Os fojos do lobo


Os Governos, quando sábios, fazem às Oposições o que os nossos avós faziam aos lobos, muito antes de estes se terem tornado uma espécie protegida.


   Construíam uma armadilha funda, de muros altos de pedras empilhadas, mais funda no interior do que a altura do muro exterior. Dentro do fojo era deixada uma ovelha tinhosa. O lobo conseguia escalar o muro exterior para descobrir que a profundidade do interior do fojo já não lhe permitia voltar a sair. Por muitos séculos não consta que esta dificuldade alguma vez tivesse impedido um só lobo de devorar a ovelha deixada como isco.

            A sabedoria de cada Governo mede-se pelo tempo em consegue manter entretida a oposição de volta da ovelha tinhosa. A maior saúde política do Governo de turno varia em função da menor importância da ovelha sacrificial dentro do rebanho político da maioria. A morte de ovelhas tinhosas ajuda, darwinisticamente, à saúde do rebanho governativo e mantém os lobos da oposição nos fojos, longe de poderem filar o dente nos elementos mais nutridos do rebanho.

            Estas práticas, tidas hoje, pelas urbanas criaturas que gostariam de alimentar lobos a Pedigree Pal vegetariano, por bárbaras, foram substituídas por uma visão modernaça do amor entre animais, em que ovelhas e lobos passam a funcionários, nutridos pelo erário público, engordando com a acumulação de diuturnidades. Consta que este método, já testado numa autarquia de relevo, garante a maior felicidade dos animaizinhos que, anafados pelas senhas de presença e rodeados de assessores, deixam de se comer uns aos outros.

            Camilo melhor narrou: “Na vertente da montanha que dominava a Samardã, havia um fojo – uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e o focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o cerrado. A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço e atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém transpor de salto o muro era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa. A fera provavelmente compreendia então que fora lograda; mas em vez de largar a presa, e aliviar-se da carga, para tentar mais escoteira o salto, a estúpida sentava-se sobre a ovelha e, depois de a esfolar, comia-a. Presenciei duas vezes esta carnagem em que eu – animal racional – levava vantagem ao lobo tão somente em comer a ovelha assada no forno com arroz. 

            De uma dessas vezes, pus sobre uns sargaços a Arte do padre António Pereira, da qual eu andava decorando todo o latim que esqueci; marinhei com a minha clavina pela parede por onde saltara a fera, e, posto às cavaleiras do muro, gastei a pólvora e chumbo que levava granizando o lobo, que raivava dentro do fojo atirando-se contra os ângulos aspérrimos do muro. Desci para deixar o lobo morrer sossegadamente e livre da minha presença odiosa. Antes de me retirar, espreitei-o por entre a juntura de duas pedras. Andava ele passeando na circunferência do fojo com uns ares burgueses e sadios  de um sujeito que faz o quilo de meia ovelha. Depois, sentou-se à beira da restante metade da rês; e, quando eu cuidava que ele ia morrer ao pé da vítima, acabou de a comer. 

            É forçoso que eu não tenha algum amor-próprio para confessar que lhe não meti um só graeiro de cinco tiros que lhe desfechei. As minhas balas de chumbo naquele tempo eram inofensivas como a balas de papel com que hoje assanho os colmilhos de outras bestas-feras.” De "O Degredado", in "Novelas do Minho", VII, edição crítica de Ivo Castro e Carlota Pimenta, Imprensa Nacional, Lisboa, 2020, pp. 16.

 

Os fojos do lobo


Os Governos, quando sábios, fazem às Oposições o que os nossos avós faziam aos lobos, muito antes de estes se terem tornado uma espécie protegida.


   Construíam uma armadilha funda, de muros altos de pedras empilhadas, mais funda no interior do que a altura do muro exterior. Dentro do fojo era deixada uma ovelha tinhosa. O lobo conseguia escalar o muro exterior para descobrir que a profundidade do interior do fojo já não lhe permitia voltar a sair. Por muitos séculos não consta que esta dificuldade alguma vez tivesse impedido um só lobo de devorar a ovelha deixada como isco.

            A sabedoria de cada Governo mede-se pelo tempo em consegue manter entretida a oposição de volta da ovelha tinhosa. A maior saúde política do Governo de turno varia em função da menor importância da ovelha sacrificial dentro do rebanho político da maioria. A morte de ovelhas tinhosas ajuda, darwinisticamente, à saúde do rebanho governativo e mantém os lobos da oposição nos fojos, longe de poderem filar o dente nos elementos mais nutridos do rebanho.

            Estas práticas, tidas hoje, pelas urbanas criaturas que gostariam de alimentar lobos a Pedigree Pal vegetariano, por bárbaras, foram substituídas por uma visão modernaça do amor entre animais, em que ovelhas e lobos passam a funcionários, nutridos pelo erário público, engordando com a acumulação de diuturnidades. Consta que este método, já testado numa autarquia de relevo, garante a maior felicidade dos animaizinhos que, anafados pelas senhas de presença e rodeados de assessores, deixam de se comer uns aos outros.

            Camilo melhor narrou: “Na vertente da montanha que dominava a Samardã, havia um fojo – uma cerca de muro tosco de calhaus a esmo onde se expunha à voracidade do lobo uma ovelha tinhosa. O lobo, engodado pelos balidos da ovelha, vinha de longe, derreado, rente com os fraguedos, de orelha fita e o focinho a farejar. Assim que dava tento da presa, arrojava-se de um pincho para o cerrado. A rês expedia os derradeiros berros fugindo e furtando as voltas ao lobo que, ao terceiro pulo, lhe cravava os dentes no pescoço e atirava com ela escabujando sobre o espinhaço; porém transpor de salto o muro era-lhe impossível, porque a altura interior fazia o dobro da externa. A fera provavelmente compreendia então que fora lograda; mas em vez de largar a presa, e aliviar-se da carga, para tentar mais escoteira o salto, a estúpida sentava-se sobre a ovelha e, depois de a esfolar, comia-a. Presenciei duas vezes esta carnagem em que eu – animal racional – levava vantagem ao lobo tão somente em comer a ovelha assada no forno com arroz. 

            De uma dessas vezes, pus sobre uns sargaços a Arte do padre António Pereira, da qual eu andava decorando todo o latim que esqueci; marinhei com a minha clavina pela parede por onde saltara a fera, e, posto às cavaleiras do muro, gastei a pólvora e chumbo que levava granizando o lobo, que raivava dentro do fojo atirando-se contra os ângulos aspérrimos do muro. Desci para deixar o lobo morrer sossegadamente e livre da minha presença odiosa. Antes de me retirar, espreitei-o por entre a juntura de duas pedras. Andava ele passeando na circunferência do fojo com uns ares burgueses e sadios  de um sujeito que faz o quilo de meia ovelha. Depois, sentou-se à beira da restante metade da rês; e, quando eu cuidava que ele ia morrer ao pé da vítima, acabou de a comer. 

            É forçoso que eu não tenha algum amor-próprio para confessar que lhe não meti um só graeiro de cinco tiros que lhe desfechei. As minhas balas de chumbo naquele tempo eram inofensivas como a balas de papel com que hoje assanho os colmilhos de outras bestas-feras.” De "O Degredado", in "Novelas do Minho", VII, edição crítica de Ivo Castro e Carlota Pimenta, Imprensa Nacional, Lisboa, 2020, pp. 16.