Durante muitos anos, sempre que se falava de um processo com repercussão social, logo alguns responsáveis políticos – e os que nos media por eles falavam – protestavam contra a politização da Justiça.
Pretendiam com isso insinuar que as magistraturas, e mormente o MP, atuavam segundo orientações político-partidárias ou, pior ainda, que havia – clandestino, suponho – um «partido dos magistrados» que teria por estratégia e ambição política a demolição do regime.
Dessa suspeição sobre a Justiça participavam muitos comentadores e figuras emblemáticas de uma certa advocacia dos interesses, que agiam mais no plano do lobbying e da exploração político-mediática dos casos judiciais do que na barra dos tribunais e no plano do processo e do Direito.
Como em outros países, procurava-se associar a atuação da Justiça à influência que nela teriam algumas forças de esquerda para, assim, deslegitimar a sua ação no, então ainda incipiente, combate à corrupção: o ativismo judiciário dos «petits juges rouges», como se dizia em França.
Tal estratégia de deslegitimação era – é – já velha e revelha e, além de outros, compilada e publicamente exposta, por exemplo, em livros como os do controverso causídico francês x Jacques Vergès.
Nessa narrativa, tudo, na Justiça, era, portanto, supostamente movido em função de um nubloso plano subversivo, procurando envolver nele, inclusive, um conhecido e prestigiado Procurador–Geral da República, que todos sabiam nada tinha de esquerdista.
Que a verosimilhança de tal enredo fosse absolutamente inviável, de pouco importava.
Uma mentira repetida muitas vezes ganha sempre foros de verdade, principalmente se for repetida nas TVs, não apenas pelos que a inventam, mas, também, por pivots tidos por sérios e isentos.
Aos defensores dos interesses prejudicados com a ação da Justiça, o que importava era deslegitimar a inevitável iniciativa processual dos titulares de tais investigações e as possíveis sentenças que as confirmassem.
Antes, como hoje, a indisfarçável violação do segredo de justiça – instrumento processual criado, no velho processo de tipo inquisitório, para x no essencial x proteger o serviço da investigação e não os direitos da defesa – constituía a principal arma de arremesso contra os magistrados, designadamente contra os do MP.
Em tal campanha contra o MP, chegava a ser caricato o inconcebível esquecimento recorrente do acesso e da intervenção nos inquéritos de outros sujeitos e colaboradores processuais: juízes, advogados, funcionários judiciais e polícias de investigação.
Lembro-me de, um dia, um jornalista, já enjoado com a adesão acrítica de alguns colegas seus ao discurso dominante sobre o assunto, me ter querido passar uma declaração assinada sobre o local onde, verdadeiramente, havia tomado contacto com os dados de um certo processo.
Destinava-se tal documento a que eu o usasse, se necessário, num debate televisivo sobre a violação do segredo de justiça, em que o outro interlocutor era exatamente o que o deixara ler o processo no seu escritório.
Não quero com isto dizer que, no seio das magistraturas e em especial do MP, não haja quem não esteja isento de culpas em tais transgressões.
Há, certamente, e é repugnante; mas, com as disposições legais processuais disponíveis para investigar tais comportamentos, é quase impossível saber como, de facto, tais fugas acontecem, mesmo que, intimamente, possamos x até x estar seguros de quem assim procedeu.
Há, fatalmente, entre ambos os lados dos que intervêm e beneficiam da quebra do segredo de justiça, um pacto de silêncio que, contudo, não impede os propagadores diretos de tais indiscrições de se constituírem, também, com enorme hipocrisia, em juízes severos dela: esta última atitude serve, aliás, muito oportunamente, para afastar suspeitas.
A impostura é tanta e tão descarada que, certo dia, cheguei a ler num jornal uma reclamação contra a promoção de um magistrado – antes colocado num lugar onde se encontravam processos sensíveis e apetecíveis do ponto de vista mediático – e que, por via da normal progressão da carreira, teria, inevitavelmente, de sair do posto onde exercia.
