Mariana Morais tem a menstruação há quase 12 anos e não se lembra de viver um único dia desse período habitualmente compreendido entre 3 e 8 dias sem dores. “Quando descobri que tinha endometriose, já tinha vindo a sofrer muito de dores e cólicas menstruais, desde o momento em que me apareceu a primeira menstruação, aos 13 anos”, começa por revelar a jovem. O problema “foi agravando após ter estado com covid-19 e, principalmente depois de ter tomado a primeira dose da vacina”, continua. “A partir daí as dores ficaram cada vez mais intensas e insuportáveis”. No final de abril a rapariga de 24 anos foi submetida a uma intervenção cirúrgica por já não suportar mais as dores incapacitantes que sentia e estar em risco de vida.
“Quando me foi diagnosticado o endometrioma no ovário esquerdo, este tinha apenas 2,5cm, e a médica que me acompanhava nessa altura foi super sincera e deixou-me muito tranquila. Eu sabia o que era a endometriose, mas não tinha conhecimento da sua ‘gravidade’ ou da complexidade”, avança a estudante de Ciências da Nutrição. “Naquela altura, a única coisa que me vinha à cabeça era: ‘Ok, isto afeta a fertilidade das mulheres, mas não de todas, e eu sou super nova, nem sequer quero ser mãe agora, por isso quando for mais velha penso nisso’”.
“Não posso dizer que na altura foi ‘chocante’ porque tanto eu como a minha família e as pessoas que me rodeavam ‘desvalorizavam’ as dores e, para a maioria das pessoas, era ‘só’ um quisto”, sublinha, adiantando que começou a tomar a pílula aos 18 anos e, até hoje, já experimentou cinco marcas. “Nunca me dei bem com nenhuma. A toma da pílula, na minha vida, sempre foi com o intuito de melhorar as dores menstruais e deixar de ter acne, pois sofria muito disso também”.
Mas estes não seriam os maiores desafios que enfrentaria. “Os sintomas começaram a agravar no fim de janeiro deste ano, pois o endometrioma, a cada dia, crescia imenso, sem razão aparente. No entanto, assim que troquei de pílula e comecei a tomar duas ao mesmo tempo deixei de ter dores. Pudera, que bomba hormonal!”, observa. “Até fins de fevereiro a minha vida foi um inferno: noites sem dormir, dias exaustivos, ansiedade, tristeza e tudo o que havia de mais depressivo passava-me pela cabeça. Não só pelo meu sofrimento, mas por estar a causar sofrimento à minha mãe por tudo aquilo a que ela estava a assistir”, acrescenta. Nesse mês, foi a “consultas atrás de consultas” e fez exames, expôs o caso a especialistas, foi às urgências e, resumidamente, “recorreu a tudo aquilo que podia recorrer”.
“Até que viram realmente que tinha um endometrioma de quase 10cm e fiquei em lista de espera para a operação. Até lá, tinha de manter as duas pílulas para controlar as dores. Infelizmente, o meu corpo não quis esperar que me chamassem para a cirurgia e quis que fosse internada de urgência”, lamenta, recordando que, no dia em que foi às urgências, tinha dores tão intensas na zona abdominal que pensou que poderia ter uma apendicite.
“Não sei relatar ao certo como foram os meus dias antes do internamento porque estava bem e, de um dia para o outro, estava a vomitar e a sentir coisas no meu corpo que nunca tinha sentido, por isso não era normal. Mas, claro, assim que cheguei às urgências e comecei a perceber todo o drama que estava a acontecer, fiquei muito muito assustada, tive muito medo, muita ansiedade, tentava manter o pensamento positivo”, confessa.
“Na realidade, eu nem tive muito tempo para pensar porque foi tudo extremamente rápido”, desabafa. Passou por uma “inflamação aguda que era algo como uma septicemia, o chamado ‘sangue velho’” que se “estava a espalhar por todo o corpo”. “Só soube disto no dia seguinte ao da operação, jamais me passaria pela cabeça que o endometrioma estaria roto. E mesmo no pós-operação, saber disso foi assustador, por pensar no que podia ter acontecido”, diz, afirmando que ficou feliz por não ter de remover o ovário porque um dos seus sonhos é ser mãe.
Apesar de acreditar que “tudo acontece por uma razão”, Mariana constata que não merecia, nem merece, tal como todas as outras pessoas, passar por aquilo que passou. “Mas penso também que, infelizmente, há situações e doenças muito piores, por isso tento sempre relativizar. Quando digo que tudo acontece por uma razão, penso que é mais no sentido de aprendizagem: por ter passado por isto, possivelmente, vou começar a ver a vida com outros olhos, a valorizar outras coisas, dar mais importância aos meus e, acima de tudo, a aprender a amar-me, a focar-me em mim, na minha saúde, sem que isso seja egoísta. Antes dos outros estarei sempre eu, e é nisso que me quero focar”.
