O Bolhão regressou?


“Ó freguês… olhe que de tanto olhar ainda me gasta a fruta”


A recente reabertura do Mercado do Bolhão fez-me recordar um episódio lá vivido há alguns anos, bem ilustrativo do carácter e genuinidade das pessoas que transformavam este espaço num lugar único.

A história decorre em 1992, durante a realização de uma sessão fotográfica para um catálogo de moda.

Tínhamos estado lá na véspera, o fotógrafo e eu, para selecionar uma banca de frutas e legumes que pudesse servir de cenário. Facilmente encontramos uma. Linda. Os artigos estavam estrategicamente colocados por cores, texturas e tamanhos, como uma paleta de pintor. As frutas bem lavadas, polidas e escolhidas. Fruta podre ou tocada não tinha lugar naquele quadro. Não havia dúvidas de que quem a cuidava o fazia com grande brio e amor pelo seu trabalho. E certamente com o objetivo obvio de vender bem, porque o freguês também come e compra com os olhos.

A sua proprietária, Maria (chamemos-lhe assim, sendo que este nome é a única coisa fictícia neste relato), recebeu-nos de forma desconfiada. Estávamos a olhar de mais e a comprar de menos.

“Ó freguês… olhe que de tanto olhar ainda me gasta a fruta” – disse-nos ela. Tivemos de explicar rapidamente o que pretendíamos, não fossemos colocar em risco este cenário perfeito.

Quando referimos que a sua banca era a mais bonita do mercado ganhamos uma aliada para todo o sempre. “Pois claro que podem fotografar a fruta meus amores! Mas só se for a da bancada, porque minha já está fora de prazo!” – disse-nos, rindo e colocando as mãos nos bolsos do seu avental/xaile de malha, meneando as ancas de forma malandra.

Combinamos então que voltaríamos no dia seguinte com todo o material e demais equipa, incluindo a modelo. Revelamos a nossa preocupação com a reação dos demais vendedores e frequentadores do mercado, porque a moça era muito bonita e iria estar de mini saia, exposta a olhares pouco habituados (embora apreciadores) a estas andanças. Tranquilizou-nos de imediato. “A moça até pode vir nua que ninguém lhe toca, senão…” – o gesto não oferecia dúvidas.

Regressamos no dia seguinte. Colocamos o mercado em alvoroço com a montagem do equipamento e com os últimos retoques na maquilhagem da modelo. A rapariga tinha de desfilar junto à banca da Maria como se estivesse numa glamorosa sessão de compra de alfaces e outros legumes. Escusado será dizer que, mal deu os primeiros passos, começaram as bocas! Dada a natureza nortenha das mesmas, abstenho-me de as reproduzir, deixando esse conteúdo à livre imaginação de quem conhece bem este local.

As bocas não duraram nem trinta segundos! Salta a Maria, secundada por mais algumas amigas, em defesa da moça e do seu profissionalismo, passando valente raspanete aos meliantes que se tinham atrevido.

“Ouve lá ó morcão… gostavas que dissessem isso à tua filha? Vê lá se estás calado ou levas uma lambada que te viro!”

E foi o suficiente para podermos trabalhar em paz até ao fim. Com a Maria e as suas aliadas como guarda costas. Até se ouviam as moscas da fruta. Nas outras bancas que não a da Maria, entenda-se.

A Maria colocou-se todo o tempo atrás do fotografo, elogiando o seu trabalho e mestria. “É muito bom fotografo, este amor! Esteve aqui ontem e não dava nada por ele, parecia um vagabundo. Mas tira fotografias que é uma riqueza!”

Estávamos então na época da fotografia analógica, quando ainda era necessário esperar alguns dias para ver o resultado das fotos. Mas a fé da Maria nas qualidades do fotografo era inabalável. Ou não estivesse ele a fotografar a banca mais bonita do mercado.

Oferecemos depois um exemplar do catálogo à Maria. Exibia-o com orgulho a todos os que o queriam ver, e também aos que não queriam, talvez ressabiados por não terem escolhido a sua banca. Pediu-nos um segundo exemplar, para poder emoldurar a página que a retratava. Passei por lá várias vezes ao longo dos anos e fui vendo a foto desbotar. Até que desapareceu. Com a Maria.

Ainda não fui ao novo Bolhão. Talvez por ter medo de que estas bancas e estas Marias não voltem a este espaço mítico.

