Vemo-lo como um dos maiores pintores do mundo, mesmo que não apreciemos o seu trabalho. Sabemos o seu nome de cor, lemo-lo em toda a parte e é difícil que alguém não se lembre de pelo menos uma das suas obras, conhecidas por, na maior parte das vezes, revelarem corpos disformes em figuras geométricas e coloridas. Pablo Picasso, o pai do Cubismo, marcou a história da arte, é admirado por muitos, mas, ao que parece, o seu nome não é “intocável”.
Passados 49 anos da sua morte, o artista voltou a ser o centro das atenções, mas não pelos melhores motivos. Depois de um grupo de ativistas feministas francesas o classificaram como “génio violento”, “minotauro” e acusarem-no de ter “destruído” a vida de quem lhe era próximo e o amava, as opiniões multiplicam-se e começa a ser cada vez mais difícil para aqueles que gerem o seu legado, gerir as alegações, apesar da controvérsia ter levado a um resgate histórico da figura do artista em diversos espaços culturais.
Desde a década de 1980, vários livros pintam retratos negativos do ídolo da arte moderna, cuja obra se nutre das suas relações com as mulheres que foram passando na sua vida. E pelo seu histórico certamente que não seria vangloriado pelas feministas de hoje.
Segundo o El Mundo, “havia duas esposas e, pelo menos, seis amantes”. Picasso tinha tendência para “abandonar as mulheres quando adoeciam”, possuía um “apetite voraz” por prostitutas e, por norma, interessava-se sempre por mulheres impressionantemente mais novas (a sua segunda esposa, Olga Koklova, tinha 27 anos quando se casou com o pintor com 79, por exemplo).
De acordo com o jornal espanhol, Picasso afirmava que, para si, “só existiam dois tipos de mulheres”: deusas e capachos (tapete de esparto a que se limpa o calçado). Esta citação provavelmente faria com que, atualmente, os servidores do Twitter entrassem em combustão. O movimento #MeToo tornou a violência contra as mulheres uma questão social e, agora, até mesmo Pablo Picasso parece não conseguir escapar, um assunto que museus e o seu neto, Olivier, querem abordar, mas com “precisão”.
Génio violento A ideia de apresentar Picasso como um “génio violento” surgiu do premiado podcast feminista criado em 2021 por Julie Beauzac, do qual foi publicado um episódio dedicado ao pintor e intitulado ‘Separando o Homem do Artista’, que foi ouvido por 250 mil pessoas.
O episódio deu a palavra a Sophie Chauveau, jornalista e autora de Picasso, o Minotauro, publicado em 2017, que descreve, segundo ela, “a influência irresistível e devastadora do génio sobre aqueles que o amavam”. Chauveau afirma ainda ter investigado “durante anos” sem, no entanto, ter acesso aos arquivos da família. Esta evoca um pintor “brilhante” tanto quanto um homem “violento”, “ciumento”, “perverso” e “destrutivo”, “grande sedutor” que “não hesitava em conquistar e abusar de mulheres muito jovens”.
Essa denúncia somou-se a uma ação realizada no ano passado por um grupo de estudantes de arte no Museu Picasso de Barcelona, sob o lema “Picasso abusador”, que condenava “a falta de perspetiva de género naquele espaço cultural em relação à misoginia que refletiu o artista ao longo de sua vida”. O objetivo seria “pressionar a instituição a rever a figura do pintor de Málaga, que roubou a carreira a muitos dos seus colegas”.
“Picasso fez o papel do Barba Azul engolindo o poder criativo de cada um dos artistas da altura”, foi um dos argumentos do grupo liderado pela artista e professora María Llopis, algo que exemplificou com a fotógrafa surrealista francesa Dora Maar, cuja carreira “interrompeu” ao conhecer o pintor. Além disso, no livro Picasso: criador e destruidor, de 1988, Arianna Stassinopoulos, garante que, além de “anular o seu talento”, Picasso “chegou mesmo a agredi-la até que esta ficasse inconsciente”.
