De dois em dois anos todos os caminhos vão dar às alamedas de carvalhos de Yasnaya Polyana, refúgio no Sudoeste de Tula, a 200 quilómetros de Moscovo, cenário das reuniões da família Tolstoy. Da Europa e da América chegam ramos do clã, cerca de 200 descendentes que se reúnem para discutir o futuro desta morada e o legado do mestre russo. Leão chamava-lhe a sua “fortaleza literária inacessível”. Um castelo de letras que assistiu ao seu nascimento, em 1828, à escrita dos clássicos “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, que lhe serve de túmulo, e que encarnava o espírito de um vasto território, povoado por mais de 140 milhões de almas.
O imóvel foi nacionalizado em 1921 e começou por ser gerido por uma filha do autor, Alexandra. A casa-museu, que guarda vários objectos pessoais e ainda os mais de 22 mil volumes que compunham a biblioteca de Tolstoy, é hoje dirigida por outro dos seus descendentes, Vladimir, o mesmo que organiza os encontros de uma impressionante dinastia, e que desde 2012 desempenha as funções de conselheiro do líder da grande nação, depois de manifestar desacordo com a estratégia para o sector seguida até então. O presidente desafiou-o a fazer melhor, e o bisneto do escritor dispôs-se a mostrar o que valia.
“Na Rússia nacionalista de Putin, um Tolstoy como diplomata cultural”, resume o artigo do “The New York Times” sobre o homem de 52 anos, de perfil mais conciliatório que o ministro da Cultura, Vladimir Medinsky, conhecido pela intransigência e pelo conservadorismo ao pronunciar-se sobre a superioridade russa e os seus valores – o mesmo que defende que “A Rússia não é Europa”, posição que Tolstoy se apressou a suavizar.
Fiel a esse perigoso pacto com Deus e com o Diabo, o timbre da voz não esmorece ao apoiar a anexação da Crimeia, território que Khrushchov cedeu à Ucrânia em 1954. Para mais, e já que é o apelido que aqui nos traz, Vladimir lembra que o então oficial Leão se bateu pela Rússia no quarto bastião em Sebastopol, velha “Cidade Proibida”, evocando o episódio do cerco que opôs as tropas russas às forças aliadas francesas, britânicas, e ainda da Sardenha e do Império Otomano – uma batalha que custou a vida a mais de 100 mil soldados russos, às margens do mar Negro. “Para nós, na nossa cabeça, isto sempre pertenceu à Rússia”,
cita o diário norte-americano, de visita a um dos directores da União dos Museus Russos, criado numa família da classe média de Moscovo e formado em Jornalismo.
Já “Guerra e Paz” pugnava por uma certa ideia, a de que a vida é demasiado complicada para simples conselhos sobre condenações ou misericórdia. Ou que a vilania de uma personagem, sempre tão próxima da realidade, por vezes mais real que o mais o real dos homens, nunca é linear e completa.
Tão ambivalente como o título da obra magna do seu bisavô, o director de Yasnaya Polyana divide-se entre a lealdade ao Kremlin e ao brio doméstico e o aperto de mão ao Ocidente. Deu o ámen à legislação que baniu os insultos de palcos, ecrãs de cinema e performances públicas – e que criminaliza as ofensas graves à religião, aprovadas na sequência da prisão do grupo Pussy Riot, em 2012 -, mas não deixa de recomendar moderação na aplicação das medidas. “Não apoio a banda, mas por outro lado considero que a reacção foi inapropriada. Um artista não deve ser punido nos tribunais.”
Em todo o caso, será prudente evitar ser excessivamente artista se trilhar os caminhos da arte, em prol de um desígnio nacional, fundador do carácter do próprio Estado. “A cultura deve desempenhar um papel de consolidação e unificação. Os apelos provocadores que podem conduzir ao isolamento são perigosos. Temos um espaço cultural único. O talento pode ter diferentes pontos de vista, mas é importante que esta base sirva para unir a população”, defendeu Tolstoy num encontro com o presidente em Abril de 2014, registado com pompa no site do Kremlin.
2015 foi anunciado como “O Ano da Literatura” pelo presidente, tão apreciador da ilustre prata da casa como de Hemingway ou do poeta persa Omar Khayyam. Talvez acreditando que os países felizes em tudo se parecem e os demais são o que são à sua maneira, a esmagadora maioria dos escritores declinou o convite para participar no congresso agendado para esta Primavera. Refém dos herdeiros dos clássicos, o drama de Putin é que nenhum dos Dostoevsky, Pushkin ou Lermontov que sobram escrevem, ou sequer perdem tempo a folhear o legado dos ascendentes, uma evidência épica, contada em menos de quatro volumes.