Fantasmas e assombrações


As leis que regem a política e o seu financiamento não podem ser dúbias e a Justiça não pode ser um festival televisivo.


Nota prévia: o julgamento da tortura e bárbaro assassinato da criança Jéssica terminou com o pedido do Ministério Público de aplicação da pena máxima para todos os acusados. No nosso sistema, isso significa vinte cinco anos e a hipótese de sair em doze ou treze. Não faz sentido. À violência extrema sobre uma criança deve aplicar-se a prisão perpétua efetiva, sem remissões e trabalho obrigatório. Só a pena de morte é inaceitável, pela sua irreversibilidade. Apenas por isso. Dito isto, também não parece lógico o pedido de que a pena requerida seja igual para todos os réus, como terá sido pedido.

 

1. O desfile de ministros prosseguiu no Town Hall da CNN. Lá foram eles, em grupos de três, para anunciar coisas e loisas e incapazes de mostrar o que o governo fez em oito anos. Não admira porque pouco ou nada têm para apresentar. O programa foi uma lavagem ao cérebro digno da TV afegã. Se a RTP fizesse um décimo daquilo caía o Carmo e a Trindade, além do Teixeira, do Nicolau e talvez o CGI (Conselho Geral Independente). Às vezes, são os privados que justificam plenamente a existência de um Serviço Público. 

 

