O caso Miguel Alves é pouco mais do que um rodapé, uma cortina de fumo e uma oportunidade para a oposição na longa marcha de uma caminhada política de António Costa, assente num pressuposto de vale tudo, em que a habilidade no exercício se vai transformando num verdadeiro plano pantanoso, alheado dos princípios, da ética e valores democráticos.
A verdade é que tão propalada e sufragada habilidade política do protagonista maior está a transformar uma inequívoca vitória eleitoral com maioria absoluta e condições singulares de recursos financeiros para concretizar, num preocupante quadro de degradação partidária, política e democrática. São cinco os erros capitais, apesar dos êxitos eleitorais recentes, da anuência popular e da sustentação de uma espécie de cordão sanitário de proteção construída a partir do exercício do poder municipal e governativo, ao longo de anos, que vai dos media à justiça:
1. O triunfo do quotidiano sobre a visão estratégica, base fundamental para a concretização do sentido de “vale tudo” na política, em que os fins justificam todos os meios, presente no acesso ao poder interno no PS, na transformação de uma derrota eleitoral em solução de governo ou nos ziguezagues de aliança à esquerda e à direita à procura de convergências para os objetivos pretendidos. A vigência do imediatismo, em prole da manutenção dos poderes, impede a existência de uma visão estratégica de afirmação do país, além das questões simbólicas e de agendas que podem contribuir para o glamour das preocupações com os grandes temas, mas em nada contribuem para a vida concreta das pessoas e para as dinâmicas (ou ausência delas) nos territórios;
2. A consagração da geometria variável nos princípios, valores e critérios em função da sobrevivência política, presente na adoção de comportamentos diferenciados em função dos protagonistas e das circunstâncias, como se estivesse sem rumo e não tivesse um acervo de orientação inscrito na história do partido e de mínimos do exercício do poder em democracia. Afinal, tudo resume a, em cada momento, escolher do cardápio de valores e princípios a abordagem que mais convém ao objetivo final. É assim que, ao longo dos anos, se mantiveram em funções protagonistas que não preenchiam os mínimos, lesando o interesse geral, e outros, à ameaça digital de uns tabefes, são postos borda fora, como aconteceu nos idos com o ministro João Soares;
3. A complacência com a geração de um ambiente de casos e de opções políticas polémicas que propiciam oportunidades para o populismo, os extremismos, as oposições fragilizadas e a degradação popular do sistema democrático. Os casos podem ser aditivados e empolados, podem até ser coisas menores face ao que a direita fez no poder, por exemplo, em matéria de privatizações sem salvaguarda do interesse estratégico nacional, mas com o mal dos outros pagamos nós, porque a questão é também a da mobilização do erário público e do dinheiro dos contribuintes para corresponder aos desmandos. A verdade é que este laxismo complacente com os casos, já proveniente do exercício do poder em Lisboa, que foi contribuinte líquido para a perda da Câmara, permite e incentiva a habilidade e os habilidosos. É uma oportunidade para alguns venderem jornais, outros abocanharem a democracia e a população zurzir nos políticos e na política;
4. A perceção de uma certa ideia de impunidade, de garantia de ausência de escrutínio consequente, de enfado com a contrariedade da pergunta incómoda, de despacho de arquivamento com menção de “não assunto” em relação aos burburinhos noticiosos, de inconsistência no discurso político com diversas modelações em função das circunstâncias, como se existisse uma espécie de abuso de posição dominante construída pelo exercício do poder, é contrária ao espírito democrático, em que tudo é transitório, deve escrutinável e é suposto obedecer ao interesse geral. Um posicionamento que convive bem com órbitas de interesses representadas por próximos, num quadro de escrupulosa legalidade e duvidosa ética, sem hesitar em prescindir dessas rotas de convergência, quando necessário;
5. A confusão entre partido e Estado, não tanto nas nomeações, onde já deveria ter sido clarificado de uma vez por todas o que são cargos de confiança política, mas na complacência com que governamentaliza as dinâmicas partidárias, como se assistiu recentemente nas eleições para as federações com diversos membros do executivo candidatos a cargos internos, com honrosa exceção para o ministro Manuel Pizarro. Tudo isto, depois de se ter criado o cargo de secretário-geral adjunto para, na circunstância do exercício do poder governativo, manter o partido com funcionamento e dinâmicas autónomas.
Além destes erros capitais, enunciados ao longo de anos, desde 2014, há agora uma profusão de sobressaltos de protagonistas políticos em relação ao vergonhoso caso Miguel Alves na gestão de dinheiros públicos, em que pôs um particular “a contar com o ovo no cu da galinha” do município de Caminha. Certamente existirão virtuosismos do habilidoso político e das habilidades, ‘condescendidas’ por boa parte dos media e validadas eleitoralmente, mas não há compromisso de militância ou vínculo democrático que se sobreponha à censura destas realidades. Nada se sobrepõe quando o exercício político contribui para violentar valores e minar a democracia, degradando o ambiente comunitário e gerando oportunidades para a oposição, os populismos e os extremismos. Em política, não vale tudo, mesmo. Nem mesmo colocar dinheiro público nos privados, sem fundamento sustentável. É a ética, estúpido!
NOTAS FINAIS
DE SUPETÃO, JERÓNIMO FOI-SE. Jerónimo sempre foi uma figura simpática. Partilhei o Parlamento com ele, cordial, determinado da defesa dos seus valores, institucional embora tenha subvertido as práticas parlamentares com a geringonça, será sempre lembrado pelo valor da palavra dada, pelos valores das suas palavras e pela rota coerente com que liderou o PCP. Tudo bens escassos na política atual.
O ENCANTO DOS RÓTULOS COMUNISTAS. O sucessor de Jerónimo, qual monarquia, é Paulo Raimundo, um desconhecido geral, conhecido interno de quase 20 anos de funcionalismo partidário, rotulado de operário. O encanto seletivo dos epítetos comunistas faria de mim também um operário pela soma dos trabalhos de três verões na construção civil, de um verão numa tipografia em Alverca e de uma empreitada a limpar um motor de um navio nos estaleiros navais da Argibay.
AJUDAR MARCELO A ACABAR COM DIGNIDADE. Falta muito tempo, mas está à vista, o esforço integrado que vai ser ajudar o Presidente da República a acabar o mandato com mínimos de dignidade, depois da luta greco-romana com o chico-esperto da Web Summit, também a caminho de África; dos ralhetes esganiçados e do “falar por tudo e por nada”, em português e noutras expressões verbais indecifráveis.
Escreve à quarta-feira