Nuno Moura é editor e poeta. Criou três selos marcantes na edição de poesia e foi deixando um mapa e um diário de bordo que contam tantos naufrágios como avistamentos prodigiosos, e que funcionam mais como um estudo da hipótese de ainda nos aventurarmos hoje, de haver ainda distâncias que se podem conclamar, nesse confronto entre a tempestade interior que alguns carregam e um mundo que cada vez mais se afirma pelas fronteiras e obstáculos que nos impõe. Mais do que um autor distintíssimo, é no despojamento, na atitude disponível e franca que tem sabido descoser esse horizonte mais imediato das tantas ilusões que se misturam na grande caldeirada da poesia, essa que parece ter cada vez mais gente à mesa ainda que sirva de alimento a menos pessoas.
A respeito destas coisas, Cioran dizia que, estando gastos os modos de expressão, a arte tende a orientar-se para a ausência de sentido, para um universo privado e incomunicável. E, face a isto, vaticinava: “O público desaparecerá em breve; a arte não tardará a segui-lo.” Embora Nuno Moura, em tudo o que tem feito, nunca embarque no optimismo imbecil e desvitalizado daqueles que fazem do próprio futuro a banha da cobra, a sua estima por essa razão imperiosa de se manter ligado à vida, leva-o a um quixotismo que, hoje, se considera uma forma de falhanço social, mas é isto o que o aproxima da poesia, dispensando-o de provar um talento, e de montar banca de feira com esse produto de artesanato que é a frase bonita, a banalidade enternecedora. Nele, o caótico destempero da amargura junta-se a uma leveza capaz de levantar a última rosa de entre o esterco do mundo. E numa altura em que acaba de lançar quase em simultâneo duas plaquetes – Mais S.F.F. (ed. Poesia Incompleta) e Cordas Veias (ed. Douda Correria) –, dois cantos que se juntam a um longo poema dividido em nove, falámos com ele, para tentarmos ficar com uma ideia do seu percurso, um balanço de décadas em que tem sabido expor-se sem se impor, fazendo da leitura de poesia ao vivo e da edição uma forma de viver de um incêndio veloz como o silêncio, de defender o próprio sangue contra o rumo da espécie, cumprir-se nas feridas, levantando esse pólen submerso que resplende ainda num planeta negro, confuso, e tentar segurar a atenção de um poucos, sem resvalar nessa “portugalidade de nicho/ roída por empolgamentos de si própria”. O seu esforço, depois de tantos anos, continua ser o de montar “uma subtil emboscada/ à comunhão carnal”. Cose a sua sombra, “estrela contra o mundo (…) sangue ressoado/ em áreas nocturnas”, e assim, na sua lentidão dedicada e infinita, a sua sombra precipita-se subterrânea, atravessando desejo, repouso e interrompendo a espessa névoa em que estamos mergulhados.
Como tens andado?
Ao sabor da vida.
Já fizeste 50?
Fiz 52 em Janeiro.
E quando eras mais novo, imaginavas-te a chegar a esta idade?
Pois, pensava que nunca chegaria a esta idade. Incrivelmente, cheguei. Mas muito por ter sido abraçado pela vida. Tudo me levava a pensar que não chegaria tão longe. Foi sempre surpreendente o que foi acontecendo, e isso segurou-me. Estou a falar de família e amigos, as coisas mais íntimas.
Em miúdo, quando te começaste a situar no mundo tiveste a impressão de que era um lugar demasiado duro para te aguentares muito tempo?
Sempre tive essa sensação, desde puto. Depois parece que fui eu próprio encontrando maneiras de confirmar essa percepção, de chegar ao fim mais rapidamente. Fi-lo abusando de álcool, drogas, metendo-me na vida, como diz o célebre verso de Cesariny: “cair verticalmente no vício”.
E onde cresceste?
Em Lisboa, no Bairro de Benfica.
Um bairro com alguma tradição até literária. O Luiz Pacheco e o Lobo Antunes parece que viveram paredes-meias.