“Esta reflexão sobre Picasso, e o olhar feminista ou feminino sobre a sua obra, é um debate eminentemente atual, que não deve ser evitado e não deve ser caricaturado”, explicou o diretor do Museu, Emmanuel Guion, sobre o artista que criou As Moças de Avignon, 1907, retrato de um grupo de prostitutas que deu lugar ao cubismo. A partir da revisão histórica do artista no museu que leva o seu nome em Barcelona, diferentes ações foram tomadas para “iluminar o assunto”, entre elas uma oficina criativa chamada “Reduzindo a libido do minotauro: confrontamos a masculinidade de Picasso” .
Contudo, nem toda a gente concorda. “#MeToo fragmentou o artista e este podcast prova isso”, disse a nova diretora do Museu Picasso de Paris, Cécile Debray, após ecoar a repercussão da denúncia de Beauzac e Chauveau. “O ataque é mais violento porque Picasso é a figura mais famosa e popular da arte moderna. Um ídolo que deve ser derrubado!”, alertou.
“Afirmações sem referência a fontes históricas, aproximadas e anacrónicas”, lamentou Debray no mesmo podcast, defendendo que “esta questão deve ser abordada com muitas nuances e prudência”. “É preciso mostrar a obra de forma didática, rica e variada, na sua radicalidade formal, através de uma ampla apresentação do acervo e convidando a perspectivas contemporâneas”, acrescentou.
Segundo o El Mundo, citando especialistas, “as mulheres promoveram as transições artísticas de Picasso, levando-o a buscar novos rumos que, por sua vez, marcaram a história da arte contemporânea”. Mas, apesar de se saber que Picasso teve pelo menos 8 mulheres, este “praticamente não deu entrevistas e certamente nenhuma sobre a sua vida pessoal”, lembrou Olivier Picasso, neto do artista, à AFP. “É através das obras que podemos traçar o seu itinerário emocional com umas obras mais violentas, outras mais ternas” , explicou.
Por sua vez, Marina Picasso, escreveu que o seu avô, submeteu as mulheres com quem esteve “à sua sexualidade animal”: “Domou-as, enfeitiçou-as, ingeriu-as e esmagou-as na sua tela”, afirma. Além disso, Olivier Picasso, retratou Picasso “como um monstro, perigoso para as mulheres com que se relacionava”. Algumas, como Marie-Therese Walter, eram “musas jovens e vulneráveis” que se sentiram “descartadas”. Após a morte do artista, Walter pôs fim à própria vida. Outras, como Françoise Gilot, “sabiam exatamente o que queriam” e, segundo o neto do pintor, “não tinham problema nenhum em ir embora quando estavam fartas”. “Algumas saíram a bem, mas outras foi a mal”, apontou.
“É tudo muito complicado. As mulheres não se parecem umas com as outras. As próprias pinturas mostram um pouco dessa complexidade. Percebemos que cada vez que se esgotava uma inspiração, este passava para outra coisa”, analisou, frisando porém que “eram necessárias para as suas criações e sem elas, algo faltaria”.
Picasso e o Feminismo Para Maria João Faustino, investigadora na área da violência sexual e feminismo “a crítica feminista a Picasso no pós MeToo insere-se num contexto mais amplo de questionamento da memória coletiva”: “O MeToo alavancou um momento cultural de questionamento da figura do génio masculino, artístico e literário, cuja biografia tantas vezes envolve expressões sexistas e violência contra as mulheres. Picasso não está longe de ser caso único, embora seja um caso de relevo pela dimensão que assume na pintura e cultura ocidentais”, explicou ao i.
