A espiral do disparate


Há muita gente que exulta com a espiral de disparate instalada, a dualidade de critérios e o anormal funcionamento das instituições e dos serviços públicos.


Recordo-me daquela conversa de que o exemplo vinha de cima, entre a ausência de acervo cívico que baste para configurar os comportamentos individuais pela própria cabeça e os resquícios de uma sociedade com soberanos e súbditos, para vislumbrar que após quase meio século de caminho democrático, com direitos e deveres, não se evolui o suficiente para assegurar um equilíbrio de senso e compromisso com valores essenciais.

O exemplo não está a vir de cima, mas há muita gente que exulta com a espiral de disparate instalada, a dualidade de critérios e o anormal funcionamento das instituições e dos serviços públicos.

O país está cada vez mais dual e não é só por culpa das opções políticas, é também pela prevalência dos interesses particulares, das quintinhas burocráticas, das corporações e das indiferenças perante as disfunções face ao interesse geral e aos mínimos de funcionamento de um Estado de Direito Democrático.

Na Presidência da República, a incisiva verborreia a toda a hora e em todas as latitudes, reincide em disparates indignos para a instituição, entre os remoques sobre decotes e as qualificações pimba do ser português, numa deriva de degradação em que o esforço maior dos portugueses tem de ser colocado em ajudar o mandatário a terminar a incumbência com alguma dignidade.

Na governação, além da insistente indiferença perante as realidades e as dificuldades concretas que se avolumam na vida das pessoas e de pilares relevantes da sociedade, não há um mínimo de rigor que impeça o populismo de anunciar passes de transporte público gratuitos para todos os jovens com menos de 23 anos para depois vir atribuir à interpretação a abrangência que, afinal, se circunscreve apenas aos que ainda sejam estudantes.

No Parlamento, entre tantas derivas de regulamentação já em processo legislativo e simultaneamente outras liberalizações, sem qualquer ordem de coerência nas opções políticas e muito menos explicação sobre o sentido, a prioridade da maioria parlamentar é a criação de um grupo de trabalho sobre a utilização recreativa da cannabis como se o país não tivesse problemas e desafios maiores no âmbito da prossecução do bem comum.

Nas regiões autónomas, onde governa o PSD, no caso dos Açores com o apoio decisivo do Chega, a coberto de um enorme desleixo de atenção da República, dos media e dos cidadãos, vigora a selva nos exercícios políticos, com recorrentes incursões dos executivos por caminhos que o país já penalizou como ilegalidades. Enquanto a República condena e persegue autarcas que nas redes sociais publicitam o seu trabalho, como o fazem ao longo de todo o mandato, permite que na Madeira o governo regional de modo despudorado ou encapotado prossiga com inaugurações e distribuições de benesses em período de campanha eleitoral até ao dia das eleições. No fundo, é como se existisse um país e vários sistemas em função de geometrias variáveis dos interesses que não têm qualquer cobertura ou admissibilidade num Estado de Direito. As instituições existem e têm de ter um funcionamento uniforme em função do princípio da igualdade.

Na sociedade, emergem crescentes Torquemadas do gosto apostados em arrasar a diversidade, a diferença, a tolerância e a consciência de que as circunstâncias determinam muito do que foram e são as realidades, sem necessidade de impulsionar ajuste de contas com o passado, sem qualquer relevância para resolver os problemas gerais do presente ou contribuir para construção de comunidades e de um país melhor. Quando o esforço deveria ser colocado na formação individual e comunitária de uma maior consciência cívica e dos adequados filtros para avaliar, processar e gerar a envolvente, há quem aposte em querer fazer as avaliações e as escolhas pelos outros. É assim que, numa expressão anedótica da deriva de ajuste com o passado e de imposição de uma certa moral de sabe-se lá o quê, surge a contestação à estátua Amores de Camilo, de Francisco Simões, no Largo Amor de Perdição, no Porto. Em vez de se mobilizarem para o combate às causas sociais, económicas e culturais das discriminações é sempre mais fácil zurzir uma estátua imóvel e mobilizar uns tontos para o exercício inquisitório de reescrita do passado.

A proliferação de disparates, desfocados das necessidades concretas das pessoas e dos territórios, pode ser atenuada pela convicção de que a distribuição de umas benesses é que bastem para assegurar a continuidade dos exercícios, mas nunca contribuirá para melhores cidadãos e um país mais desenvolvido. Acresce que a desmultiplicação de disfunções e de maus exemplos de quem é decisor, investido em funções públicas, consagra essa referência como o padrão da República. O disparate nunca pode ser referência.

 

NOTAS FINAIS

AS REINCIDÊNCIAS DE CAVACO. Pode ser um modelo idílico ou saudosista da direita desapossada de poder, mas é normal uma certa urticária à esquerda com Cavaco Silva quando muita ação política passada foi sustentada na contestação às governações do protagonista político. O ensaio de um “Depois de mim virá quem bom me fará”, sem considerar as circunstâncias, as promiscuidades, as margens de arbítrio e as profusas capas do semanário Independente com escândalos do governo de então, é tão pífio quanta a atenção política prestada.

 

QUANTO CUSTA A PARTIDA DE LISBOA DE LA VUELTA DO ORGULHOSO MOEDAS? Os territórios têm de se posicionar, a promoção turística pode ser boa para as dinâmicas, mas para se avaliar as opções e o seu sentido útil sustentável, era bom que os protagonistas políticos pudessem acompanhar as exaltações públicas com o enunciado das faturas. Quanto custa a Volta a Espanha em Lisboa e Portugal? É que não o fazer significa não ter aprendido nada com a Web Summit e com a Jornada Mundial da Juventude.

