Vivemos num mundo cada vez mais espartilhado por normas que, para simplificar, resumiria como os interditos do «politicamente correto».
Recordo, com saudade, o tempo em que uma das palavras de ordem dos jovens que, em «Maio de 68», procuraram sacudir bolor dos interditos e libertar-se dos mais formais e redutores comportamentos sociais que, então, esmagavam as sociedades ocidentais era, precisamente: «é proibido proibir».
Hoje, desde o policiamento da linguagem escrita ou oral ao policiamento das imagens filmadas e animadas, passando, assim, do jornalismo à literatura e desta à pintura e às artes gráficas, e até mesmo à História, tudo parece dever ser vigiado e corrigido para descanso dos bonzos do «politicamente correto» que, em muito casos, são justamente – quando não os próprios – os herdeiros intelectuais dos que animaram os irreverentes movimentos sociais juvenis naqueles anos 60 e 70.
De outro lado, das amáveis normas sociais cívicas de respeito e boa educação, caídas em desuso pelos que as consideravam conservadoras e condescendentes – mesmo que culturalmente partilhadas de maneira simples pela maioria dos cidadãos de todas as condições sociais – passou-se, em diversas sedes, a uma concretização muito detalhada de regras de conduta consideradas ofensivas e, por isso, suscetíveis e carecidas de um qualquer tipo punição formal.
Como exemplo de tal processo de positivação gradual de condutas socialmente aconselháveis ou censuráveis, destaco, desde logo, as que resultam da aprovação, em muitos serviços públicos e empresas privadas, dos chamados códigos de ética e deontologia, tão recomendadas pelas atuais técnicas de «Governance» e «Compliance» de pendor anglo-saxónico.
Como não fosse suficiente, da descrição e positivação inicial de tais condutas apenas em guias de «soft law», passou-se, em seguida e apressadamente - como era de esperar – ao apelo do Direito Criminal para assumir a definição e penalização das consideradas mais graves.
Isto, embora com nomes mais antiquados, reconheça-se, muitas de tais condutas estivessem já criminalizadas, mesmo que com mais bom senso e em termos mais abrangentes e menos pormenorizados, permitindo à Justiça uma apreciação mais consistente da consciência e intenção criminosa do agente.
Da censura social, passou-se, pois, a uma mais individualizada e institucional censura penal, fundada sobretudo na sensibilidade específica da vítima e menos na correspondente consciência social do desvalor da conduta.
A simples censura social era, contudo, em muitos casos, bem mais eficaz do que uma pena criminal imposta fora do contexto social onde a suposta conduta – agora delito – aconteceu e foi penalizada pela Justiça.
À ideia – positiva – de encontrar uma maneira de viver mais respeitosa para com os outros e o seu modo de viver próprio, passou-se, assim, à normatização e penalização dura, objetiva e detalhada de condutas, mas que só o outro – a suposta vítima – está, em muitos casos, em condição de entender a plena razão de ser da sua censurabilidade específica.
Na medida e grau da subjetiva sensibilidade moral e cultural da vítima e do seu reconhecimento concreto pelo acusado, terá, hoje, o juiz de encontrar então o critério, mais ou menos elástico, da sanção a aplicar.
Isto, mesmo que os danos que de tal conduta possam ter resultado para a vítima, dependam, em rigor, e em muitos casos, unicamente, da especial apreciação negativa que ela mesma fez da conduta do denunciado.
É, todavia, difícil avaliar, do ponto de vista da culpa criminal, se uma dada e objetiva conduta social – revista ela caráter institucional ou privado – assume, ou não, em concreto, um caráter ofensivo por todos reconhecido como tal.
Avaliar se uma conduta, para além de magoar uma específica vítima, é suscetível de afetar, também, gravemente a sensibilidade da comunidade.