2. Os muitos adeptos da teoria da conspiração devem ter ficado exultantes quando, há dias, verificaram que a Justiça deu desenvolvimento quase simultâneo a dois casos que metem fantasmas. Num deles, o secretário de Estado da Defesa demitiu-se depois de ser constituído arguido por, alegadamente, ter contratado um assessor fantasma e por ele próprio ter ganho 61 mil euros em cinco dias numa assessoria feita precisamente ao ministério da Defesa, antes de ir lá parar. Pouco depois, o Ministério Público (MP) desencadeou uma operação com enorme e despropositado estardalhaço mediático no quadro da investigação para esclarecer o caso de supostos assessores fantasmas no PSD. Aqui, o caso tem a ver com a prática de pagar a funcionários do partido através de verbas destinadas a custear os vencimentos dos assessores parlamentares. Seria uma forma engenhosa de aliviar as contas do partido. As diligências envolveram buscas a casa de Rui Rio, que reagiu glosando caricatamente o tema a partir da sua varanda. Usou mesmo o chavão do “todos fazem isso” e da perseguição pessoal para o liquidar politicamente. Mais absurdo só mesmo o argumento “do rouba, mas faz”. Rui Rio fez a sua vida política envolto na imagem da seriedade e rigor. E ninguém põe isso em causa. Nem mesmo a justiça, pelo que se percebe. No dia seguinte deu uma destemperada entrevista à SIC. Foi um tiro no pé quando disse, por exemplo, ter tirado salário a uma trabalhadora do Parlamento para compensar a irmã gémea contratada pelo partido. Não percebeu que parlamento e partido não são propriamente uma holding do mundo da gestão. Outros quadros e altos dirigentes da equipa de Rio (como o deputado seu protegido e quadro de Banco de Portugal Hugo Carneiro, que tinha a responsabilidade da gestão de pessoal e das contas do PSD) foram inspecionados na aparatosa investigação que esteve catorze horas nas sedes do partido em Lisboa e no Porto. Não há qualquer semelhança entre os casos do Governo e do PSD, tirando a palavra fantasma. Mas tal não significa que uma instituição como o MP, que tem hierarquia, seja assética politicamente. Houve sempre estranhas coincidências, como o de tocar simultaneamente nos dois partidos que alternam no Governo. E também de tudo acontecer em vésperas de se iniciar a longa sonolência das inexplicáveis férias judiciais (será estratégia para dificultar as defesas?). Num caso, trata-se de alegada corrupção pura e dura e já tem um arguido. No outro, nem há aparentemente a certeza de haver ilegalidade. Há, sim, uma cortina de fumo à volta da lei que rege os partidos que permite justificações como o “todos fazem”. Parece ser verdade uma vez que, salvo o Chega e os liberais, os partidos assobiaram ao cochicho perante a operação. Tal resulta de situações pouco claras que misturam quem trabalha para um grupo parlamentar e quem é funcionário de um partido sem nunca ir à Assembleia da República. Ora, há diferenças que por conveniência financeira dos partidos não são estabelecidas. Os assessores parlamentares desempenham uma função ao abrigo da lei que os equipara a membros dos gabinetes dos ministros. O princípio genérico é de exclusividade com poucas exceções como dar aulas. Prestam apoio técnico aos deputados que participam em comissões parlamentares específicas, onde se produz legislação. Podem ser dispensados de um momento para o outro, exatamente como o célebre Frederico Pinheiro, corrido por Galamba. Os assessores estão lá para fazer trabalho especializado. Muitos são mais qualificados do que certos deputados. Claro que são de confiança política. A sua missão, pela sua especificidade, é, em regra, diferente da dos funcionários partidários. Podem ajudar o partido, ir colar cartazes, ou andar num carro a proclamar a chegada do líder. Mas isso tem a ver com a sua disponibilidade e militância pessoal. Não há obrigação. Misturar tudo é uma prática negativa generalizada. Diminui a dignidade do parlamento, enquanto órgão de soberania, do qual emana o próprio governo. O que se diria se os assessores e adjuntos dos ministros em vez de estarem nos seus gabinetes trabalhassem na sede do PS, mas recebessem dos ministérios? A lei já foi mais clara. A sua evolução criou deliberadamente opacidade, como se viu pela alteração feita em 2021 que mistura os locais de trabalho. Os partidos têm financiamento em função do número de votos a partir dos primeiros 50 mil. Os grupos parlamentares, esses, dependem do financiamento da Assembleia da República em função do número de deputados, embora consolidem nas contas dos partidos, o que é um mau princípio. Não é por estarem no mesmo número de contribuinte que são a mesma coisa. A lei não os confunde totalmente. No financiamento dos partidos e das suas campanhas eleitorais exclui mesmo quaisquer receitas não previstas nesse âmbito. Ou seja, não envolve as verbas dos grupos parlamentares. Todo este imbróglio tem sido possível pela existência de uma linha ténue que não define as fronteiras. Foi isso que acentuou o Presidente Marcelo de forma pouco confortável. É a típica situação em que se deveria evitar confusões ou, então, criar de vez uma realidade mista entre partidos e parlamento, com os perigos que isso comporta. Margarida Salema foi assertiva quando comentou o assunto, afirmando que “os parlamentares deixaram de ter a noção de que não estão ao serviço dos partidos”. Salema foi presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, a qual foi extinta e substituída por uma Entidade para a Transparência que nunca produziu nada, ora por não ter gente, ora por não ter instalações (o que a todos convém). Cunha Rolo, presidente da Associação Integridade e Transparência, afina pelo mesmo diapasão. Afirma que os partidos violam a lei para obter novas formas de financiamento, pelo que quer uma clarificação. Tudo isto é uma situação alimentada por uma confusão legislativa que permite uma zona turva que contribui para reforçar a ideia negativa que os portugueses têm da política.

 

3. Nas já referidas coincidências de férias judiciais assinale-se, para além do caso da defesa e dos assessores fantasma, as investidas contra Pinto Moreira, ex-presidente da Câmara de Espinho, e o caso Altice, que levou a várias detenções como o poderoso Armando Pereira. Nota recordatória: o juiz de instrução do caso Altice é Carlos Alexandre e o procurador é Rosário Teixeira. Os mesmos em que noutros processos achincalharam despropositadamente outros arguidos, como se viu no caso dos vistos “gold” com Miguel Macedo, então ministro, e outros altos quadros do Estado, que saíram limpos. Ou até mesmo na mediática prisão de Sócrates.

 

4. Foi pouco comentada a sondagem do Jornal de Negócios, apontando António Guterres como o mais votado entre putativos candidatos a Presidente da República. É duvidoso que aceite vir para este manicómio, depois de andar a gerir um mundo louco. Mas há no estudo uma grande satisfação para qualquer moderado. Coloca o inenarrável e socrático Santos Silva lá no fundo da tabela com o monumental apoio de 1,4% dos inquiridos. Venha lá o tal Guterres, se for o caso. Não será certamente isso que criará urticária ao Presidente Marcelo, visto que ambos se consideram um ao outro simplesmente o máximo.

