O amor em juízo


O juiz Nicklin, que foi advogado de defesa da Impresa na acção de difamação interposta por Álvaro Sobrinho, deu mais um passo na restrição da imunidade dos chefes de Estado e de Governo.


Corinna Zu Sayn-Wittgenstein-Sayn e Juan Carlos Alfonso Víctor María de Borbón y Borbón poderiam ter tornado a vida difícil aos artesãos dos convites de casamento, obrigados a verter tantos caracteres para um formato que, manda a etiqueta, deve caber no bolso interior esquerdo do fraque do cavalheiro. Corinna e Juan não se casaram tendo ela, na sua versão da história, recusado sucessivas propostas de matrimónio, preferindo trocar cartas de desamor em juízo. Mulher sábia, escolheu a jurisdição britânica, famosa pelo brilho que empresta à solução de litígios entre cônjuges, ex-cônjuges e concubinos.

No passado dia 24 de Março o High Court considerou-se competente para julgar uma acção por assédio, intentada por Corinna, decidindo que Juan não pode invocar a imunidade de jurisdição concedida pela lei inglesa (e pelo costume internacional) aos chefes de Estado e de Governo. Ainda que o tema disputandi tenha natureza penal e esteja à la page, Corinna tem boas razões, nomeadamente de natureza fiscal, para mostrar ao mundo os infortúnios da virtude. Como penhor dos seus sentimentos Juan doou a Corinna, por via de várias sociedades offshore, uma verba próxima dos 65 milhões de dólares. Este cadeau d’amour teria origem numa oferta feita a Juan durante uma visita à Arábia Saudita, no valor de 100 milhões, inspirada pela presença espanhola no TGV de Meca a Medina. Juan não declarou ao fisco espanhol o beau geste saudita e Corinna não quer ser tida por lavadeira dos dinheiros de Juan. Perante o High Court declarou-se vítima de assédio praticado contra si e os seus diversos domicílios pelo director do Centro Nacional de Investigación (CNI, o equivalente local do SIS mas com competências reais), o General Sanz Roldán.

O High Court, britânicamente pragmático, para decidir sobre a imunidade de Juan considerou como provados, a título provisório, os factos invocados por Corinna, desde logo os actos de assédio que foram praticados no Reino Unido, assim estabelecendo a competência territorial da respectiva jurisdição. O juiz da causa, confrontado com longos Pareceres apresentados pelas Partes sobre as minudências constitucionais espanholas, ordenou aos Pareceristas a produção de um Parecer único identificando os pontos de concordância e de discordância. Prosseguindo nesta via simplificadora sugeriu, por duas vezes no texto do acórdão, que a defesa de Corinna alterasse a queixa por assédio, tornando claro que o General Sanz Roldán agiu junto de Corinna enquanto amigo de Juan e não enquanto director do CNI, afastando assim a possibilidade de ser invocada a imunidade funcional por via da actuação de terceiros. O ilustre magistrado também constatou a não intervenção no processo do soberano espanhol (Filipe VI) ou do Estado espanhol. NB: dificilmente o Governo de Espanha virá declarar que as intrusões nas telecomunicações, computadores e espaços físicos onde se encontrava Corinna foram operações levadas a cabo pelo CNI a bem da Nação.

A sentença revisita a abundante jurisprudência britânica em matéria de imunidade, considerando que Juan já não é, desde a abdicação em 2014, o chefe de Estado e que, à luz da lei britânica sobre imunidade, não está na dependência do actual soberano (não integraria o agregado familiar, “household”). Para os actos praticados antes da abdicação o tribunal cruza assédio e imunidade e, na senda das decisões Pinochet (em particular a 3ª), considera o assédio como sendo um acto iure gestionis, ao alcance de todos, soberanos e plebeus, e afasta a prática do mesmo do âmbito de protecção da imunidade.