 

 

 

O Bolhão regressou?


“Ó freguês... olhe que de tanto olhar ainda me gasta a fruta”


A recente reabertura do Mercado do Bolhão fez-me recordar um episódio lá vivido há alguns anos, bem ilustrativo do carácter e genuinidade das pessoas que transformavam este espaço num lugar único.

A história decorre em 1992, durante a realização de uma sessão fotográfica para um catálogo de moda.

Tínhamos estado lá na véspera, o fotógrafo e eu, para selecionar uma banca de frutas e legumes que pudesse servir de cenário. Facilmente encontramos uma. Linda. Os artigos estavam estrategicamente colocados por cores, texturas e tamanhos, como uma paleta de pintor. As frutas bem lavadas, polidas e escolhidas. Fruta podre ou tocada não tinha lugar naquele quadro. Não havia dúvidas de que quem a cuidava o fazia com grande brio e amor pelo seu trabalho. E certamente com o objetivo obvio de vender bem, porque o freguês também come e compra com os olhos.

A sua proprietária, Maria (chamemos-lhe assim, sendo que este nome é a única coisa fictícia neste relato), recebeu-nos de forma desconfiada. Estávamos a olhar de mais e a comprar de menos.

“Ó freguês… olhe que de tanto olhar ainda me gasta a fruta” – disse-nos ela. Tivemos de explicar rapidamente o que pretendíamos, não fossemos colocar em risco este cenário perfeito.

Quando referimos que a sua banca era a mais bonita do mercado ganhamos uma aliada para todo o sempre. “Pois claro que podem fotografar a fruta meus amores! Mas só se for a da bancada, porque minha já está fora de prazo!” – disse-nos, rindo e colocando as mãos nos bolsos do seu avental/xaile de malha, meneando as ancas de forma malandra.

Combinamos então que voltaríamos no dia seguinte com todo o material e demais equipa, incluindo a modelo. Revelamos a nossa preocupação com a reação dos demais vendedores e frequentadores do mercado, porque a moça era muito bonita e iria estar de mini saia, exposta a olhares pouco habituados (embora apreciadores) a estas andanças. Tranquilizou-nos de imediato. “A moça até pode vir nua que ninguém lhe toca, senão…” – o gesto não oferecia dúvidas.

Regressamos no dia seguinte. Colocamos o mercado em alvoroço com a montagem do equipamento e com os últimos retoques na maquilhagem da modelo. A rapariga tinha de desfilar junto à banca da Maria como se estivesse numa glamorosa sessão de compra de alfaces e outros legumes. Escusado será dizer que, mal deu os primeiros passos, começaram as bocas! Dada a natureza nortenha das mesmas, abstenho-me de as reproduzir, deixando esse conteúdo à livre imaginação de quem conhece bem este local.

As bocas não duraram nem trinta segundos! Salta a Maria, secundada por mais algumas amigas, em defesa da moça e do seu profissionalismo, passando valente raspanete aos meliantes que se tinham atrevido.

“Ouve lá ó morcão… gostavas que dissessem isso à tua filha? Vê lá se estás calado ou levas uma lambada que te viro!”

E foi o suficiente para podermos trabalhar em paz até ao fim. Com a Maria e as suas aliadas como guarda costas. Até se ouviam as moscas da fruta. Nas outras bancas que não a da Maria, entenda-se.

A Maria colocou-se todo o tempo atrás do fotografo, elogiando o seu trabalho e mestria. “É muito bom fotografo, este amor! Esteve aqui ontem e não dava nada por ele, parecia um vagabundo. Mas tira fotografias que é uma riqueza!”

Estávamos então na época da fotografia analógica, quando ainda era necessário esperar alguns dias para ver o resultado das fotos. Mas a fé da Maria nas qualidades do fotografo era inabalável. Ou não estivesse ele a fotografar a banca mais bonita do mercado.

Oferecemos depois um exemplar do catálogo à Maria. Exibia-o com orgulho a todos os que o queriam ver, e também aos que não queriam, talvez ressabiados por não terem escolhido a sua banca. Pediu-nos um segundo exemplar, para poder emoldurar a página que a retratava. Passei por lá várias vezes ao longo dos anos e fui vendo a foto desbotar. Até que desapareceu. Com a Maria.

Ainda não fui ao novo Bolhão. Talvez por ter medo de que estas bancas e estas Marias não voltem a este espaço mítico.