Fantasmas e assombrações


As leis que regem a política e o seu financiamento não podem ser dúbias e a Justiça não pode ser um festival televisivo.


Nota prévia: o julgamento da tortura e bárbaro assassinato da criança Jéssica terminou com o pedido do Ministério Público de aplicação da pena máxima para todos os acusados. No nosso sistema, isso significa vinte cinco anos e a hipótese de sair em doze ou treze. Não faz sentido. À violência extrema sobre uma criança deve aplicar-se a prisão perpétua efetiva, sem remissões e trabalho obrigatório. Só a pena de morte é inaceitável, pela sua irreversibilidade. Apenas por isso. Dito isto, também não parece lógico o pedido de que a pena requerida seja igual para todos os réus, como terá sido pedido.

 

1. O desfile de ministros prosseguiu no Town Hall da CNN. Lá foram eles, em grupos de três, para anunciar coisas e loisas e incapazes de mostrar o que o governo fez em oito anos. Não admira porque pouco ou nada têm para apresentar. O programa foi uma lavagem ao cérebro digno da TV afegã. Se a RTP fizesse um décimo daquilo caía o Carmo e a Trindade, além do Teixeira, do Nicolau e talvez o CGI (Conselho Geral Independente). Às vezes, são os privados que justificam plenamente a existência de um Serviço Público. 

 