Para compreender e ultrapassar tal duplicidade concorrente de critérios, é, pois, necessário à Justiça proceder à análise, sempre intrusiva, e por isso também danosa, da relação antes existente entre o queixoso e suspeito, ou entre a natureza e função de uma e de outra instituição.
Assim, caminhamos, sempre e cada vez mais cegamente, no sentido da observação, orientação, criminalização e exposição pública da vida privada de todos e de cada um: todos passam a estar, pois, sob observação, todos estão sob suspeita, todos potencialmente vítimas.
Abandonando-se, em simultâneo – como é cada vez mais visível –, a educação para uma cidadania responsável, que tenha precisamente em conta aspetos tão simples como os que eram abrangidos por muitas das antigas regras de civilidade, demonstração de cortesia e respeito para com o outro.
Preceitos de civilidade comum, mal-aceites, hoje-em-dia, pois avaliados como redutores da individualidade ou da imagem que cada um entende projetar e assumir para si ou para a corporação e grupo que entenda representar.
Contudo, trilhando tal via, arriscamo-nos a alcançar apenas uma sociabilidade baseada na desconfiança, no medo, na vingança e na chantagem: uma sociabilidade de permanente conflito e humilhação.
Neste contexto socialmente belicoso, quase todas as condutas sociais podem, na verdade, transformar-se, real ou ficticiamente, em abusos e logo em delitos.
Mas, pior, uma conduta que – de certa maneira, à margem ou na margem, da sensibilidade social maioritária – pode, ainda assim, ser tomada como uma muito particular ofensa para uma dada pessoa ou instituição, pode, numa reviravolta, transformar-se numa desproporcional arma de condicionamento e agressão, de revanche mesmo, contra a vida e a liberdade do suposto agressor: contra a liberdade de todos e cada um de nós.
Por isso, na tradição jurídica europeia e continental, sempre se disse que o Direito Criminal é a razão última a que se deve recorrer contra os abusos feitos a uma pessoa ou aos direitos dos outros; tratem-se de abusos realizados ou sofridos por pessoas físicas ou legais.
Sem receio de se criminalizarem e punirem firmemente certas formas inéditas de violência real contra as pessoas e instituições sociais que têm vindo, infeliz e comprovadamente, ganhando espaço na nossa sociedade é, também, necessário ter o bom senso.
O senso de não procurar, impor, a todo o custo, a intervenção do Direito Criminal para conter e resolver contradições, que até poderão ser especialmente significativas no plano de círculos privados, mas, dificilmente poderão, ainda, ser sentidas como delituosas pela sociedade.
A tendência atual para a subjetivação do crime na proteção da sensibilidade de vítimas muito especiais pode, afinal, transformar-se num perigo social generalizado.
De situações objetivamente criminais, mas que, subjetivamente, o não são, por não terem sido pensadas e concretizadas como tal, estão, hoje, os tribunais cheios.
Há muito que, entretanto, se esqueceram as políticas de descriminalização e de sociabilização menos estigmatizantes dos que agem à revelia ou nas orlas de certas normas sociais e que tanta atenção tiveram nos anos sessenta e setenta do passado século.
Acresce que, num contexto muito mediatizado, como é o nosso atualmente, a simples queixa e a consequente subordinação de alguém a um processo judicial constituem, por si, e desde logo, uma sanção.
Na queixa, ou na simples notícia dela, esgota-se, aliás, quase sempre, o efeito pretendido pelo denunciante: o opróbrio, a humilhação do outro.
O mais grave é, contudo, que o juízo prévio à formulação das queixas sobre tal tipo de abusos nem sempre é óbvio.
Mesmo quando se referindo a danos particulares, as queixas acontecem, frequentemente, ao sabor, apenas, das circunstâncias sociais, políticas e mediáticas e, nem sempre – quase nunca -, obedecem a um critério coerente, do ponto de vista da sua importância para a comunidade.
Daí, falar-se, hoje, tanto – e com razão – da instrumentalização e politização da Justiça.