Sim, mas nunca me cruzei com eles. Mas era um bairro típico, sim, não tanto pelo tipo de arquitectura mas pelas gentes que o habitavam. Pessoas que vinham de muitos sítios diferentes do país, porque fora uma zona mais em conta para que algumas famílias pudessem ter uma casa. E a infância que vivi nele foi um pouco fechada, protegida, por questões de saúde, e também pela educação que recebi dos meus pais.
E sentes que foste uma espécie de aldeão lisboeta?
(Risos) Não te sei responder a isso.
E como é que te começou a aparecer essa sensação de que este não era o lugar mais aprazível para se estar?
Foi por defeito. Tens a sensação de que não consegues chegar perto dos outros. Ou a sensação com a qual é sempre difícil de lidar que é a do afastamento. Trago essa sensação desde sempre. Não há tratamento para isso, é uma espécie de fado.
Curiosamente, até deves ser das pessoas com quem os outros mais sentem a facilidade de estabelecer uma ligação profunda. Das coisas que me lembro de ouvir sobre ti e até de pessoas bastante introvertidas é a sensação de se sentirem em ti, ou seja, de encontrarem em ti um reflexo daquilo que elas são intimamente.
É porque eu as procuro. Quando estou com alguém estou mesmo. Aprendi isso com os meus filhos. Tens que dar uma atenção dedicada, não pode ser de outra maneira. Fui pai com 22 anos. Foi uma aventura inesperada e foi o início de uma grande aprendizagem. Porque na altura não estava minimamente ligado à ideia de assumir essa responsabilidade. Tratou-se de um acaso, mas, como digo ao meu filho mais velho, o Francisco, ele ensinou-me a gostar dele. Ele puxou-me. (Emociona-se. Pausa longa.) Até me custa a dizer esta palavra, mas é uma bênção. Percebi que nunca mais seria só eu, só eu até a cuidar de mim. Percebi-o muito cedo e com muitos conflitos à volta. E fugi disso. Por um lado querendo-o, querendo cuidar, não conseguindo, e acabou por ser sempre assim por toda a vida – esse ciclo de repetição sem saída.
Uma coisa que define o teu trabalho, e a tua escrita, é que a própria linguagem não assenta. Por exemplo, neste livro mais recente, e isso já se fazia sentir noutros, a linguagem em vez de parecer escrita é como um rumor, algo que se ouve, e parece envolver-nos como se fosse uma conversa de várias pessoas, dando a sensação de fixar um tempo muito mais do que um discurso. A escrita o que apanha é uma série de ressonâncias, de ecos… Foi por essa dificuldade em chegar aos outros que buscaste a literatura como um campo de estudo desse espaço de separação e proximidade com os outros?
Coincidiu com o momento em que atingi a maioridade, embora eu lesse bastante já antes. O passar para a escrita surge no fim da adolescência, algo muito casual. Não sei bem porquê, mas o que despoletou a escrita foi o ter começado a viver sozinho. Tinha 21 anos, estava a trabalhar numa agência de publicidade, do estágio passei a copywriter júnior, já com um ordenado razoável na altura. E foi aí, foi imediato: não só a escrita mas também o álcool. Lembro-me da primeira noite que passei na minha casa. Comprei uma garrafa de Gin e passei a noite a escrever. O que se seguiu foi uma repetição dessa noite naquelas que se seguiram.
Mas para ti a escrita e o álcool não são duas coisas…?
São, são duas coisas. Claramente são duas coisas. Até porque estou há cinco anos sem beber e continuei a escrever, talvez até mais do que antes. E, desde logo, com outra consciência. 90% do que escrevia alcoolizado era lixo. Aproveita-se um verso ou outro de vez em quando, mas o resto vai para o lixo. Mas voltando atrás, ao que estavas a dizer sobre a minha escrita não assentar… É que eu deixei de escrever poemas. O que foi uma espécie de impulso imediato na juventude e um pouco mais além, isso deixou de me visitar.
Podes explicar como era esse impulso imediato?