“Isto vai contra tudo aquilo que alcançámos até agora, no sentido da igualdade” Ainda que se questione acerca daquilo que teria vivido se lhe tivessem dito que as cólicas que sentia não eram normais, o que poderia tê-la poupado ao sofrimento e da cirurgia, não tem uma opinião totalmente formada acerca da implementação da licença menstrual em Espanha. “Acho bem se essa licença for passada por um médico, para garantir à identidade patronal que existem, de facto, dores menstruais, ou patologias que provocam essas mesmas dores. Porque caso não seja dessa forma, não acho justo”, salienta a jovem, abordando o facto de Espanha se ter tornado no primeiro país da Europa a aprovar uma licença menstrual de três dias. Volvida uma semana da apresentação, por parte do Executivo espanhol, de um projeto que cria uma “baixa menstrual” para as mulheres a partir dos 16 anos que sofrem de fortes dores quando têm a menstruação, o prometido foi cumprido na passada terça-feira.
“Vamos ser o primeiro país da Europa a introduzir uma licença temporária por doença totalmente financiada pelo Estado para períodos dolorosos e incapacitantes”, explicou a ministra da Igualdade, Irene Montero, em conferência de imprensa após a apresentação do novo projeto de lei, adiantando que “já não é tabu ir trabalhar com dor, ter de tomar comprimidos antes de ir trabalhar ou ter de esconder”.
A dirigente, que pertence ao partido de extrema-esquerda Podemos, parceiro minoritário no Governo “feminista” liderado pelo Partido Socialista espanhol (PSOE), já informara que esta nova licença teria de ser assinada pelo médico que acompanha e trata a doente e “não teria um limite de tempo”. No entanto, numa versão preliminar do projeto de lei, à qual os órgãos de informação tiveram acesso, era referida a duração de três dias, que poderia ser prolongada até cinco.
“Acredito que, além de existirem muitas mulheres que se aproveitarão desta licença, isto vai contra tudo aquilo que alcançámos até agora no sentido da igualdade. Acho que será um motivo para as empresas contratarem cada vez menos as mulheres. Infelizmente, só assim é que temos um meio de credibilidade, caso contrário somos apenas ‘as mulheres que são dramáticas por natureza e nem estão a passar assim tão mal’”.
“O que falta aos outros países? Nem sei, talvez mais empatia pelo ser humano e pelos direitos dos mesmos”, reflete Mariana. “Não acho que o facto de termos em Portugal essa licença vá melhorar alguma coisa no que toca à qualidade de vida destas mulheres porque, mesmo que não vão trabalhar ou estejam em casa, as dores são as mesmas”, evidencia. Na sua ótica, “deve existir realmente um melhor serviço a nível de planeamento familiar e também um reforço em relação à educação sexual”.
Isto com o objetivo da “prevenção e do melhor conhecimento do que é a pílula, do que é a menstruação… Basicamente, o mundo reprodutor num todo. Ainda assim, uma maior abertura e sensibilidade da parte médica para não desvalorizar constantemente as dores menstruais e, acima de tudo, não atirar com a pílula para cima de nós como a melhor e única solução”, critica, distanciando-se da perspetiva de Inês Fernandes, copywriter de 25 anos.
“A adenomiose foi-me diagnosticada muito recentemente. Sempre sofri imenso com dores menstruais muito fortes, nem conseguia ir à escola no primeiro dia da menstruação. Sobretudo, no inverno. Depois, à medida que fui crescendo, tinha de tomar medicamentos para estar minimamente funcional. Mas, na altura, não se falava disto e achava que era normal”, recorda. “O ginecologista dizia que era tudo normal, prescrevia pílulas” com as quais Inês não se “dava nada bem” e tudo continuou assim até a irmã mais nova começar a ter problemas digestivos “muito graves” e ter sido diagnosticada com endometriose.
Segundo João Alves Mendes, médico cirurgião com mais de 40 anos de experiência, a primeira diz respeito “à indução do alargamento uterino pelo tecido endometrial ectópico”, sendo que “o tamanho do útero pode duplicar ou triplicar”, existindo sintomas como “o sangramento menstrual intenso, a dismenorreia, a anemia e, em muitos dos casos, dor pélvica crónica”. Já a segunda leva a que “o tecido endometrial funcional se expanda para a pélvis, fora da cavidade uterina”, gerando mais consequências, como “a dor durante a evacuação, distensão abdominal, diarreia, incontinência ou endometriomas – massa quística de 2 a 10 centímetros”.
“Comecei a desconfiar que tinha algo mais. Disse à ginecologista que a minha irmã tinha sido diagnosticada, que havia toda uma componente genética e queria fazer os mesmos exames. Foi absolutamente horroroso e veio o diagnóstico: é adenomiose. Neste momento, tomo uma pílula que faz com que não tenha o período. Durante muitos anos, não queria tomar. É que tomava durante um mês e não aguentava mais”, lastima Inês, notando que, enquanto se é estudante, “é mais fácil faltar às aulas do que, posteriormente, faltar ao emprego”.