Segundo a mesma, a fórmula rápida de “separar o artista da obra” é muitas vezes uma “resposta confortável para que não tenhamos de nos confrontar com a nossa tolerância ao sexismo”. “O mérito do debate em torno da figura de Picasso e da sua obra, impulsionado pelo podcast de Julie Beauzac e pelo livro de Sophie Chauveau, é levantar questões importantes: Que figuras celebramos? O que toleramos aos nossos ícones e ídolos? O que significa separar o artista da obra, quando tantas vezes a arte, a visualidade e a obra refletem a masculinidade violenta que queremos desconstruir?”, interrogou, elucidando que “neste debate, há quem considere que Picasso é um target da “cultura de cancelamento”.
“A banalização da expressão ‘cancelamento’ suscita-me questões. O que é exatamente a cultura de cancelamento? Todas as críticas serão ‘cancelamento’? É o diálogo sobre masculinidade uma forma de ‘cancelamento’?”, refletiu ainda, sublinhando que “não quer dizer que tenhamos de abdicar do legado de Picasso e de tantos vultos (masculinos) da cultura, da literatura e da pintura, e que não possamos apreciá-lo”. “Não é essa a principal reivindicação das abordagens feministas. É possível, e necessário, ter um diálogo crítico com este legado, que lhe acrescente contexto e perspetiva crítica”, apontou a especialista.
Já a pintora Sreya, recorda que Pablo Picasso tinha 14 nomes: “Isso para alguém que não é da realeza soa no mínimo caricato. Talvez os pais tivessem desde a sua nascença grandes expectativas para ele, o que explicaria de entre muita coisa, o narcisismo”, contou a artista. “Para se ser um génio, não basta nascer-se com uma estrelinha muito brilhante, é preciso querer ser o melhor – como ele foi. Por todas as escolas e academias de artes por onde passou, era sempre o n.º1, não só da sua mas de todas as turmas, de todas as idades”, defendeu, relembrando que “há gente com uma perícia mais natural para o desenho do que outras, mas toda a gente sabe que se não o fizeres todos os dias, muitas horas por dia, não conseguirás ser exímio”.
De acordo com a pintora, Picasso era um “narcisista”, e como tal “queria ser o melhor, e foi”. “O que à partida não representaria problema algum, se empregasse toda a sua obsessão única e exclusivamente à profissão”, apontou, acreditando que o “narcisismo é porém uma condição indissociável do indivíduo, então ele vai utilizá-lo principalmente para as coisas que mais deseja ser admirado – pelo seu trabalho e por mulheres”.
Segundo a mesma, tal compulsão levou-o a ter várias, umas oficiais outras menos, muito novas em comparação à sua idade: “Duas suicidaram-se, tal era a violência psicológica e o ódio a que eram submetidas. Ainda assim teve estas mulheres todas, tão novas, tão bonitas, tão inteligentes, porque ele sabia perfeitamente como as manipular”, defende a artista. Contas feitas, acrescenta, “a obra dele é brutalmente apoiada em mulheres, companhia da qual ele jamais prescindiu ora para se inspirar ora para esmagar e exercer o seu poder”.
“Como artista, eu não posso deixar de admitir que o trabalho deixado pelo Picasso para além de muito, é de qualidade incontornável, (o que seria de esperar dada a quantidade). Sendo mulher, tenho nojo de onde toda a obra vem, e como pessoa empática, creio que se fosse homem teria nojo também”, admitiu Sreya, frisando que é “impensável será separar o artista da sua arte”.
“Já o fizemos durante séculos, perpetuando e encorajando estes comportamentos em tantos outros homens artistas, que continuam a triunfar à semelhança dele. Vivemos agora o tempo em que finalmente se abrem e se propagam as possibilidades de espaços de fala para pessoas abusadas, em que o bullying é finalmente discutido e tratado enquanto agressão danos à integridade psicológica. Não dá para separar a obra do artista porque a arte é o artista, sai da vida, das experiências, das emoções da pessoa que cria, e das pessoas que o rodeiam, claro. Jamais poderemos negar a existência de Picasso, da sua obra e dos seus múltiplos vestígios. A par disto é urgente a contextualização de toda a obra que tenha origem em violência”, alertou.