Ser LGBT+ no desporto. “O silêncio tolda a capacidade de viver”

Ser LGBT+ no desporto. “O silêncio tolda a capacidade de viver”


Kelly Holmes, uma lenda britânica da corrida de fundo, só se sentiu segura em assumir-se como lésbica aos 52 anos. “Os coletivos profissionais de desporto ainda são muito fechados”, lamenta uma dirigente da ILGA Portugal.  


Quando os britânicos vibraram ao ver Kelly Holmes ganhar duas medalhas de ouro e uma de prata nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, não faziam ideia de que esta corredora de fundo, especializada nos 800 e 1500 metros, se debatia com o peso de ter que esconder a sua sexualidade. Holmes, que já brilhara em diversos campeonatos mundiais e receberia o título de Dama da Ordem do Império Britânico, teve de esconder as suas relações do público, temendo represálias enquanto atleta de alta competição, mas também que afetasse a sua carreira militar. Só se sentiria confortável em assumir a sua homossexualidade este ano, em pleno Mês do Orgulho LGBTQIA.

“Estou nervosa quanto a dizê-lo. Sinto como se fosse explodir com entusiasmo. Às vezes choro de alívio”, contou Holmes, aos 52 anos, em entrevista ao Sunday Mirror, explicando que esse segredo teve um impacto brutal na sua saúde mental. “No momento em que isto sair, essencialmente estou a livrar-me desse medo”, desabafou.

Holmes não é a única militar ou atleta de alta competição que sente que tem tudo a perder por expressar a sua sexualidade. E claro que isso não acontece só no Reino Unido, por cá isso também é uma realidade, frisou Ana Aresta, presidente da direção da ILGA Portugal. Para pessoas LGBT+, poder ser aberto quanto a isso “ainda é muito difícil”, lamenta, ao i. “Os coletivos profissionais de desporto ainda são muito fechados quanto à liberdade para partilhar contextos íntimos relacionados com identidade e orientação sexual”, nota Aresta. Que não ficaria nada surpreendida caso alguns atletas de alta competição de hoje só daqui a décadas se sentissem confortáveis em assumirem-se como LGBT+. “Infelizmente não me surpreenderia”. 

“O que não faz sentido nenhum”, nota. “Que num contexto social em que cada vez mais se conquistam direitos nas leis, mas depois na prática os organismos sociedade, neste caso clubes e federações, continuam muito muito fechados”.

 

Secretismo

No caso de Holmes, estava consciente da sua orientação sexual desde os 17 anos, quando beijou uma outra militar. Outro passo foi quando a sua família soube, uma década depois, mas a atleta ainda teve de passar muito tempo a esconder a sua orientação sexual dos colegas e do público.

“Sabemos que em muitos clubes, ou entres pares, há muitos casos como este, que  familiares e pessoas próximas sabem”, frisa Aresta. “Mas que num contexto público, dentro de clubes ou entre pares, que tem medo de perder apoios ou patrocínios. Há um fechamento muito grande” Na prática, continua a ser um ambiente onde é difícil para atletas LGBT+ “puderem viver sem medos”, lamenta.

“Principalmente no contexto do futebol, há muita associação da orientação sexual à fragilidade e ao insulto”, continua a dirigente da ILGA Portugal. “Esse ambiente mais opressivo acaba por restringir muito”, concluí. Afinal, quem nunca ouviu um insulto homofóbico ou transfóbico desvalorizada como sendo uma mera “piada de balneário”?

O mesmo poderia ser dito quanto ao chamado “humor de caserna”. São ambos espaços historicamente conotados com a chamada “masculinidade tóxica”, ou seja, com uma perceção machista e estereotipada do mundo, também associada á homofobia e transfobia. “Os atletas masculinos sofrem muito com isso. E isso cria espaços que não são amigos das pessoas LGBTI”, considera Aresta. “É muito limitador. É normal que nesses casos as pessoas que não sintam ter espaço. E isso não é um ambiente saudável para ninguém, nem para quem sofre insultos nem quem os pratica”.

Não espanta que, por exemplo, apesar de não haverem atletas portugueses assumidamente LGBT+ na primeira liga do futebol masculino, não seja o caso no que toca ao futebol feminino. “Consideramos que o futebol feminino pode ter um papel muito importante”, refere Aresta. “Porque é um desporto que neste momento luta pela igualdade de género e pode ter uma abertura muito grande para trazer os direitos LGBTI para cima da mesa no contexto desportivo”.

 

Mágoa

As consequências do secretismo para a saúde mental de Holmes foram tão duras que atleta sentia que dava em doida se não estivesse a correr, chegando ao ponto de se cortar, admitiu, na sua entrevista Sunday Mirror. “Literalmente queria gritar tão alto, eu ligava a torneira para notar menos as minhas lágrimas. Não queria mais estar aqui”, explicou. São relatos duros, ainda mais sabendo que, neste momento, outros atletas podem estar a sentir algo semelhante.

“O silêncio tolda-nos grandes parte da nossa capacidade de viver”, descreve a dirigente da ILGA Portugal. “É esse o contexto de medo em que vivemos quando não sentimos espaço para nos expressar. E obviamente que num contexto de alta performance, já é uma profissão de alto desgaste, ainda é mais quando as pessoas não têm liberdade para viver tal como são”, remata.

No caso de Holmes, ainda tinha a dificuldade de ser militar. E a homossexualidade era proibida no exército britânico até 2000, tendo a atleta receio de ser colocada perante um tribunal militar caso se assumisse publicamente. No que toca às forças armadas portuguesas, têm havido avanços, assegura Arestas. Apesar de ainda em 2015 o site do exército apontar a homossexualidade como uma “contraindicação” a uma carreira militar, a par do alcoolismo e do consumo de drogas, como avançou o i na altura.

“Sabemos que há ainda muito a fazer”, considera Aresta. “Mas tem havido esforço e também diálogo, inclusive com a ILGA Portugal, para garantir que há mecanismos para que pessoas LGBTI no exército não sejam descriminadas”, assegurou, apelando a que federações e clubes desportivos façam o mesmo.

Os avanços “passam muito por capacitar quem lida diretamente com estes atletas, que neste caso são dirigentes treinadores e os próprios órgãos dos clubes, para garantir que esta questão deixa de ser um problema”, afirma. “Porque os atletas até terão melhor performance quanto mais estiverem saudáveis dentro do contexto de trabalho. E a saúde também passa pelo espaço e liberdade de poderem expressar os seus sentimentos, orientação sexual e identidade”.