 1.º da CRP define e propõe como objetivo do Estado.

Como dizem Canotilho e Vital Moreira na sua «Constituição da República Anotada – 4.ª Edição», este direito tem uma dupla natureza.

«Por um lado, o direito a não ser arbitrariamente privado da habitação ou impedido de conseguir uma. Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo.»

As políticas de apoio do Estado à concretização deste direito não podem, pois, limitar-se a colmatar, provisoriamente, as necessidades circunstanciais de alguns cidadãos na preservação da sua habitação, nem, tão pouco, ao apoio temporário à sua aquisição, por compra ou arrendamento.

Deve, também, e antes do mais, dirigir-se, ativamente, à programação e concretização de políticas públicas que permitam tornar efetivamente justa, hoje e amanhã, a vida de todos os cidadãos: privilegiando, por exemplo, a construção, pelo próprio Estado (central ou local) de habitação social.

O espaço político-institucional para melhor verificar se o Estado se vocaciona, ou não, para agir nesse sentido situa-se, não apenas na análise do programa político de medidas enunciadas para tal fim, mas, mais objetivamente, no exame e discussão da proposta do orçamento geral do Estado.

As manifestações realizadas em defesa do direito à habitação tiveram, por isso, a virtude de a todos alertar para a forma como o Estado se propõe, ou não, concretizar os princípios e objetivos constitucionais nos próximos tempos.

A Constituição, a Habitação, o Urbanismo e o Direito a uma vida justa


Pelo preço que custaram e pelas rendas que por elas pedem os seus proprietários, parece evidente que muitas das habitações hoje construídas não se destinam, de facto, ao mercado normal da habitação.


No último fim de semana, ocorreram, em diversas partes do nosso país, manifestações populares reivindicando do Estado e, através deste, de outras instituições por ele apoiadas – e, em alguns casos, mesmo, subsidiadas – a concretização de um direito constitucional: o direito à habitação.

Desde há vários anos, tem-se assistido a uma evolução do enquadramento político, económico e social do país que, neste como em outros aspetos necessários à construção de uma vida decente para os cidadãos, tem preterido, radicalmente, as mais importantes obrigações políticas do Estado, tal como a Constituição da República Portuguesa (CRP) as define.

Entre elas, evidenciam-se as que devem ser dirigidas à promoção da dignidade da pessoa humana e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (palavras do art.º 1.º da CRP).

No que, especificamente, diz respeito à habitação, a omissão de políticas eficazes de promoção, construção e disponibilização de habitação, por parte do Estado, aos cidadãos, conduziu, como se sabe, a uma crise grave.

Portugal é um dos países da União Europeia onde a habitação social detida pelo Estado (central e local) representa uma das mais baixas percentagens no número geral de habitações existentes.

Confrontamo-nos, agora, com uma crise que ameaça não só as classes populares como, neste momento, também, estratos sociais que, anteriormente, não conheciam problemas sérios no acesso à habitação.

Neste aspeto – como em outros – podemos até dizer que o nosso Estado estagnou e, em algumas áreas, regrediu mesmo nas políticas de promoção da dignidade e qualidade de vida dos cidadãos.

Isso é o resultado da preferência que o Estado vem, desde há muitos anos, dando a opções políticas fundadas, maioritariamente, em apoios pontuais e nunca em medidas projetadas sistematicamente ao futuro.

Políticas que não privilegiam, assim, a construção das condições para que a maioria dos cidadãos possa ter, hoje, esperança fundada de, amanhã, beneficiar de uma vida mais livre, justa e solidária.

Nos termos do seu artigo 65.º, que à habitação respeita, a CRP incumbiu, concreta e detalhadamente, o Estado de promover tais políticas nos seguintes termos:

«1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.

2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;

b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais;

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada;

d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.

3. O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.

4. O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e ao urbanismo, e procedem às expropriações dos solos que se revelem necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística.

5. É garantida a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território.»

Isso significa que – entre outros aspetos mais determinantes da política pública de habitação definida pela CRP – embora a sua concretização possa ser executada por intermédio das propostas e iniciativas do setor económico privado, a planificação urbanística, a sustentação e a definição dos objetivos da edificação de novas habitações deve ter sempre em conta os objetivos constitucionais prioritários, que compete ao Estado projetar, controlar e, se necessário, impor.

Ora, de acordo com tais objetivos, os planos de construção de habitação devem servir, em primeira mão, para colmatar as necessidades da maioria dos cidadãos e não apenas – como frequentemente acontece – uma minoria de privilegiados nacionais e estrangeiros.

Todavia, pelo preço que custaram e pelas rendas que por elas pedem os seus proprietários, parece evidente que muitas das habitações hoje construídas não se destinam, de facto, ao mercado livre e normal da habitação.

Muitos deles não habitam, nem se propõem habitar, as casas que adquiriram por valores milionários, nem, por outro lado, querem, verdadeiramente, pô-las no mercado a preços compatíveis com os rendimentos da esmagadora maioria dos portugueses.

Limitam-se a, nelas, empregar o dinheiro que têm, como quem, a título de investimento, compra barras de ouro.

Por tal motivo, na escolha e aprovação de propostas de edificação de habitações, o Estado (central e local) deveria, nos termos das prioridades definidas e detalhadas por aqueles preceitos constitucionais, privilegiar planos e projetos que visassem, de facto e em primeira mão, assegurar as necessidades de habitação dos cidadãos, de forma a contribuir, desse modo, para a sociedade justa que o artigo 1.º da CRP define e propõe como objetivo do Estado.

Como dizem Canotilho e Vital Moreira na sua «Constituição da República Anotada – 4.ª Edição», este direito tem uma dupla natureza.

«Por um lado, o direito a não ser arbitrariamente privado da habitação ou impedido de conseguir uma. Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la por via de propriedade ou arrendamento, traduzindo-se na exigência das medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo.»

As políticas de apoio do Estado à concretização deste direito não podem, pois, limitar-se a colmatar, provisoriamente, as necessidades circunstanciais de alguns cidadãos na preservação da sua habitação, nem, tão pouco, ao apoio temporário à sua aquisição, por compra ou arrendamento.

Deve, também, e antes do mais, dirigir-se, ativamente, à programação e concretização de políticas públicas que permitam tornar efetivamente justa, hoje e amanhã, a vida de todos os cidadãos: privilegiando, por exemplo, a construção, pelo próprio Estado (central ou local) de habitação social.

O espaço político-institucional para melhor verificar se o Estado se vocaciona, ou não, para agir nesse sentido situa-se, não apenas na análise do programa político de medidas enunciadas para tal fim, mas, mais objetivamente, no exame e discussão da proposta do orçamento geral do Estado.

As manifestações realizadas em defesa do direito à habitação tiveram, por isso, a virtude de a todos alertar para a forma como o Estado se propõe, ou não, concretizar os princípios e objetivos constitucionais nos próximos tempos.