O Mundo está um sítio cada vez mais perigoso. Não é que, em boa parte, sempre tenha sido assim, mas a grande diferença é que as redes sociais e a voragem mediática amplificam cada vez mais para o domínio da existência factos, acontecimentos e mentiras que estavam muito afastadas das nossas esferas individuais de conforto. A projeção dá-lhes existência, mas continua a fraquejar na substância, fator decisivo para se compreender o que realmente aconteceu.
O “agarrem-me que me vou a eles” do líder da Wagner durante o passado fim de semana tem tudo para ser uma dessas realidades tão reveladoras do mundo do vale tudo como de enigmática nas suas consequências. Revela que a lógica de que os fins justificam todos os meios tem mais perigos que ganhos, mesmo num ambiente ditatorial e oligárquico em que a ideologia soviética perdura na pose de superioridade czarista, mas foi substituída pela prevalência da generalidade de interesses particulares do Chefe, desde logo, o de se manter no poder. A mão que alimentou uma expressão armada do poder e dos interesses do Kremlin foi mordida, humilhada e vilipendiada. O mesmo poder, que mandou para a cadeia um pai de uma criança que fez um desenho à margem da doutrina vigente da guerra convertida em operação militar especial, amochou perante uma rebelião de um dos capatazes do exercício do poder russo e dos seus desmandos nacionais e internacionais, suportados pelos comunistas portugueses e por todas as latitudes de profissão ou simpatia pela ideologia soviética (de Cuba à Venezuela, do Irão à China).
Num mundo de contradições, nas realidades, nas circunstâncias e nas consequências, o beliscar de protagonista do “vale tudo” é sempre um momento de regozijo, mas a cereja no topo do bolo será existirem mazelas duradouras para o exercício. Mesmo num quadro em que a configuração cívica dos cidadãos está muito no limitar dos mínimos de exigência, como acontece na Rússia, é de crer que o frisson desestabilizador do “agarrem-me que me vou a eles” de Yevgeny Prigozhin e da turba da Wagner produza ondas de consciencialização individual e coletiva sobre as contradições e mentiras do regime. O carniceiro da Wagner implodiu pela verve parte da narrativa de Putin e simbolicamente foi mais longe do que a totalidade dos opositores democráticos do poder do Kremlin, uns remetidos para sucessivas condenações, outros entregues à vertigem dos azares das quedas de janelas, dos acidentes insólitos e das discretas substâncias homicidas.
O Mundo está pejado de contradições e de disrupções, sem que a vontade humana consiga construir respostas consequentes e sustentadas nas mais diversas áreas. Há mínimos de consciência e de ação civilizacional que deveriam ser assegurados e não o são, porque valores mais altos se levantam, sempre.
O circo mediático montado em torno da tragédia de um aparelho submarino para a promoção da adrenalina e da ampliação do risco de abonados contrasta com as notas de rodapés de atenção dos decisores e dos media com a multiplicidade de tragédias no Mediterrâneo com seres humanos desesperados que procuram melhor vida na Europa. A desproporção de atenção revela uma perturbadora indiferença perante os valores básicos, também projetada em tantas opções políticas, alegadamente ambiciosas e modernistas, quando demasiados não têm acesso ao básico, em Portugal e noutras longitudes do Mundo. O Mundo precisa de decência civilizacional e de senso nas opções, construindo soluções de acesso a bens e serviços básicos.
O mesmo acontece com os milhões e milhões que povoam o mercado de transferências de jogadores de futebol, agora enfunado pela ventania de dinheiro de latitudes e longitudes com diferentes perfis do acervo político, cultural e civilizacional europeu que está a ser desestabilizado, depois de tentativas de afirmação por dentro, como aconteceu com o Paris Saint Germain, detido por um fundo soberano do Catar. As distorções no confronto entre os grandes das principais ligas, os clubes financiados por grandes marcas e fundos de investimento e os restantes eram uma realidade, ainda contrariada pela dimensão desportiva. Agora, os alvos do poder do dinheiro generalizaram-se a quase tudo que mexa e não apenas aos protagonistas em final de carreira. O mundo ocidental, onde nos incluímos, já deveriam ter aprendido qualquer coisa com estas voragens do poder do dinheiro, mas não. Vergamo-nos ao vale tudo, até que despertamos para os lamentos.
Lamentamos o Mundial de Futebol no Catar, mas deixámos que ele tivesse sido uma realidade forjada na corrupção.
Acolhemos relações e dinheiro de Angola, da China, do Brasil, da Venezuela, entre outras latitudes, mas depois parecemos umas Madalenas arrependidas, a brandir valores e princípios.
No essencial, estamos a falar da generalização de um inconsequente “agarrem-me, senão vou-me a eles”, desfocado do essencial, no caso de Prigozhin como nas outras realidades, sempre a contar com um baixo nível de consciência e de ação cívica. Antes dos altos voos e grandes ambições, é preciso focar no essencial para as pessoas e os territórios.
NOTAS FINAIS
É ISTO. O desfasamento entre o tempo da necessidade e o da decisão, da concretização, é fatal para os processos e para a Democracia. A velocidade dos tempos modernos não se compadece com o lânguido dos processos. A Comissão Técnica Independente que avaliará o aumento da capacidade aeroportuária da região de Lisboa começou a trabalhar em novembro de 2022, só sete meses depois conseguiu as autorizações do governo para contratar os 25 estudos necessários para a avaliação do futuro aeroporto.
O DESPEITO DO PASSADO AOS OLHOS DOS NOSSOS DIAS. Estamos infestados de justiceiros do passado com os olhos, o conhecimento e a consciência do presente. Uma espécie de conhecedores dos números do Euromilhões depois do sorteio. São ridículos esses ajustes de contas com o passado e o fustigar de monumentos reportados a esses tempos, com glória e misérias, como hoje. Apesar de mais e melhor conhecimento. E de nada ajuda que a justiça portuguesa demore ano e meio a pedir a França para interrogar os graffiters do Padrão, agora que se exercitaram mais vómitos gráficos dessas consciências tardias.