Os advogados de Juan anunciaram já o recurso.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

O amor em juízo


O juiz Nicklin, que foi advogado de defesa da Impresa na acção de difamação interposta por Álvaro Sobrinho, deu mais um passo na restrição da imunidade dos chefes de Estado e de Governo.


Corinna Zu Sayn-Wittgenstein-Sayn e Juan Carlos Alfonso Víctor María de Borbón y Borbón poderiam ter tornado a vida difícil aos artesãos dos convites de casamento, obrigados a verter tantos caracteres para um formato que, manda a etiqueta, deve caber no bolso interior esquerdo do fraque do cavalheiro. Corinna e Juan não se casaram tendo ela, na sua versão da história, recusado sucessivas propostas de matrimónio, preferindo trocar cartas de desamor em juízo. Mulher sábia, escolheu a jurisdição britânica, famosa pelo brilho que empresta à solução de litígios entre cônjuges, ex-cônjuges e concubinos.

No passado dia 24 de Março o High Court considerou-se competente para julgar uma acção por assédio, intentada por Corinna, decidindo que Juan não pode invocar a imunidade de jurisdição concedida pela lei inglesa (e pelo costume internacional) aos chefes de Estado e de Governo. Ainda que o tema disputandi tenha natureza penal e esteja à la page, Corinna tem boas razões, nomeadamente de natureza fiscal, para mostrar ao mundo os infortúnios da virtude. Como penhor dos seus sentimentos Juan doou a Corinna, por via de várias sociedades offshore, uma verba próxima dos 65 milhões de dólares. Este cadeau d’amour teria origem numa oferta feita a Juan durante uma visita à Arábia Saudita, no valor de 100 milhões, inspirada pela presença espanhola no TGV de Meca a Medina. Juan não declarou ao fisco espanhol o beau geste saudita e Corinna não quer ser tida por lavadeira dos dinheiros de Juan. Perante o High Court declarou-se vítima de assédio praticado contra si e os seus diversos domicílios pelo director do Centro Nacional de Investigación (CNI, o equivalente local do SIS mas com competências reais), o General Sanz Roldán.

O High Court, britânicamente pragmático, para decidir sobre a imunidade de Juan considerou como provados, a título provisório, os factos invocados por Corinna, desde logo os actos de assédio que foram praticados no Reino Unido, assim estabelecendo a competência territorial da respectiva jurisdição. O juiz da causa, confrontado com longos Pareceres apresentados pelas Partes sobre as minudências constitucionais espanholas, ordenou aos Pareceristas a produção de um Parecer único identificando os pontos de concordância e de discordância. Prosseguindo nesta via simplificadora sugeriu, por duas vezes no texto do acórdão, que a defesa de Corinna alterasse a queixa por assédio, tornando claro que o General Sanz Roldán agiu junto de Corinna enquanto amigo de Juan e não enquanto director do CNI, afastando assim a possibilidade de ser invocada a imunidade funcional por via da actuação de terceiros. O ilustre magistrado também constatou a não intervenção no processo do soberano espanhol (Filipe VI) ou do Estado espanhol. NB: dificilmente o Governo de Espanha virá declarar que as intrusões nas telecomunicações, computadores e espaços físicos onde se encontrava Corinna foram operações levadas a cabo pelo CNI a bem da Nação.

A sentença revisita a abundante jurisprudência britânica em matéria de imunidade, considerando que Juan já não é, desde a abdicação em 2014, o chefe de Estado e que, à luz da lei britânica sobre imunidade, não está na dependência do actual soberano (não integraria o agregado familiar, “household”). Para os actos praticados antes da abdicação o tribunal cruza assédio e imunidade e, na senda das decisões Pinochet (em particular a 3ª), considera o assédio como sendo um acto iure gestionis, ao alcance de todos, soberanos e plebeus, e afasta a prática do mesmo do âmbito de protecção da imunidade.

Os advogados de Juan anunciaram já o recurso.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990