2. Os muitos adeptos da teoria da conspiração devem ter ficado exultantes quando, há dias, verificaram que a Justiça deu desenvolvimento quase simultâneo a dois casos que metem fantasmas. Num deles, o secretário de Estado da Defesa demitiu-se depois de ser constituído arguido por, alegadamente, ter contratado um assessor fantasma e por ele próprio ter ganho 61 mil euros em cinco dias numa assessoria feita precisamente ao ministério da Defesa, antes de ir lá parar. Pouco depois, o Ministério Público (MP) desencadeou uma operação com enorme e despropositado estardalhaço mediático no quadro da investigação para esclarecer o caso de supostos assessores fantasmas no PSD. Aqui, o caso tem a ver com a prática de pagar a funcionários do partido através de verbas destinadas a custear os vencimentos dos assessores parlamentares. Seria uma forma engenhosa de aliviar as contas do partido. As diligências envolveram buscas a casa de Rui Rio, que reagiu glosando caricatamente o tema a partir da sua varanda. Usou mesmo o chavão do “todos fazem isso” e da perseguição pessoal para o liquidar politicamente. Mais absurdo só mesmo o argumento “do rouba, mas faz”. Rui Rio fez a sua vida política envolto na imagem da seriedade e rigor. E ninguém põe isso em causa. Nem mesmo a justiça, pelo que se percebe. No dia seguinte deu uma destemperada entrevista à SIC. Foi um tiro no pé quando disse, por exemplo, ter tirado salário a uma trabalhadora do Parlamento para compensar a irmã gémea contratada pelo partido. Não percebeu que parlamento e partido não são propriamente uma holding do mundo da gestão. Outros quadros e altos dirigentes da equipa de Rio (como o deputado seu protegido e quadro de Banco de Portugal Hugo Carneiro, que tinha a responsabilidade da gestão de pessoal e das contas do PSD) foram inspecionados na aparatosa investigação que esteve catorze horas nas sedes do partido em Lisboa e no Porto. Não há qualquer semelhança entre os casos do Governo e do PSD, tirando a palavra fantasma. Mas tal não significa que uma instituição como o MP, que tem hierarquia, seja assética politicamente. Houve sempre estranhas coincidências, como o de tocar simultaneamente nos dois partidos que alternam no Governo. E também de tudo acontecer em vésperas de se iniciar a longa sonolência das inexplicáveis férias judiciais (será estratégia para dificultar as defesas?). Num caso, trata-se de alegada corrupção pura e dura e já tem um arguido. No outro, nem há aparentemente a certeza de haver ilegalidade. Há, sim, uma cortina de fumo à volta da lei que rege os partidos que permite justificações como o “todos fazem”. Parece ser verdade uma vez que, salvo o Chega e os liberais, os partidos assobiaram ao cochicho perante a operação. Tal resulta de situações pouco claras que misturam quem trabalha para um grupo parlamentar e quem é funcionário de um partido sem nunca ir à Assembleia da República. Ora, há diferenças que por conveniência financeira dos partidos não são estabelecidas. Os assessores parlamentares desempenham uma função ao abrigo da lei que os equipara a membros dos gabinetes dos ministros. O princípio genérico é de exclusividade com poucas exceções como dar aulas. Prestam apoio técnico aos deputados que participam em comissões parlamentares específicas, onde se produz legislação. Podem ser dispensados de um momento para o outro, exatamente como o célebre Frederico Pinheiro, corrido por Galamba. Os assessores estão lá para fazer trabalho especializado. Muitos são mais qualificados do que certos deputados. Claro que são de confiança política. A sua missão, pela sua especificidade, é, em regra, diferente da dos funcionários partidários. Podem ajudar o partido, ir colar cartazes, ou andar num carro a proclamar a chegada do líder. Mas isso tem a ver com a sua disponibilidade e militância pessoal. Não há obrigação. Misturar tudo é uma prática negativa generalizada. Diminui a dignidade do parlamento, enquanto órgão de soberania, do qual emana o próprio governo. O que se diria se os assessores e adjuntos dos ministros em vez de estarem nos seus gabinetes trabalhassem na sede do PS, mas recebessem dos ministérios? A lei já foi mais clara. A sua evolução criou deliberadamente opacidade, como se viu pela alteração feita em 2021 que mistura os locais de trabalho. Os partidos têm financiamento em função do número de votos a partir dos primeiros 50 mil. Os grupos parlamentares, esses, dependem do financiamento da Assembleia da República em função do número de deputados, embora consolidem nas contas dos partidos, o que é um mau princípio. Não é por estarem no mesmo número de contribuinte que são a mesma coisa. A lei não os confunde totalmente. No financiamento dos partidos e das suas campanhas eleitorais exclui mesmo quaisquer receitas não previstas nesse âmbito. Ou seja, não envolve as verbas dos grupos parlamentares. Todo este imbróglio tem sido possível pela existência de uma linha ténue que não define as fronteiras. Foi isso que acentuou o Presidente Marcelo de forma pouco confortável. É a típica situação em que se deveria evitar confusões ou, então, criar de vez uma realidade mista entre partidos e parlamento, com os perigos que isso comporta. Margarida Salema foi assertiva quando comentou o assunto, afirmando que “os parlamentares deixaram de ter a noção de que não estão ao serviço dos partidos”. Salema foi presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, a qual foi extinta e substituída por uma Entidade para a Transparência que nunca produziu nada, ora por não ter gente, ora por não ter instalações (o que a todos convém). Cunha Rolo, presidente da Associação Integridade e Transparência, afina pelo mesmo diapasão. Afirma que os partidos violam a lei para obter novas formas de financiamento, pelo que quer uma clarificação. Tudo isto é uma situação alimentada por uma confusão legislativa que permite uma zona turva que contribui para reforçar a ideia negativa que os portugueses têm da política.

 

3. Nas já referidas coincidências de férias judiciais assinale-se, para além do caso da defesa e dos assessores fantasma, as investidas contra Pinto Moreira, ex-presidente da Câmara de Espinho, e o caso Altice, que levou a várias detenções como o poderoso Armando Pereira. Nota recordatória: o juiz de instrução do caso Altice é Carlos Alexandre e o procurador é Rosário Teixeira. Os mesmos em que noutros processos achincalharam despropositadamente outros arguidos, como se viu no caso dos vistos “gold” com Miguel Macedo, então ministro, e outros altos quadros do Estado, que saíram limpos. Ou até mesmo na mediática prisão de Sócrates.

 

4. Foi pouco comentada a sondagem do Jornal de Negócios, apontando António Guterres como o mais votado entre putativos candidatos a Presidente da República. É duvidoso que aceite vir para este manicómio, depois de andar a gerir um mundo louco. Mas há no estudo uma grande satisfação para qualquer moderado. Coloca o inenarrável e socrático Santos Silva lá no fundo da tabela com o monumental apoio de 1,4% dos inquiridos. Venha lá o tal Guterres, se for o caso. Não será certamente isso que criará urticária ao Presidente Marcelo, visto que ambos se consideram um ao outro simplesmente o máximo.