O que me leva a rememorar estes assuntos não é, todavia, a revoltante e impúdica atuação dos que assim procediam e procedem, mas a subtil e oportuna mudança de discurso sobre a intervenção da Justiça e designadamente do MP nos processos que mais impacto social e político têm junto da população.
Hoje, de agentes partidários ao serviço da “subversão vermelha” – que era como alguns media mais militantes os tentavam mostrar – os magistrados, muitas vezes os mesmos, passaram de infiltrados subversivos de esquerda a heróis mediáticos do populismo de direita.
Na verdade, muitos dos que, antes, assanhadamente, atacavam as magistraturas, incluindo-as nas chamadas forças de bloqueio, sãos os mesmos que ora clamam para que lhes dêem mais meios para uma sua intervenção mais incisiva e eficaz.
O juiz Sérgio Moro é, destes, o herói, cujo exemplo importaria, afinal, copiar.
Os diabos de ontem são, assim, os anjos de hoje, serão os diabos de amanhã e, porventura, de novo, os anjos do futuro.
As causas da ineficiência do sistema judiciário, mesmo que tal ineficiência seja hoje bastante menor, na maioria dos processos, e a que existe possa ser fácil e rapidamente reduzida por via legal, encontram-se, há muito, identificadas e estudadas.
Basta, para corrigir algumas delas, haver vontade política de reformar minimamente alguns institutos, algumas particularidades legais e outras tantas práticas forenses.
Os que mais clamam contra a ineficiência da Justiça – objetivamente com razão – podem, a qualquer momento, tomar, eles próprios, a iniciativa política de propor tais mudanças: elas são simples, poucas e não pesam no orçamento.
Mas isso não acontece.
Foi por tal motivo, e por não alcançar a incompreensível inatividade dos que, sendo críticos da morosidade, podem solucionar – mas não o fazem – alguns dos problemas mais gritantes, que subscrevi uma carta aberta que alerta para a mais simples, mas talvez a mais importante e necessária, medida que pode acelerar os processos-crime.
Refiro-me à imprescindível condensação das peças processuais, tornando-as legíveis e, assim, mais facilmente confirmáveis ou impugnáveis nos seus fundamentos; sejam elas acusações, petições, contestações, alegações de recurso, sentenças e acórdãos.
No tempo em que o meu pai era juiz – e ainda no início da minha carreira – as decisões eram escritas à mão e quem se enganava, ou queria acrescentar algo de que se esquecera, tinha de rasgar a página já escrita e reescrevê-la na íntegra, de modo a poder fazer coincidir o novo início e o novo fim de texto com o texto das páginas anterior e seguinte: se o não conseguisse, tinha de rasgar tudo e começar de novo.
Tal facto – entre outros – propiciava a capacidade de síntese de todos os que, assim, tinham de moldar e subscrever as peças processuais da sua competência.
Isso – só isso – facilitava enormemente os julgamentos.
A verdade é que a mão da justiça doía, então, tanto aos que a sofriam, como, de outro modo, aos que a escreviam e aplicavam.
Hoje, com os computadores e as exigências formalistas de alguma jurisprudência – afinal, imprudente – tudo ajuda quem se alarga no copy-paste e transforma o que escreve num indigesto, e tantas vezes inadequado, pastelão de citações doutrinais.
Porém, muitas de tais desmedidas peças pouco contribuem, afinal, para uma melhor compreensão do que, em cada concreto processo, se pretende dos tribunais ou do que estes, sobre tais pedidos, decidem.
Esta é uma característica nossa. Em outros países da Europa e da América, é, aliás, a doutrina que comenta a jurisprudência e nunca esta que cita a doutrina.
Enumerar e descrever claramente os factos e os elementos de prova de cada um deles – por mais complexos que estes sejam, e até por isso – é mais importante do que somar dezenas de citações doutrinais genéricas e, por vezes até, desadequadas ao caso.
Para superar a ineficiência da Justiça, a estes motivos simples e facilmente corrigíveis, acrescem outros, mas, para não me alongar e tornar, também, este texto incomestível, por hoje, ficarei por aqui.