– Trouxe um caderno para apontar aquilo de que eles precisam. Tu sabes melhor.
– Sim, a Veronika esteve a falar com as mães e os miúdos. Vai conseguir ajudar-nos.
– Pediram-me coisas simples como cereais, papas, iogurtes… Nada propriamente especial. Ah, e querem arroz, massa, cenouras… Alimentos de que todos nós gostamos.
– Estou a apontar tudo. Eu aponto tudo! E há mais alguma coisa?
– Falaram-me num robô de cozinha. Não tem de ser uma Bimby nem qualquer coisa tão sofisticada, só tem de ser uma máquina em que possam fazer pratos como sopa para as crianças.
– Para se sentirem em casa.
– Sim, dentro do possível…
Dois deles jogam às escondidas, enquanto os outros correm pela sala com os mais variados brinquedos nas mãos. Gritam pela mãe e pela avó, que estão sempre por perto. As gargalhadas ouvem-se e ecoam pelo Lar do CRID, um dos centros que receberam dezenas dos 200 refugiados da Ucrânia que a Câmara Municipal de Cascais (CMC) foi resgatar de avião à Roménia. Quase indiferentes ao clima bélico que existe, devido à inocência, os seis filhos – um de oito anos e cinco de cinco anos – de Oksana Kobeltska, de 42 anos, criam o seu próprio mundo de felicidade dentro do edifício que “tem o propósito de lhes proporcionar todas as condições para que, aos poucos, os traumas de uma guerra se vão esbatendo e a sua nova vida se vá consolidando”. E foi exatamente isto que a CMC prometeu em comunicado e está a querer cumprir.
“Quando soube da invasão, não acreditei. Depois, procurei sítios para nos escondermos. Acabámos por ficar na casa de banho do rés-do-chão”, diz a mulher natural da cidade portuária de Odessa. “O pai dos meus filhos ficou lá, estamos divorciados. Tenho a minha própria casa, o meu trabalho e, subitamente, fiquei sem nada. Tinha tantos projetos para o futuro e, agora, não sei como tudo será”, explica a proprietária de uma adega que se dedicou ao Instagram nos últimos anos, tendo quase 200 mil seguidores na conta @odessafiver. “Não queríamos deixar a nossa casa, mas um amigo da Igreja Protestante apoiou-nos para salvarmos as crianças. Por isso, fomos para a Roménia e, depois, para cá”.
“Os meus seguidores do Instagram estiveram sempre preocupados e a tentar ajudar-me. Trocávamos muitas mensagens. Estamos no centro desde a terça-feira da semana passada”, desabafa, constatando que, atualmente, está “num ambiente sossegado” e sente-se sossegada. “Não ouvimos as sirenes, não há tiros. É uma realidade completamente diferente”, avança, garantindo que “a Ucrânia sairá vitoriosa e tudo será reconstruído”. “Nunca imaginei que chegaríamos a este ponto, mas já há muitos anos que a Rússia dava passos e recuava. Quando ficou com a Crimeia, pensei que ficariam por ali. Infelizmente, não pararam”, confessa a ucraniana que admira a atuação do presidente Zelensky.
“É aquele que vai trazer a vitória para a Ucrânia e o presidente de que precisamos. Em relação a Putin, honestamente, toda a gente espera que alguém o mate. É o melhor para todos: até para a Rússia!”, sublinha, lembrando que, na quinta-feira passada, o site americano ‘insideedition.com’, revelou que Vladimir Putin terá substituído, no mês passado, toda a sua equipa pessoal, na qual estão incluídos cerca de mil elementos, com “medo de que alguém do seu círculo próximo o possa envenenar”. Tal como o i avançou, com os relatos, agora, o presidente da Rússia tem à sua disposição pessoas que experimentam a sua comida e bebidas, antes deste as ingerir.
“Pessoal da limpeza, cozinheiras e secretárias, todo um novo grupo de pessoas. A avaliação da comunidade de inteligência é que está com medo”, explicou em entrevista, Craig Copetas, editor contribuinte do The Daily Beast, recordando que “o método preferido de assassinato na Rússia é o veneno”. Segundo o mesmo, a crescente oposição pública tem tornado o presidente “cada vez mais paranóico com a sua segurança”. “Ele é completamente maluco!”, atira Veronika, mostrando – no telemóvel, com as mãos trémulas – imagens de destroços de aviões russos que a irmã encontrou no quintal, enquanto Oksana anui, com a tristeza notória no rosto.
