A carga de trabalhos infanto-juvenil


Há algo que vai fazendo muita falta na vida, no crescimento e na formação das crianças e dos jovens: um bocado de espaço e de tempo sem cursos, sem formações, sem atividades e quejandos. Não fazer nada, ou fazer o que der na gana.


Perguntaram-me há dias se eu achava melhor, como complemento curricular para jovens alunos de Direito, a formação X, o curso Y, a atividade Z, as aulas W ou o projeto qualquer coisa (eram tantos, que já nem me recordo bem). E eu comecei por dizer que tudo aquilo estava muito bem e era importante e útil, e nada contra e tal, e era difícil escolher entre tanta coisa boa; enfim, o que se espera que se diga destas e nestas coisas. Mas depois – atirando o corpo para trás na cadeira, como que mostrando reflexão, mas também que vem aí coisa não muito alinhada com o espírito do tempo – acabei por concluir que, na verdade, não achava nada daquilo assim tão, tão importante, e que pensava que o era muito menos do que uma outra coisa que acho que vai fazendo muita falta na vida, no crescimento e na formação das crianças e dos jovens: um bocado de espaço e de tempo sem cursos, sem formações, sem atividades e quejandos. Não fazer nada, ou fazer o que der na gana, com a criatividade e a imaginação que se tenham ou que apareçam.

Ou muito me engano, ou muitas crianças e ainda mais jovens – aqueles cujas famílias podem ou que fazem por poder – começam desde cedo a ter uma agenda que, mal comparado, às vezes parece a minha agenda profissional nos períodos mais intensos. Em crianças e adolescentes, ele são as aulas dos programas escolares, ou seja, o básico, o normal; mas depois são também as línguas, os desportos, as atividades, as formações, os complementos, os projetos, os estágios, mais isto e mais aquilo, num nunca mais acabar de tarefas e de empreendimentos; e tudo tido – sobretudo pelos pais, ditadores mas também escravos desse frenesim – como muito importante para a formação e para um dia os infantes poderem enfrentar o mundo muito competitivo e terem nele uma boa vida adulta, carregados das (como se diz) competências hard, soft e outras para brotarem e vingarem verdejantes. E será importante, sim senhor, não digo que não, e muito menos digo que o mundo não seja exigente e competitivo. E também será muito importante aquilo com que, depois, quando já são maiorzinhos – jovens adultos –, carregam os dias, cheios até não poder mais. Sim, será importante, mas é preciso ter algum cuidado e não carregar de mais, não exigir tanto, e também não começar tão cedo.

Durante anos, recrutei estagiários e advogados jovens. E os curricula de pessoas de 21 ou 22 anos tinham muitas vezes uma lista tão grande de coisas feitas – e que, aliás, foi aumentando com o passar dos anos – que me deixava a questionar três coisas (para além, naturalmente e sem ironia, da verdadeira utilidade de muito daquilo). Primeira: com tanta atividade em tão curta vida, que tempo restou para preencher o tempo com liberdade, e com os inerentes tédio, dúvida, criatividade, imaginação, descoberta? Segunda: quantas daquelas tantas coisas foram feitas com real profundidade e, também, com verdadeiro gosto, e quantas foram apenas para fazer / preencher currículo? Terceira, qual é a carga de fadiga, tensão e ansiedade que tudo isso provoca, e que feridas isso causa e que cicatrizes deixa? E continuo a colocar-me estas três questões, sendo que não tenho resposta certa para todas, apenas intuições, impressões e algumas evidências, nem todas muito animadoras. 

Aliás, não resisto a dizer que quando jovens profissionais tanto enfatizam hoje a importância de uma vida equilibrada, fico sempre a pensar (entre muitas outras coisas, que não cabem aqui – não só porque não há espaço, mas também porque hoje não me apetece dar-me a um eventual cancelamento) se, em parte, isso não será reação a uma infância e a uma juventude tão carregadas e tão preenchidas. Ou seja, em miúdos a mochila estava tão cheia e pesada, que agora já não querem nem aguentam tanto. Digo eu, do alto da minha bem entrada meia idade, e numa fase em que já estou amiúde nos braços da nostalgia dos muitos e longos dias sem nada para fazer nos anos 70 e 80 do século passado, a não ser pôr a cabeça a trabalhar e às voltas para preencher o tempo e o espaço ou, simplesmente, para nada lhes meter e os deixar um bocadinho em sossego; a levedar, como o pão depois de ser amassado.
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira

A carga de trabalhos infanto-juvenil


Há algo que vai fazendo muita falta na vida, no crescimento e na formação das crianças e dos jovens: um bocado de espaço e de tempo sem cursos, sem formações, sem atividades e quejandos. Não fazer nada, ou fazer o que der na gana.