Surgia-me uma frase que vinha com um embalo que já de si me orientava, me dava todas as indicações sobre o modo de desenvolvê-la. Era como se o poema me surgisse todo na cabeça, e era uma questão de prender no papel. Mas isso deixou de me acontecer. Não escrevo um poema, o que faço agora é andar de volta de um texto. Isso aconteceu a partir do Canto Nono. Desde aí, o que quero é escrever um texto que consiga defender lendo-o ao vivo. Agora o que faço é ir escrevendo. Passam-se dias em que não tenho nada para lhe dar, mas ando sempre com o meu bloco de notas e vou escrevendo coisas que me passam pela cabeça, apontando algumas frases. Depois, à noite, outra coisa que faço é ocupar-me com colagens. Faço colagem de texto. Recorto dos jornais frases, palavras, ando ali de volta e vou escrevendo um texto novo. Às vezes também aproveito coisas daí, desses livros que são exemplares únicos feitos de colagens. Vou apurando esses textos, como disse há pouco, de maneira a que os possa ler ao vivo. Importa que, a partir de um certo momento, para mim façam sentido. Foi isso o que aconteceu com este livro, “Mais S.F.F.”. É um texto em que eu andava a trabalhar, a acrescentar, a cortar… e numa das leituras que fiz na Poesia Incompleta, em que só li coisas minhas, li o início deste texto, e o Changuito [dono da livraria], pediu para o editar.
Nos últimos tempos o que aconteceu, não apenas com a literatura, é que nos isolámos, mantemos contacto, mas isso acontece cada vez menos frente-a-frente e até num registo de colaboração. Por outro lado, tu sempre foste uma pessoa para quem a questão da presença sempre se impôs, e sempre te empenhaste por esse espaço em comum, por defender a convivência. Que importância têm para ti esses encontros, essas leituras que fazes?
Essa aventura de ler ao vivo já é mesmo muito antiga. O que eu via por cá eram algumas leituras na Barraca, aqui em Lisboa, e algumas no Porto. Mas o que foi, para mim preponderante, foi uma viagem que fiz a Barcelona, acompanhado pela Helena Vieira, que dirige hoje a Mariposa Azual… Então vivíamos juntos, e essa viagem terá sido em 1996, e uma amiga levou-nos a um espectáculo de dois gajos que iam ler poesia. Foi aí que pela primeira vez ouvi poesia, entendendo que se pode ler poesia de outras maneiras que não aquele clássico tom de declamação, solene, pesado, sério. Isto apesar de haver as raras excepções entre nós. À cabeça: Mário Viegas. Este duo catalão, que se chamava Accidents Polipoètics, e que liam poemas deles, mas não só, mostraram uma forma de se ler poesia cheia de viva. Eles interpretavam o texto mais do que apenas ler. De regresso a Lisboa, falo com o meu amigo Paulo Condessa e com o meu amigo Miguel Granja, dou-lhes a ouvir uma cassete que trouxe daquele duo, e, como estávamos prestes a iniciar a aventura da Mariposa Azual, com o lançamento do meu livro Nova Asmática Portuguesa, pareceu-me que aquele livro era ideal para iniciarmos alguma coisa do género. E assim foi. Juntámo-nos, ensaiámos os três e apresentámos o livro na Barraca. Foi o primeiro e último espectáculo a três. Depois prossegui com o Paulo e desenvolvemos então o Copo, essa aventura que fez já 22 anos.
Já então, na Barraca, com quem te cruzaste foi com o Changuito, e que agora se torna teu editor. Como é que vês esta forma pouco convencional como têm vindo a divulgar a poesia?