“Apesar de tudo, e de não saber aquilo que acontecerá, espero que encontremos uma casa para vivermos sozinhos. As pessoas são muito queridas e simpáticas, mas vou continuar a apostar no meu Instagram e, um dia, a guerra acabará. E, sem dúvida voltarei para a minha casinha”. A poucos metros dali, no corredor principal, de acesso aos quartos, Miguel Pinto Luz pergunta aos refugiados que entendem Inglês se está tudo a correr bem. “Everything’s going well, thank you!”, responde uma jovem que se dirige à sala de refeições com os filhos. “Cascais é um município conhecido por reagir rapidamente a este tipo de situações e, portanto, foi isso que fizemos. Arregaçámos as mangas, montámos uma task-force e desenhámos aquilo que tínhamos de fazer”, declara o vice-presidente da CMC.
“Fomos buscar os refugiados à Roménia e, aqui, montámos três centros de acolhimento com níveis distintos. O C3, onde há acompanhamento psicológico, médico e tudo aquilo de que necessitam para os primeiros dias. Depois, este, com um ambiente muito mais familiar, onde há o sentimento de casa, e o da Creche de S. José”, continua, adicionando que mais de 300 famílias disponibilizaram-se para receber refugiados. “Paralelamente a isto, pensámos logo na educação destas crianças. A cultura ucraniana tem de lhes ser garantida, assim como o emprego aos adultos. Vamos fazer um ‘match’ entre a formação e as skills de cada um e os cargos, mas nem todos querem ter um trabalho porque esperam voltar para a Ucrânia brevemente. Se a guerra terminar amanhã, vão amanhã”, elucida o dirigente político que, desde 2005, tem ocupado vários cargos públicos, tanto no governo central como Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações durante o XX Governo Constitucional de Portugal, como em Cascais, cidade onde cresceu.
“Por vezes, nas missões humanitárias, trazemos as pessoas e esquecemo-nos delas. Isto não pode acontecer, tem de haver uma oferta integrada. E, no final, precisamos de apoiar quem quiser regressar à pátria”, frisa, adiantando que, até à passada sexta-feira, o centro acolhia 33 pessoas. “A adaptação tem sido muito boa. Fizemos uma viagem longa, milhares de quilómetros, mas tanto eu como a minha equipa criámos laços de proximidade com estas pessoas. Perceberam que não fizemos apenas promessas: cumprimos”, declara o também Presidente da Fundação Alfredo de Sousa, vice-presidente da Direção do Turismo da região de Lisboa e membro da direção do fórum comunitário inclusivo.
“Tivemos de tomar decisões complicadíssimas, por exemplo, escolher quem vinha e quem não vinha. Há uma semana que este tipo de imagens não me sai da cabeça. Vejo as minhas filhas e a minha mulher nestas famílias: é como se carregássemos num botão e, de repente, a nossa vida fosse interrompida. É impossível ficarmos indiferentes”, acrescenta, explicando que, até à Roménia, foram consigo dois médicos, dois psicólogos, uma tradutora e restantes elementos. “Fizemos uma ficha médica relativa a cada um dos 229 refugiados: medicação, alergias, vacinação contra a covid-19, tivemos ataques de pânico de crianças… Se esta equipa não existisse, nem o reforço cá, tudo teria sido muito mais difícil. Por isso é que era bom que existisse uma coordenação muito maior do Governo. Estas práticas deviam ser disseminadas porque ainda que a sociedade civil tenha uma grande preocupação em ir buscar pessoas, não sabe como ‘encaixá-las’ aqui”, lamenta. “Se nós, um município, conseguimos fazer isto, imaginemos aquilo que o Governo faria com muitos mais recursos”. “Na II Mundial, Cascais absorveu milhares e milhares de refugiados. Estamos, simplesmente, a ser cascalenses: não a fazer uma ‘caridadezinha’, mas sim a garantir uma continuidade do auxílio prestado”, aponta, indicando que, no Lar do CRID, há aproximadamente 30 camas, no Centro Logístico de Cascais (C3) – aonde se concentra a operação de receção, embalamento e envio dos donativos para a Ucrânia (bens alimentares, medicamentos e roupa) – mais de 200 e, na Creche de S. José, 168.
“Quando as pessoas chegam apenas com a roupa que têm no corpo, tudo é essencial!” “Faço voluntariado há muitos anos e, como estive envolvida no acolhimento dos refugiados sírios, porque vivi no Cairo, no Egipto, decidi logo procurar sítios onde pudesse ajudar. Moro no Estoril, liguei para umas quantas juntas de freguesia e apresentei-me no C3. Estou lá há duas semanas: expliquei a experiência que tinha e recebi um voto de confiança gigantesco das pessoas que lá trabalham porque me deixaram a coordenar a parte da logística, de preparar, selecionar, embalar as coisas, equipar todo o centro”, dá a conhecer, via telefónica, Raquel Chora, de 46 anos, voluntária no C3, centro com acesso mais restrito. “Fizemos tudo desde trazer as coisas para equipar, até montar e fazer camas, pedir donativos aos nossos contactos e temos tido sempre recetividade! No sábado anterior a este não tínhamos berços suficientes e, no domingo, tínhamos o armazém cheio! Esta é uma questão de proximidade geográfica, a guerra pode chegar cá. O centro que temos é de acolhimento temporário e as pessoas descansam, tratam dos assuntos legais e depois são encaminhadas para instituições, famílias de acolhimento, casas de familiares e amigos, etc.”, conta.
