Ucrânia: deve e haver


A negociação é como o esfolar do coelho, concluir é difícil.


As guerras “quentes” tendem a terminar com a fixação do estatuto jurídico dos vencidos. Em tempos recentes esse estatuto foi fixado por um acordo internacional celebrado entre os vencedores (servem de exemplo, para a segunda guerra mundial, as conferências de Teerão, Potsdam e Ialta), por vezes formalizado numa convenção internacional (maxime o acordo de Potsdam no que respeita à Alemanha). No formato bilateral o termo do conflito resulta num acordo de paz precedido, bastas vezes, de declarações de rendição. Um tratado de paz traduz uma necessidade política (põe termo ao conflito) e jurídica (fixa, para o futuro, os direitos e obrigações das Partes no conflito). Não obstante, o conceito de “acordo” é posto à prova nestes casos, como resulta da norma consuetudinária recolhida pelo artigo 52º da Convenção de Viena sobre direito dos tratados, parafraseando o disposto no nº 4 do artigo 2º da Carta: “É nulo todo o tratado cuja conclusão tenha sido obtida pela ameaça ou pelo emprego da força em violação dos princípios de Direito Internacional contidos na Carta das Nações Unidas.” O uso da força anula o tratado sempre que exercido fora do estrito catálogo onusino: legítima defesa ou decisão do Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII. A invocação, no discurso de Putin de 24 de Fevereiro, da legítima defesa contra o “genocídio cometido pelos ucranianos” como causa de justificação do uso da força também será repetida para validar um futuro tratado de paz.

Uma forma de ultrapassar as limitações inerentes aos “tratados desiguais” passa por verter aquele que seria o seu conteúdo para um acto de direito interno do vencido, se possível o texto constitucional. Nas exigências negociais por parte da Federação Russa avulta a constitucionalização das cedências ucranianas: neutralidade e amputações territoriais. A contra-proposta ucraniana, já publicitada, passa pela sujeição a referendo dos resultados da negociação o que, por natureza, esvazia a negociação de um resultado definitivo.

Como em todos os processos negociais há que partir do fácil para o menos fácil. Neste conflito a “low hanging fruit” está na futura neutralidade (já aceite publicamente por ambas as Partes), de modelo a fixar: finlandês, sueco, austríaco, armada ou não, muito ou pouco, incluindo ou não a possibilidade de adesão à União Europeia e da invocação da cláusula de solidariedade contra agressões armadas, prevista no artigo 42º nº 7 do Tratado da UE, com uma “sunset clause” ou com a possibilidade de futura discussão (a 10 ou 20 anos).

A amnistia deverá ser uma das últimas matérias a ser negociada, não só pela dificuldade intrínseca do tema como pelas posições negociais relativas (os ucranianos tentarão defender a natureza imprescritível dos crimes que integram o Estatuto do Tribunal Penal Internacional – TPI): genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. A inclusão de uma amnistia num tratado de paz ou no direito interno ucraniano terá como consequência o afastar da punibilidade das condutas pelos tribunais ucranianos mas não impedirá o TPI de actuar, com base no artigo 29º do respectivo Estatuto. A intervenção do TPI resultará do pedido de 39 Estados-membros (entre os quais Portugal) feito em 2 de Março junto do Procurador do TPI e da declaração de aceitação pela Ucrânia da jurisdição do TPI para os crimes praticados no seu território em data posterior a 20 de Fevereiro de 2014. A 28 de Fevereiro o Procurador anunciou também uma investigação motu proprio.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990
 

Ucrânia: deve e haver


A negociação é como o esfolar do coelho, concluir é difícil.


As guerras “quentes” tendem a terminar com a fixação do estatuto jurídico dos vencidos. Em tempos recentes esse estatuto foi fixado por um acordo internacional celebrado entre os vencedores (servem de exemplo, para a segunda guerra mundial, as conferências de Teerão, Potsdam e Ialta), por vezes formalizado numa convenção internacional (maxime o acordo de Potsdam no que respeita à Alemanha). No formato bilateral o termo do conflito resulta num acordo de paz precedido, bastas vezes, de declarações de rendição. Um tratado de paz traduz uma necessidade política (põe termo ao conflito) e jurídica (fixa, para o futuro, os direitos e obrigações das Partes no conflito). Não obstante, o conceito de “acordo” é posto à prova nestes casos, como resulta da norma consuetudinária recolhida pelo artigo 52º da Convenção de Viena sobre direito dos tratados, parafraseando o disposto no nº 4 do artigo 2º da Carta: “É nulo todo o tratado cuja conclusão tenha sido obtida pela ameaça ou pelo emprego da força em violação dos princípios de Direito Internacional contidos na Carta das Nações Unidas.” O uso da força anula o tratado sempre que exercido fora do estrito catálogo onusino: legítima defesa ou decisão do Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII. A invocação, no discurso de Putin de 24 de Fevereiro, da legítima defesa contra o “genocídio cometido pelos ucranianos” como causa de justificação do uso da força também será repetida para validar um futuro tratado de paz.

Uma forma de ultrapassar as limitações inerentes aos “tratados desiguais” passa por verter aquele que seria o seu conteúdo para um acto de direito interno do vencido, se possível o texto constitucional. Nas exigências negociais por parte da Federação Russa avulta a constitucionalização das cedências ucranianas: neutralidade e amputações territoriais. A contra-proposta ucraniana, já publicitada, passa pela sujeição a referendo dos resultados da negociação o que, por natureza, esvazia a negociação de um resultado definitivo.

Como em todos os processos negociais há que partir do fácil para o menos fácil. Neste conflito a “low hanging fruit” está na futura neutralidade (já aceite publicamente por ambas as Partes), de modelo a fixar: finlandês, sueco, austríaco, armada ou não, muito ou pouco, incluindo ou não a possibilidade de adesão à União Europeia e da invocação da cláusula de solidariedade contra agressões armadas, prevista no artigo 42º nº 7 do Tratado da UE, com uma “sunset clause” ou com a possibilidade de futura discussão (a 10 ou 20 anos).

A amnistia deverá ser uma das últimas matérias a ser negociada, não só pela dificuldade intrínseca do tema como pelas posições negociais relativas (os ucranianos tentarão defender a natureza imprescritível dos crimes que integram o Estatuto do Tribunal Penal Internacional – TPI): genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão. A inclusão de uma amnistia num tratado de paz ou no direito interno ucraniano terá como consequência o afastar da punibilidade das condutas pelos tribunais ucranianos mas não impedirá o TPI de actuar, com base no artigo 29º do respectivo Estatuto. A intervenção do TPI resultará do pedido de 39 Estados-membros (entre os quais Portugal) feito em 2 de Março junto do Procurador do TPI e da declaração de aceitação pela Ucrânia da jurisdição do TPI para os crimes praticados no seu território em data posterior a 20 de Fevereiro de 2014. A 28 de Fevereiro o Procurador anunciou também uma investigação motu proprio.

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990