Aliaram-se aqui dois aspectos. Aprendi em palco o gosto que tinha em ler poesia ao vivo. Nunca tinha subido a um palco, coisa que não é fácil. Não era e não é. Mas como eu gostei de ler em palco, percebi que essa é uma forma incrível e directa de chegares a um eventual leitor. Porque nesse momento, as coisas operam por impulso, e se um poema puxa por alguém, basta um poema e a pessoa vai procurar o livro para poder revisitar aquele poema. Eu preferia que a pessoa comprasse o livro depois de o ler todo, mas raramente isso acontece. Normalmente, compramos um livro para o descobrir. Mas esta exposição directa resulta, e comecei a fazer essas leituras nos lançamentos da Mariposa Azual e fi-lo com ainda maior intensidade na Douda Correria. Organizei várias noites de leitura de poesia, principalmente no Bar Real (depois Irreal)… mas isso foi sempre uma coisa que fui fazendo. Já quando vivia em Campo de Ourique, no quiosque do Jardim da Estrela, sempre tive o gosto não só de ler como de organizar leituras. Mesmo que não haja venda de livros, gosto desse acto de subir para um palco e ler um texto. Por isso, com cada uma das editoras que foi criando, tentei sempre que a apresentação dos livros fosse a leitura integral dos textos. Em vez daquele formato da apresentação formal, em que se chama alguém para apresentar o livro, tecer os elogios da praxe ou outros, prefiro que se leia o livro, e foi o que fizemos no início da Douda Correria. Isso até termos chegado a um livro com cento e tal páginas, então tivemos de furar a tradição.
Num livro como este, do mesmo modo como já o fazias no Prémio Nacional de Poesia, e até na Nova Asmática Portuguesa, assumes uma postura muito crítica do meio literário e em particular do meio poético. É curioso porque, a certa altura, parece que te tornaste um crítico, que usa a linguagem poética para desmontar certos vícios…
Mas eu sou um crítico de mim mesmo primeiro que tudo. Contra mim falo, ou a mim me aviso. Vejo muita coisa de que não gosto, leio muita coisa que não gosto, primeiro como leitor, depois também como editor. Recebo muitos, muitos originais, e, de vez em quando, é um prazer descobrir algo em que me parece haver realmente uma voz.
Mas a partir de certa altura, sobretudo em livros anteriores, parece haver uma sátira que tu fazes, criando uma coisa ao lado, muitas vezes através da distorção, em que pareces ler uma coisa e obténs um desvio. Neste momento, o teu registo parece-me mais confrontativo, ainda que não apontes nomes. Tentando abrir isto, gostava de saber que aspectos são esses que mais te desgostam num meio com o qual te cruzas há mais de duas décadas?
Desgosta-me a facilidade crescente em editar. Pode parecer um contrassenso eu dizer isto uma vez que edito bastante na Douda Correria, mas o que realmente me custa é esta facilidade em editar um primeiro livro e a partir daí o autor assumir que é escritor ou poeta. Isto que tem acontecido cada vez mais é algo que me parece bastante estranho. Quando editei o meu primeiro livro o que eu queria era fugir. Passado um tempo queria queimá-lo, enterrar aquilo tudo. Alguma vez me passaria pela cabeça vir dizer que era poeta ou escritor? Isso só veio bem mais tarde. Para chegar a acreditar nisso precisei do aval de alguém que eu considerava, e muito: o Vitor Silva Tavares. Ele deu-me esse aval. Isso já não existe hoje em dia.
Não é o que tentas fazer com o teu juízo enquanto editor?
Sim, é o que tento fazer na Douda Correria. Mas devo reconhecer que tenho um gosto bastante lato. E quero fazer sempre coisas diferentes. Já editei livros com cds, com música, banda-desenhada, livros só de desenho, peças de teatro… Tudo isso mexe comigo, e o que me importa é que o texto ou o que quer que seja o género artístico em causa mexa comigo… Romance já seria mais difícil, não só pela extensão de muitos dos originais que me chegam… Coisas de 500 páginas. Nem nunca teria dinheiro para editar uma coisa dessas. Mas são esse tipo de coisas que me fazem impressão, de resto, é tudo mais ou menos igual.
As coisas mantém-se iguais ao que eram há duas décadas?
Sim. Depois cabe-te fazer as tuas escolhas. E mesmo quando surgem oportunidades de crescer, não de fazer da Douda Correria uma grande editora, mas aumentar as tiragens para algumas centenas de exemplares, o que me permitiria não andar sempre aflito, à rasca para arranjar dinheiro, o que me pergunto é: mas o que é que isso significaria, o que é que isso custa? Porque isso tem um custo. Desde logo, tempo. Então, prefiro não o fazer. Mas tenho tempo. Não tenho dinheiro, mas tenho tempo.
