O que mais me tem impressionado na recente crise político-institucional que tem assolado o Brasil é, de novo, a utilização das autoridades judiciais e judiciárias como meio privilegiado de resposta estatal.
Recordemos que, no afastamento de Dilma e de Lula, respetivamente da presidência e do cenário político brasileiro, fora já a Justiça que assumira o papel fundamental.
O poder judicial e o Ministério Público intervieram, então, congruentemente, em relação àqueles dois políticos, substituindo-se no papel que, antes, em tais situações, era atribuído aos militares.
Hoje, para fazer face ao movimento bolsonarista que procurava, mais uma vez, interromper o processo democrático, foi, de novo, o sistema de Justiça que foi acionado: o mesmo sistema de Justiça, os mesmos juízes e procuradores.
Só que, agora, agindo, aparentemente, em sentido contrário.
O mesmo parece ter-se passado nos EUA, no que respeita à gorada tentativa de Trump de se reapoderar do governo, na sequência das eleições perdidas e da invasão do Capitólio por apoiantes seus.
Veremos, ainda, o que irá acontecer com Joe Biden, a propósito do estranho caso dos documentos secretos encontrados à sua guarda, fora dos lugares apropriados.
Podemos, assim, constatar que, mais recentemente e nos mais diversos pontos do globo, o MP e os tribunais têm sido chamados a assumir uma intervenção que, mesmo quando não é suposto ser política, tem inevitavelmente resultados políticos determinantes.
Não é de agora – é de sempre – a vocação dos políticos de todos os regimes para endossar a responsabilidade pelas medidas mais drásticas que desejam ver usadas contra os seus inimigos a procuradores e juízes.
Passou-se, por exemplo, no nazismo, também durante o estalinismo, em Portugal durante o salazarismo, na Espanha de Franco, nos EUA durante o macartismo, no Reino Unido na luta contra o IRA – o caso verídico do julgamento retratado no filme «Em nome do pai», de Jim Sheridan, ilustra bem tal processo – e passa-se, agora, no Irão, tudo indicando que irá passar-se na Europa, a propósito da guerra da Ucrânia.
Em circunstâncias mais impactantes, quase sempre os políticos que saem vencedores de algum conflito se apressam a clamar pela Justiça e – não inocentemente – exigem, em público e desde logo, condenações e punições exemplares para os culpados, que não se esquecem, pronta e antecipadamente, de apontar.
Com demasiada frequência, constata-se, também, a Justiça sente-se sensibilizada por tais chamamentos e, só muito raramente, não procura agir de acordo com o que dela se espera.
Se os exemplos, antes dados, se centram, todavia, nas situações mais críticas e, assim, revestem de alguma maneira uma certa excecionalidade, não podemos deixar de notar, porém, o papel que a Justiça, mais recentemente, é chamada a desempenhar, de forma corrente, nos regimes democráticos.
Com efeito, em nome de prioridades de política criminal – nacionais e europeias, no nosso caso – quer o MP, quer, em consequência, os tribunais são convocados a integrar as chamadas lutas contra certos tipos de crime: pode ser a luta contra a droga, contra a corrupção, contra criminalidade digital, contra as redes mafiosas de tráfico de pessoas, etc.
O simples facto de, com alguma leveza, as autoridades judiciais e judiciárias, passarem, sem sentido crítico e o distanciamento indispensável, a incorporar no seu vocabulário funcional esse tipo de expressão – «a luta contra» – faz, desde logo, adivinhar um alinhamento político-institucional.
Pode parecer que o uso de tais expressões bélicas, por parte da Justiça, pouco mais é do que uma repetição infeliz da linguagem política, sendo esta sempre mais direta e simplificadora.
Acontece, porém, que a incorporação de tal tipo de linguagem acaba, demasiadas vezes, por funcionar como o cimento de uma argumentação implicitamente predeterminada em relação ao sentido das decisões que, por fim, são tomadas pela Justiça.
O que importa retirar de todas estas constatações é o frágil equilíbrio em que, quase sempre, a Justiça se deixa colocar ante a intervenção pública dos outros poderes institucionais e factuais.
Importa, por outro lado, constatar que, afinal, a conceção ideal de que «à justiça o que é da Justiça e à política o que é da política» é, até em democracia, mais retórica do que factual.
Os juristas – magistrados e advogados – devem, portanto, assumir que o seu papel, mesmo quando genuinamente proclamam o contrário e nisso acreditam, é, numa democracia, tão político como nos regimes autoritários.
Nestes, a valoração e alinhamento político da sua intervenção e das suas decisões são apenas assumidos de maneira mais ostensiva.
Em democracia, não: isso, em princípio, não é possível.
O primado do Estado de Direito e a consequente divisão dos poderes do Estado, torna tal evidência menos notória.
Por isso, se exige sobretudo dos magistrados, que, mesmo em democracia, adotem uma maior atenção e vigilância críticas sobre o papel que, em cada momento, lhes é solicitado.