Perguntaram-me há dias se eu achava melhor, como complemento curricular para jovens alunos de Direito, a formação X, o curso Y, a atividade Z, as aulas W ou o projeto qualquer coisa (eram tantos, que já nem me recordo bem). E eu comecei por dizer que tudo aquilo estava muito bem e era importante e útil, e nada contra e tal, e era difícil escolher entre tanta coisa boa; enfim, o que se espera que se diga destas e nestas coisas. Mas depois – atirando o corpo para trás na cadeira, como que mostrando reflexão, mas também que vem aí coisa não muito alinhada com o espírito do tempo – acabei por concluir que, na verdade, não achava nada daquilo assim tão, tão importante, e que pensava que o era muito menos do que uma outra coisa que acho que vai fazendo muita falta na vida, no crescimento e na formação das crianças e dos jovens: um bocado de espaço e de tempo sem cursos, sem formações, sem atividades e quejandos. Não fazer nada, ou fazer o que der na gana, com a criatividade e a imaginação que se tenham ou que apareçam.

Ou muito me engano, ou muitas crianças e ainda mais jovens – aqueles cujas famílias podem ou que fazem por poder – começam desde cedo a ter uma agenda que, mal comparado, às vezes parece a minha agenda profissional nos períodos mais intensos. Em crianças e adolescentes, ele são as aulas dos programas escolares, ou seja, o básico, o normal; mas depois são também as línguas, os desportos, as atividades, as formações, os complementos, os projetos, os estágios, mais isto e mais aquilo, num nunca mais acabar de tarefas e de empreendimentos; e tudo tido – sobretudo pelos pais, ditadores mas também escravos desse frenesim – como muito importante para a formação e para um dia os infantes poderem enfrentar o mundo muito competitivo e terem nele uma boa vida adulta, carregados das (como se diz) competências hard, soft e outras para brotarem e vingarem verdejantes. E será importante, sim senhor, não digo que não, e muito menos digo que o mundo não seja exigente e competitivo. E também será muito importante aquilo com que, depois, quando já são maiorzinhos – jovens adultos –, carregam os dias, cheios até não poder mais. Sim, será importante, mas é preciso ter algum cuidado e não carregar de mais, não exigir tanto, e também não começar tão cedo.

Durante anos, recrutei estagiários e advogados jovens. E os curricula de pessoas de 21 ou 22 anos tinham muitas vezes uma lista tão grande de coisas feitas – e que, aliás, foi aumentando com o passar dos anos – que me deixava a questionar três coisas (para além, naturalmente e sem ironia, da verdadeira utilidade de muito daquilo). Primeira: com tanta atividade em tão curta vida, que tempo restou para preencher o tempo com liberdade, e com os inerentes tédio, dúvida, criatividade, imaginação, descoberta? Segunda: quantas daquelas tantas coisas foram feitas com real profundidade e, também, com verdadeiro gosto, e quantas foram apenas para fazer / preencher currículo? Terceira, qual é a carga de fadiga, tensão e ansiedade que tudo isso provoca, e que feridas isso causa e que cicatrizes deixa? E continuo a colocar-me estas três questões, sendo que não tenho resposta certa para todas, apenas intuições, impressões e algumas evidências, nem todas muito animadoras. 

Aliás, não resisto a dizer que quando jovens profissionais tanto enfatizam hoje a importância de uma vida equilibrada, fico sempre a pensar (entre muitas outras coisas, que não cabem aqui – não só porque não há espaço, mas também porque hoje não me apetece dar-me a um eventual cancelamento) se, em parte, isso não será reação a uma infância e a uma juventude tão carregadas e tão preenchidas. Ou seja, em miúdos a mochila estava tão cheia e pesada, que agora já não querem nem aguentam tanto. Digo eu, do alto da minha bem entrada meia idade, e numa fase em que já estou amiúde nos braços da nostalgia dos muitos e longos dias sem nada para fazer nos anos 70 e 80 do século passado, a não ser pôr a cabeça a trabalhar e às voltas para preencher o tempo e o espaço ou, simplesmente, para nada lhes meter e os deixar um bocadinho em sossego; a levedar, como o pão depois de ser amassado.
 
Escreve quinzenalmente à sexta-feira