“Não podia estar a faltar por causa disso. A dor ficava suportável com medicação. Para não tomar hormonas, tomava outra substância que me fazia mal. Acabei por ceder, estou a tomar uma pílula sem estrogénio, não muito forte. A minha irmã também toma uma para não ter o período”, diz a copywriter, que tem todos os sintomas habituais da doença exceto a prisão de ventre.
“Quando veio o diagnóstico da adenomiose, a minha ginecologista assustou-me um bocado: ‘Se queres ser mãe, é melhor seres já’. Eu sei lá! Fiquei em pânico porque ela disse-me que engravidar ia ser difícil. Procurei uma segunda opinião, fui a uma médica especialista em endometriose”. Esta acalmou-a, clarificando que deve ser mãe jovem como todas as outras mulheres simplesmente “porque quanto mais tarde, mais difícil é” e não devido à patologia.
“Quando vi que a licença foi aprovada, fiquei muito contente! Assusta-me a ideia de que é normal sofrermos tanto com o período. Se isto chegasse a Portugal, se calhar já não teria de me sujeitar a várias coisas”, pondera acerca da medida que foi implementada, pela primeira vez, no Japão, em 1947, para que as operárias fabris não estivessem sujeitas a tanto esforço físico durante a fase menstrual. De seguida, foi adotada por países como a Coreia do Sul e Taiwan. Posteriormente, foi instaurada em nações como a Indonésia e a Zâmbia, sendo que, nesta última, curiosamente, falar sobre a menstruação ainda constitui um tabu.
“Nós não estamos prontos para um passo destes. Nem em termos da sociedade em geral nem de dirigentes políticos. No meu caso, no inverno, custava-me muito mais e, portanto, haveria meses em que precisaria de dois dias, e no verão estava ‘ok’ e noutros precisava de um. Acho que três é ótimo”, concorda, alinhando-se com as conclusões de um estudo publicado no British Medical Journal, no ano passado, de acordo com o qual 14% das 32.748 mulheres holandesas em período fértil inquiridas pediram baixa laboral ou escolar durante a sua fase menstrual. Por outro lado, cerca de 68% admitiram que gostariam de ter a oportunidade de usufruir de um horário de trabalho ou estudos mais flexível durante estes dias. 81% das inquiridas indicaram que foram trabalhar independentemente da fase em que se encontravam, apesar de reconhecerem que podem ter sido menos produtivas.
Quem tem a mesma experiência, mas não um diagnóstico efetuado é Rita Domingues, estudante de Engenharia Biomédica, de 23 anos. “Sempre tive muitas dores, incapacitantes mesmo. Disseram-me que era normal e, ultimamente, nas redes sociais, tenho visto que se fala cada vez mais neste tema. Fiquei assustada. Tive consulta com a médica de medicina geral, na semana passada, ela disse que era normal”, adiciona, elucidando que tem esperança de fazer mais exames para obter um diagnóstico.
“Dobrava as pernas, virava-me para todos os lados… Houve uma vez em que pedi ao meu pai para me ir buscar à escola porque não aguentava as dores. Devia ter uns 13-14 anos. Também dizem que se tem mais dores ao princípio, mas tenho período há anos e continuam. Comecei a tomar a pílula, as dores melhoraram, tudo melhorou muito com o anel vaginal, mas não é bom para a acne. Punha uma botija de água quente: ajudava muito e ficava os dois primeiros dias a tomar comprimidos e deitada. Fazer a vida normal, nem que fosse andar, era horrível”, declara. “A botija tinha de estar mesmo a escaldar, mas nunca cheguei a queimar-me”.
“Preparados para implementar esta medida não estamos: nem sei bem se os próprios espanhóis estão preparados para aquilo. Vai haver sempre uma altura do ano em que várias mulheres vão para casa ao mesmo tempo… A ideia em si é boa, ainda bem que se lembraram disso, mas tem de ser pensada. É útil, mas pode ter várias controvérsias”, finaliza a universitária.
Já a ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros concorda plenamente com esta medida. “Devia ser aprovada aqui também porque há mulheres que sofrem imenso com dores menstruais e não têm licença nenhuma. Eu, por exemplo, sofro imenso: tenho dores de cabeça horríveis, toda a vida passei por isto, e é um direito essencial das mulheres”, garante a também pintora e cronista.
“Foi mais um avanço que se deu em Espanha e Portugal devia acompanhar: já devíamos ter implementado isto. É uma incapacidade com que a mulher vive e não tem prioridade. Temos de dar esse passo em frente para que as mulheres possam ter os devidos direitos laborais. Acho que estamos preparados: não vejo um motivo para que tal não aconteça”.