Ana admite que é exigente. Durante dois Verões, que podiam ter sido os últimos de férias grandes enquanto tirava o curso de Genética na Universidade de Glasgow, trocou os banhos de sol com os amigos por estágios e palestras em laboratórios de topo em Oxford e Cambridge. E quando chegou a altura de escolher onde fazer o doutoramento não fez por menos: contactou 20 grupos de investigação até perceber em qual lhe agradaria passar cinco ou seis anos. É um “compromisso sério” e só resulta com gosto, explica.
A investigadora portuguesa tem 26 anos e está há quase três, depois da tal vintena de contactos e uma mão de entrevistas, no laboratório do veterano da genética Bill Gibson na Universidade da Columbia Britânica, em Vancouver. Aos 15 anos, Ana Sequerra Amram Cohen pressentiu que este seria o seu mundo – filha de mãe portuguesa com antepassados em Marrocos e pai de ascendência israelita, encontrou nas primeiras aulas de Genética na escola uma ferramenta para investigar o seu lugar no mapa da vida. Mas nunca imaginou que o trabalho compensasse tanto e sonhos como uma descoberta de grande impacto acontecessem menos de uma década depois de deixar as carteiras do Liceu Francês, em Lisboa.
A descoberta foi publicada este mês na revista científica “Journal of Human Genetics”. Ana S. A. Cohen – assim assina a cientista – identificou uma mutação num gene que poderá explicar uma doença rara, mapeamento disponível em muito poucas doenças destas que, por definição, afectam no máximo uma em 2 mil pessoas. Que doença em concreto ainda é uma questão em aberto, mas isso implica contar a história toda. Quando se juntou ao laboratório de Gibson, o investigador tinha acabado de descobrir a mutação por detrás de uma doença rara chamada síndrome de Weaver, um problema descrito nos anos 70 que provoca a desregulação no desenvolvimento e que até então não estava associada a nenhuma causa. Crescimento acelerado dos vários tecidos e órgãos do corpo, dismorfias e deficiência intelectual são alguns dos sinais.
Mal saiu o artigo a falar do problema no gene EZH2, em 2011, começaram a chegar ao laboratório cartas de médicos e doentes que queriam saber se aquela seria a mutação por trás dos seus casos. A jovem investigadora portuguesa, que estava então a iniciar o doutoramento em Genética Médica em Vancouver com uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia, aceitou de bom grado a tarefa de que foi incumbida: ver se conseguia devolver um diagnóstico às famílias com base na descoberta do supervisor.
Ao fim de três anos tinham reunido amostras de ADN de 46 doentes com suspeitas de síndrome de Weaver espalhados por todo o mundo mas o mistério tinha-se adensado: apenas um quarto tinha a mutação. O que se passaria nos restantes casos, tão parecidos? Ana conta que, quando dava negativo para o EZH2, pesquisavam outro gene já associado a uma doença muito semelhante, mas mesmo assim quase dois terços dos casos ficaram por perceber. E foi a isso que se dedicou. “Podíamos ir à procura dos genes um a um, mas seria muito caro, pelo que tivemos oportunidade de fazer a verificação de todas as alterações genéticas de alguns doentes num parceiro nosso, o Genome Sciences Centre de Vancouver.”
Mesmo com a tecnologia mais avançada, Ana descreve a missão como “encontrar uma agulha num palheiro”. A metáfora perfeita quando está em causa descobrir um erro que provoque os problemas descritos na clínica entre os nossos 20 mil genes. No doente em que viria a fazer uma nova descoberta foram detectadas 15 mil alterações genéticas, das quais 300 eram únicas. “Depois foi preciso olhar com atenção: muitas destas alterações já tinham sido descritas em pessoas saudáveis, portanto podemos excluí-las. Outras eram alterações no ADN que não causavam alterações em proteínas, que também excluímos”, explica.
A lista foi encurtando mas Ana explica que os investigadores do Genome Sciences Centre, que se dedicam a investigação de cancro, acabaram por dar um empurrão fundamental. Isto permite explicar porque é que a descoberta que viria a fazer pode ser também importante para a oncologia. Em alguns cancros do sangue, como leucemias e linfomas, verificam-se alterações quer no gene EZH2, que Gibson tinha associado pela primeira vez a uma doença rara, quer no gene EED. E este segundo gene surgia na lista. “Fazia sentido, porque são responsáveis por proteínas que trabalham em conjunto. Mas nesses complexos estão envolvidos outros genes. Não chegaríamos lá sem esta conjugação de factores.”
No fundo é sempre um trabalho de equipa e Ana acredita que é dessa forma que poderá vir a dar frutos, tanto no diagnóstico como, no futuro, em tratamentos. E quer nas doenças raras – que surgem quando se adquirem mutações durante a gestação –, quer nos casos de cancro – em que as alterações surgem mais tarde. Não se sabe ainda se a mutação que identificou contribui para uma variante da doença de Weaver ou se será mais uma nova síndrome, mas para essa resposta é preciso encontrar mais doentes e é isso que se segue.
Por agora, pegar nos resultados da investigação e poder dar respostas a famílias que durante anos acharam que poderia ter sido por sua culpa, por algo de errado na gravidez, que os filhos tinham desenvolvido estas doenças enche-lhe as medidas. “Quando encontrarmos o gene podemos dizer que foi um erro da natureza, um azar”, diz.
Se foi a ideia de se poder conhecer melhor que a interessou pela genética, este lado humano tem vindo a convencê-la de que está no caminho certo. Foi guiada pela luz do avô materno, o conhecido cardiologista Salomão Sequerra Amram, que morreu há ano e meio. Foi ele que a inspirou a apostar num percurso internacional, para obter o melhor treino possível – como ele fez nos anos 50, quando rumou a Nova Iorque para se especializar mal sabendo falar inglês. E foi ele que a sensibilizou para o tacto da medicina, que nunca pensou em seguir mas a que acaba por estar ligada.
Com a vontade de quem é mesmo exigente consigo própria, mesmo o sonho de menina – dançar hip hop – continua a fazer parte do seu dia-a-dia. Começou a ter aulas aos 14 anos e continua a evoluir no estilo waacking nas pausas do laboratório, para desanuviar. E andar pelo mundo já lhe permitiu conhecer bailarinos de diferentes cidades, o que acaba por permitir conciliar a sério as duas paixões. A terceira e mais recente é esta de deixar as doenças raras menos órfãs de respostas. Ana ainda não sabe se vai continuar no estrangeiro, mas regressar a Portugal é um dos objectivos em mente. Pode parecer inesperado, mas para a jovem há nove anos fora tornar-se o melhor possível só faz sentido se um dia puder trazer esse conhecimento ao país. Como fez o avô, precursor de várias técnicas em Portugal como cateterismos cardíacos. Gostava de voltar para aumentar o contributo nacional na investigação de doenças que ainda deixam as famílias tantos anos na incerteza.