Mais dia menos dia, a foice galga as Escadinhas do Duque e podemos não ter o dia inteiro para morrer. Pergunte-se a Rosa Velho se também ela leu algures que os gregos antigos não escreviam necrológios. “quando alguém morria/ perguntavam apenas:/ tinha paixão?/ quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:/ se tinha paixão pelas coisas gerais,/ água, música…” Dirá às cegas que sim. Que o mestre que deixou de vir, e que hoje também não vem, tinha paixão pela paixão. Que chegava depois das três, e partia em vésperas do jantar. E que a certeza da hora, mais anónima que ele, só a conversa, com vontade própria, sabia.
Quando o vício secou e os cigarros se apagaram, ficou a servidão da água sem gás, do carioca de limão. “O carioca de café era uma coisa mais rara, mas servi-o muitas vezes. Dizia que antigamente andara muito na noite. ‘O que vou fazer para esses sítios se hoje não bebo nem fumo?’ Já não era a conversa dele”, diz a mulher que nunca abriu um livro do cliente que aqui podia ser poema à vontade. “Era uma excelente pessoa. Quem conhece sabe que não digo isto por ter morrido. Como poeta não posso dizer. Sei o que ouvia dos outros, que era muito bom poeta, mas nunca o li.”
Dos outros se ouve, pois, que O Poeta era bom. E que “se houvesse degraus na terra”, também se trepavam neste doloroso Evereste para quem se abalança do Rossio, rumo ao Solar dos Galegos, onde a métrica da morada não faz cerimónia. “Não é um salão nobre; se calhar era por isso que vinham. É um sítio pequeno. Chegavam a estar aqui trinta e tal pessoas, todas que de alguma maneira o ouviam, trocavam ideias”.
Jornalistas, poetas, doutores, engenheiros. Era o tempo das tertúlias, das reuniões com Baptista Bastos, com o professor Virgílio do Passos Manuel, com Luís Carlos Patraquim, com António José Forte, cuja morte ditou então a ausência prolongada de um enlutado HH, parelha de iniciais sem fim. “Quase nunca estava sozinho. Já se conheciam de outras paragens, antes do 25 de Abril”, recorda Rosa, praticamente nascida no estabelecimento dos pais, e ao serviço atrás do balcão e fora dele desde 1975, poucos anos antes do começo das visitas de Herberto Helder.
“quando alguém morria/ perguntavam apenas:/ tinha paixão?/ quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:/ se tinha paixão pelas coisas gerais,/ água, música…”
Era o tempo dos debates acesos, com fagulhas moderadas pela consideração entre senhores. Eram tardes inteiras de gente que também já não vem porque essa tal foice é alpinista. “Acima de tudo respeitavam-no, independentemente de gostarem mais ou menos da sua poesia, tendo em conta os muitos anos de convivência. Mesmo politicamente, as conversas podiam ir da direita à esquerda. Nunca ouvi nenhum maltratar outro por discordar. Muitas vezes pensava como é que conseguiam estar tantas horas a conversar, porque eram muitas horas, sem se desentenderem. Hoje, praticamente isto já não existe, muitos morreram, outros deixaram de aparecer”.
EM VOLTA DO MESTRE Para castigos bastava o carioca. Dispensou entrevistas e fotos, recusou honrarias e prémios, como o Pessoa, em 1994. A doença afastou-o desta rotina à beira do largo Trindade Coelho, onde uma livraria deu o mote e o velho café Expresso ajudou a cimentar o convívio. E Herberto continuou a preparar cada capítulo até olhar de frente o vigésimo. Nas redes, contra a vontade de quem o escreveu, chamaram-se logo as funerárias, refez-se o epitáfio que ele há muito lavrara, ouviu-se que a morte ganhou o mestre, mas o jogo é o da batota e essa não sabe ler. Até o OLX, onde nenhuma mercadoria precisa de um dia inteiro para nascer, num berreiro deformado, viu os preços das edições raríssimas a ascender em flecha.
“Hoje põe-se umas coisas no Facebook. Se isto fosse antigamente, em duas três horas estaria aqui muita gente reunida. São outros tempos. Para quem os viveu e soube tirar partido foi muito bom, pelo menos para mim. Muito se ouvia e muito se falava. Era uma pessoa com quem se podia conversar fosse do que fosse, apesar de ser intelectualmente muito avançada, muito culta. Era simples também. Conversava da mesma maneira com todos, dentro do respeito por todos, fossem mais ou menos doutores”.
Rosa, a mesma que não precisa de folhear obras esgotadas, que se emociona a meio das memórias, menos o viu a escrever no Solar. “Não podia estar a escrever a conversar ao mesmo tempo. Tinha uma frase muito engraçada. “Isto são 99% de trabalho e 1% de inspiração. E achava-se uma pessoa normalíssima. Nem sequer queria ser visto, era muito reservado. Também lhe ouvi boas gargalhadas, quando era caso disso. Mas quando era para falar de coisas sérias, era para falar de coisas sérias.”
À porta, os discretos vultos deixavam litígios e o bolor da trindade dos F. “Não se falava de fado, futebol, Fátima. Não eram temas muito apreciados por uma maioria de esquerda”. Mas, claro, ser o maior entre os grandes, mesmo quando o diálogo é de feição, também cansa. “No meio disto tudo também é preciso alguma paciência. Era como que um líder para muitas dessas pessoas”.
Por esses anos 80, quando começa a frequentar a casa, já Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira, nascido a 23 de Novembro de 1930, no Funchal, viajara por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca. Uma década antes, vira sair a terceira edição de “Os Passos em Volta” e “Os Brancos Arquipélagos”. Servira como redactor em Angola, escapara a um grave acidente a cobrir a guerra, regressara a Lisboa e abalara de novo, rumo aos EUA. Publicou a “Poesia Toda”, voltou a França e Inglaterra no rescaldo da revolução. De novo Lisboa, em mais uma escala do andarilho, que sobrevive a trabalhar na rádio e em revistas. Seguem-se “Cobra”, “O Corpo o Luxo a Obra” e “Photomaton e Vox” no curriculum do madeirense que aos 16 anos rumou ao continente para frequentar o 6º e o 7º ano do curso liceal. No final da década de 40, saltita entre o Direito e a Filologia Romântica, em Coimbra. Na capital, sem curso concluído, passa pela Caixa Geral de Depósitos, faz-se angariador de publicidade e uma casa de passe é tecto bastante.
Coimbra vê publicar o seu primeiro poema, em 1954, mas o tempo está para retorno à Madeira, agora na condição de meteorologista. Em Lisboa, que aquecia em 55 com o grupo do Café Gelo, junta-se a Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo. Conta os trocos com a propaganda farmacêutica, a redacção de publicidade, e edita “O Amor em Visita”, o primeiro livro, em 1958. Europa fora, sem lirismos, como o poema se quer, foi operário, empacotador, clandestino. Repatriado no começo de 60, assume o comando das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, volta a publicar e redige o noticiário internacional para a Emissora Nacional. Afastado da rádio, refugiado na publicidade, vê “Apresentação do Rosto” (1968) ser suspenso pela censura, e no mesmo ano lança “O Bebedor Nocturno”.
A súmula & inédita desenham um parágrafo no silêncio e encontram-se no novo milénio, com “A Faca Não Corta o Fogo (2008)”. Um ano mais tarde, surge a colectânea “Ofício Cantante”. Poucos dias se contaram para a magia de “Servidões”, para muitos a obra do ano, sumir das estantes, em 2013. Faltava “A Morte Sem Mestre” (2014), derradeiro estágio do mortal que um dia, eterno precário a subir e a descer degraus, havia de ser contratado.