“Quando as pessoas chegam apenas com a roupa que têm no corpo, tudo é essencial! Temos copas, cafeteiras, biberões… Quisemos que tivesse um ambiente acolhedor. Por exemplo, as senhoras andavam sempre de volta dos chás nos primeiros dias”, refere com carinho, não ocultando, porém, o lado menos feliz com o qual contacta diariamente. “Há imensos casos e alguns são bastante dramáticos. Tínhamos uma equipa de psicólogos para primeiros socorros psicológicos e, assim que entendíamos que havia muita aflição, chamávamos algum. Havia uma senhora que tentava comunicar com a tradutora, não conseguia, a psicóloga foi ter com ela e… Percebeu que as senhoras trouxeram animais domésticos e, portanto, aquela queria ter o cão a dormir com ela. E levaram-lhe o cão”, narra, salientando que “estava tudo organizado para os animais”, como a existência de ração ou medicação. “Acalmou-se logo quando se deitou com ele”.
“Tenho ido despedir-me das famílias e vão felizes: temos o centro praticamente vazio neste momento. São atendidas as necessidades burocráticas, as situações de saúde, têm logo uma triagem pelas assistentes sociais, saem com roupa, sapatos, possibilidade de irem buscar comida, etc. Acho que as mães mais novas estão muito assustadas porque temem que os companheiros morram. Penso que tem a ver com a idade dos maridos que deixaram. E as senhoras mais velhas parecem mais calmas”, raciocina a voluntária que está no centro que, segundo um comunicado da CMC, está “já equipado com mais de 200 camas, sanitários, creche, refeitório, condições essenciais para que nada falte”, sendo que “será esta uma fase para, com tempo, se tratar de toda a parte legal”. “Entretanto ser-lhe-á entregue passes para que disponham da liberdade de mobilidade que necessitarem. Também os mais jovens terão em breve a possibilidade de ‘continuarem os seus estudos nas escolas públicas e privadas do concelho’”, foi veiculado. “Apareceu uma senhora que me disse ‘Trago aqui uma coisa e diga-me se vale a pena’. Trazia-me dois sacos enormes com maquilhagem. E eu disse ‘Nem sei se é oportuno agora e gostaria de falar com os psicólogos, mas vamos fazer uma experiência’. Foi a loucura total! Vieram agradecer, quiseram aprender a dizer ‘obrigada’ e tiveram a sensação de normalidade. É aquilo de que mais precisam”.
“O meu nome é Maryna Panasenko, tenho 41 anos e estou aqui com os meus filhos de 13 e 10 anos. Estão mais tranquilos, mas antes estavam extremamente nervosos”. É desta forma que se apresenta uma das outras mães que estão no centro, sendo que nos corredores se comentava que “passa o dia agarrada ao computador e ao telemóvel a ver notícias, está a ficar mal e não consegue desligar da guerra”. “Não havia muitos sítios onde nos pudéssemos esconder, por isso, escondemo-nos no carro e em casa. Chegámos na terça-feira da semana passada”, elucida Maryna antes de chorar. “Tem sido complicado. Leio muitas notícias e tenho imensos familiares lá: deixei o meu pai, a minha mãe, o meu marido, os meus irmãos, os meus primos”, suspira, limpando as lágrimas.
“As sirenes ouvem-se muito mais em Kiev. Antes de vir para cá é que comecei a ouvi-las cada vez mais. Felizmente, o presidente Zelensky é uma ótima pessoa. Respeito-o porque não deixou a Ucrânia e tenta, todos os dias, proteger a população”, diz, rindo-se assim que é questionada acerca do presidente Putin. “Agora a sério: ele tem de morrer. Pode ser que alguém o mate!”, observa, em tom jocoso, mas com a revolta marcada no olhar. “Há quem diga que tem cancro, outros que não está bom da cabeça… Eu não sei, só sei que está a destruir o meu país”, argumenta a mulher que trabalhava num armazém que abastecia supermercados e hipermercados. “Aguardo ansiosamente pelo meu regresso à Ucrânia”.