Pastores


O pastor tinha a sua idade bem marcada nas rugas da face e muita serra nas pernas.


Era outono na Serra da Estrela. Linda como sempre. Acabei uma deslumbrante caminhada pelas encostas sobranceiras a Manteigas. A Rota das Faias. Percorri os seus trilhos na companhia escondida de um rebanho que se ia revelando apenas pelo seu badalar longínquo e que combinava na perfeição com o marulhar do vento entre as faias.

No final do caminho felizmente coincidimos. Eu e o rebanho. De cabras. Fiquei parado a observar a sua passagem, tentando não interferir no seu espaço e também com algum receio do cão que o guardava com o seu instinto territorial. Os animais foram passando por mim tranquilos, ignorando completamente a minha presença. No meio deles vinha o pastor. Com a sua idade bem marcada nas rugas da face e com muita serra nas pernas. Tinha um rosto simpático e o sorriso desdentado mais belo e mais feliz que vi até hoje. Cumprimentamo-nos e ele parou um pouco para conversar comigo, certamente contente por uma pausa na monotonia da sua serra. Tinha discurso fácil e, nas palavras, o sotaque maravilhoso da sua terra.

A dada altura reparei que alguns animais transportavam, amarrada às suas barrigas, uma espécie de pala em burel. A pala, chamemos-lhe assim, estava colocada por baixo da barriga, a meio caminho entre as patas dianteiras e traseiras e estendendo-se até ao chão. Intrigado, questionei o pastor acerca deste apetrecho. O seu sorriso abriu-se ainda mais e acrescentou aos olhos um lampejo de divertida malandrice.

– Esses são os “tshibos”, disse-me ele, rindo.

– É para não poderem… coiso… com as cabras. Tá a compreender? Nesta altura não dá jeito.

Ri com ele. Disse-lhe que compreendia perfeitamente o que ele queria dizer. Era então uma espécie de contracetivo serrano para os chibos?

– Pois claro, continuou. Certa vez, um miúdo fez-me a mesma pergunta. Fiquei todo atrapalhado. Não ia dar estas explicações à criança! Tive de inventar uma história e disse-lhe assim… “Ó rapaz, o teu pai tem um carro não tem? E tem umas palas nas rodas para não deixar a lama sujar o carro? Pois aqui é a mesma coisa. É para o “tchibo” não sujar as patas traseiras.”

Fiquei maravilhado com a capacidade inventiva e com a inteligência deste homem, capaz de conter a sua malandrice e dar ao miúdo uma explicação adequada e convincente para tal apetrecho.

Estávamos nós nesta conversa quando se nos junta outro pastor, amigo do meu pastor.

– Este é que era um pastor a sério. Disse o meu, que só tinha começado a “pastorar” depois de 30 anos a trabalhar na fábrica. O outro, era pastor desde criança, e em novo fazia a transumância do gado entre Manteigas e Idanha-a-Nova. Demorava quatro dias a percorrer o trajeto… porque o gado era lento!

Quatro dias para percorrer tanto quilómetro e tanta serra, sem equipamentos high-tech, sem roupas técnicas ou botas em “gore tex” com sola “vibram”. Homens de outras fibras, com pernas e pulmão a sério.

Eu gosto muito de caminhar. E acho que, modéstia à parte, até caminho relativamente bem. Por vezes grandes distâncias. Mas lá meti as minhas botas “gore tex” com sola “vibram” no saco, a pensar que ao lado destes homens não passo de um simples menino.

Pastores


O pastor tinha a sua idade bem marcada nas rugas da face e muita serra nas pernas.


Era outono na Serra da Estrela. Linda como sempre. Acabei uma deslumbrante caminhada pelas encostas sobranceiras a Manteigas. A Rota das Faias. Percorri os seus trilhos na companhia escondida de um rebanho que se ia revelando apenas pelo seu badalar longínquo e que combinava na perfeição com o marulhar do vento entre as faias.

No final do caminho felizmente coincidimos. Eu e o rebanho. De cabras. Fiquei parado a observar a sua passagem, tentando não interferir no seu espaço e também com algum receio do cão que o guardava com o seu instinto territorial. Os animais foram passando por mim tranquilos, ignorando completamente a minha presença. No meio deles vinha o pastor. Com a sua idade bem marcada nas rugas da face e com muita serra nas pernas. Tinha um rosto simpático e o sorriso desdentado mais belo e mais feliz que vi até hoje. Cumprimentamo-nos e ele parou um pouco para conversar comigo, certamente contente por uma pausa na monotonia da sua serra. Tinha discurso fácil e, nas palavras, o sotaque maravilhoso da sua terra.

A dada altura reparei que alguns animais transportavam, amarrada às suas barrigas, uma espécie de pala em burel. A pala, chamemos-lhe assim, estava colocada por baixo da barriga, a meio caminho entre as patas dianteiras e traseiras e estendendo-se até ao chão. Intrigado, questionei o pastor acerca deste apetrecho. O seu sorriso abriu-se ainda mais e acrescentou aos olhos um lampejo de divertida malandrice.

– Esses são os “tshibos”, disse-me ele, rindo.

– É para não poderem… coiso… com as cabras. Tá a compreender? Nesta altura não dá jeito.

Ri com ele. Disse-lhe que compreendia perfeitamente o que ele queria dizer. Era então uma espécie de contracetivo serrano para os chibos?

– Pois claro, continuou. Certa vez, um miúdo fez-me a mesma pergunta. Fiquei todo atrapalhado. Não ia dar estas explicações à criança! Tive de inventar uma história e disse-lhe assim… “Ó rapaz, o teu pai tem um carro não tem? E tem umas palas nas rodas para não deixar a lama sujar o carro? Pois aqui é a mesma coisa. É para o “tchibo” não sujar as patas traseiras.”

Fiquei maravilhado com a capacidade inventiva e com a inteligência deste homem, capaz de conter a sua malandrice e dar ao miúdo uma explicação adequada e convincente para tal apetrecho.

Estávamos nós nesta conversa quando se nos junta outro pastor, amigo do meu pastor.

– Este é que era um pastor a sério. Disse o meu, que só tinha começado a “pastorar” depois de 30 anos a trabalhar na fábrica. O outro, era pastor desde criança, e em novo fazia a transumância do gado entre Manteigas e Idanha-a-Nova. Demorava quatro dias a percorrer o trajeto… porque o gado era lento!

Quatro dias para percorrer tanto quilómetro e tanta serra, sem equipamentos high-tech, sem roupas técnicas ou botas em “gore tex” com sola “vibram”. Homens de outras fibras, com pernas e pulmão a sério.

Eu gosto muito de caminhar. E acho que, modéstia à parte, até caminho relativamente bem. Por vezes grandes distâncias. Mas lá meti as minhas botas “gore tex” com sola “vibram” no saco, a pensar que ao lado destes homens não passo de um simples menino.