A espiral do disparate


Há muita gente que exulta com a espiral de disparate instalada, a dualidade de critérios e o anormal funcionamento das instituições e dos serviços públicos.


Recordo-me daquela conversa de que o exemplo vinha de cima, entre a ausência de acervo cívico que baste para configurar os comportamentos individuais pela própria cabeça e os resquícios de uma sociedade com soberanos e súbditos, para vislumbrar que após quase meio século de caminho democrático, com direitos e deveres, não se evolui o suficiente para assegurar um equilíbrio de senso e compromisso com valores essenciais.

O exemplo não está a vir de cima, mas há muita gente que exulta com a espiral de disparate instalada, a dualidade de critérios e o anormal funcionamento das instituições e dos serviços públicos.

O país está cada vez mais dual e não é só por culpa das opções políticas, é também pela prevalência dos interesses particulares, das quintinhas burocráticas, das corporações e das indiferenças perante as disfunções face ao interesse geral e aos mínimos de funcionamento de um Estado de Direito Democrático.

Na Presidência da República, a incisiva verborreia a toda a hora e em todas as latitudes, reincide em disparates indignos para a instituição, entre os remoques sobre decotes e as qualificações pimba do ser português, numa deriva de degradação em que o esforço maior dos portugueses tem de ser colocado em ajudar o mandatário a terminar a incumbência com alguma dignidade.

Na governação, além da insistente indiferença perante as realidades e as dificuldades concretas que se avolumam na vida das pessoas e de pilares relevantes da sociedade, não há um mínimo de rigor que impeça o populismo de anunciar passes de transporte público gratuitos para todos os jovens com menos de 23 anos para depois vir atribuir à interpretação a abrangência que, afinal, se circunscreve apenas aos que ainda sejam estudantes.

No Parlamento, entre tantas derivas de regulamentação já em processo legislativo e simultaneamente outras liberalizações, sem qualquer ordem de coerência nas opções políticas e muito menos explicação sobre o sentido, a prioridade da maioria parlamentar é a criação de um grupo de trabalho sobre a utilização recreativa da cannabis como se o país não tivesse problemas e desafios maiores no âmbito da prossecução do bem comum.

Nas regiões autónomas, onde governa o PSD, no caso dos Açores com o apoio decisivo do Chega, a coberto de um enorme desleixo de atenção da República, dos media e dos cidadãos, vigora a selva nos exercícios políticos, com recorrentes incursões dos executivos por caminhos que o país já penalizou como ilegalidades. Enquanto a República condena e persegue autarcas que nas redes sociais publicitam o seu trabalho, como o fazem ao longo de todo o mandato, permite que na Madeira o governo regional de modo despudorado ou encapotado prossiga com inaugurações e distribuições de benesses em período de campanha eleitoral até ao dia das eleições. No fundo, é como se existisse um país e vários sistemas em função de geometrias variáveis dos interesses que não têm qualquer cobertura ou admissibilidade num Estado de Direito. As instituições existem e têm de ter um funcionamento uniforme em função do princípio da igualdade.

Na sociedade, emergem crescentes Torquemadas do gosto apostados em arrasar a diversidade, a diferença, a tolerância e a consciência de que as circunstâncias determinam muito do que foram e são as realidades, sem necessidade de impulsionar ajuste de contas com o passado, sem qualquer relevância para resolver os problemas gerais do presente ou contribuir para construção de comunidades e de um país melhor. Quando o esforço deveria ser colocado na formação individual e comunitária de uma maior consciência cívica e dos adequados filtros para avaliar, processar e gerar a envolvente, há quem aposte em querer fazer as avaliações e as escolhas pelos outros. É assim que, numa expressão anedótica da deriva de ajuste com o passado e de imposição de uma certa moral de sabe-se lá o quê, surge a contestação à estátua Amores de Camilo, de Francisco Simões, no Largo Amor de Perdição, no Porto. Em vez de se mobilizarem para o combate às causas sociais, económicas e culturais das discriminações é sempre mais fácil zurzir uma estátua imóvel e mobilizar uns tontos para o exercício inquisitório de reescrita do passado.

A proliferação de disparates, desfocados das necessidades concretas das pessoas e dos territórios, pode ser atenuada pela convicção de que a distribuição de umas benesses é que bastem para assegurar a continuidade dos exercícios, mas nunca contribuirá para melhores cidadãos e um país mais desenvolvido. Acresce que a desmultiplicação de disfunções e de maus exemplos de quem é decisor, investido em funções públicas, consagra essa referência como o padrão da República. O disparate nunca pode ser referência.

 

NOTAS FINAIS

AS REINCIDÊNCIAS DE CAVACO. Pode ser um modelo idílico ou saudosista da direita desapossada de poder, mas é normal uma certa urticária à esquerda com Cavaco Silva quando muita ação política passada foi sustentada na contestação às governações do protagonista político. O ensaio de um “Depois de mim virá quem bom me fará”, sem considerar as circunstâncias, as promiscuidades, as margens de arbítrio e as profusas capas do semanário Independente com escândalos do governo de então, é tão pífio quanta a atenção política prestada.

 

QUANTO CUSTA A PARTIDA DE LISBOA DE LA VUELTA DO ORGULHOSO MOEDAS? Os territórios têm de se posicionar, a promoção turística pode ser boa para as dinâmicas, mas para se avaliar as opções e o seu sentido útil sustentável, era bom que os protagonistas políticos pudessem acompanhar as exaltações públicas com o enunciado das faturas. Quanto custa a Volta a Espanha em Lisboa e Portugal? É que não o fazer significa não ter aprendido nada com a Web Summit e com a Jornada Mundial da Juventude.