Nos últimos tempos a tua tendência tem sido essa de existir num registo minimal, ao passo que antes ainda fazias uma distribuição em várias livrarias, incluindo na Fnac, mas agora decidiste que não estavas para isso.
Sim, porque é preciso uma estrutura ou alguém com estrutura para fazer isso. Sozinho não o consigo fazer. Já conto com um ajuda incrível que me é dada pela Madalena Ávila, que trata das redes sociais e do blogue da Douda Correria. Se estivesse sozinho eu não faria isso. Ela fá-lo por amor. No que toca às grandes cadeias, deixei de distribuir na Fnac porque a burocracia é de tal ordem, depois há os atrasos constantes nos pagamentos… Eu fiz peixeiradas nos escritórios da Fnac, isto por eles faltarem à palavra. Diziam que pagavam num dia, depois já não era nesse dia, passava a ser noutro, e isto dá cabo de um projecto pequeno como aquele que eu tenho. Depois eles queriam umas dezenas de exemplares para fazerem montinhos… Nunca me esqueci desta, de eles me pedirem vários exemplares não porque os vendessem mas para fazer “montinhos”. E depois os livros eram devolvidos três meses, quatro ou cinco depois, metade deles estragados. E eu tinha de os ir buscar a Alverca… Como não tenho carro, tinha de pedir ao meu pai, velhinho, e lá íamos os dois a Alverca, e venho de lá com um caixote pequenino, com o meu pai a rir-se daquilo tudo. São mentalidades diferentes. Depois queriam exigir-me um programa de contabilidade ligado à internet… Coisas que eu não domino, nem quero. É triste, mas, hoje, a única plataforma onde um tipo ainda consegue meter uma mão de fora, mostrar-se, é o Facebook. Agora já nem isso. Dizem que agora é o Instagram… Mas é por aí que ainda se vai fazendo alguma divulgação das coisas.
Falando na questão do individualismo que tomou conta de tudo, também na poesia, quem anda por aí está interessado apenas em ver publicados os seus livros, em vê-los publicados seja como for, e tu, pelo contrário, desde o princípio tiveste outra perspectiva das coisas, e não me parece que o que te motiva seja a tua obra, nem parece que o que te importa seja que a tua obra venha a ser reconhecida e premiada, como acontece com tantos poetas que começaram a publicar ao mesmo tempo ou pouco depois. Tendo em conta todo esse tempo que passou, como é que vês este teu percurso, essa lógica de abertura e de inclusão que sempre pautou o teu envolvimento com a poesia?
O mais importante em relação ao que eu fiz é que está feito. E o que espero de futuro é exactamente o mesmo. Espero continuar a fazer uns livrinhos enquanto puder, ler ao vivo enquanto puder, e ir escrevendo. Desculpa-me, mas não sei o que mais te posso dizer em relação a isso.
O que queria era confrontar esse individualismo de quem publica para meter o pé na porta e dizer que também entra, também integra o lote da poesia nacional, com esse teu entendimento de que o que te interessa é ir trabalhando num texto que depois possam defender em público. O que quero saber é que defesa é esta, o que é que tu buscas através deste acto?
Poça, busco um pouco de verdade. Porque a poesia é mesmo… Não é a poesia, mas a buca da poesia, a escrita da poesia é a busca de um sentido, e isso é fundamental para mim. Não te sei dizer exactamente porquê, mas essa necessidade está sempre em mim. E é só isso o que interessa. Agora, isso que tu dizes, esse pôr um pé na porta, não é para isso que me dá, nem na verdade penso nisso. O que me norteia é pensar no que é que ainda posso fazer. E muitas vezes falho, não consigo fazer as coisas a que me proponho, mas enquanto acreditar que ainda há coisas que estão ao meu alcance, que posso concretizar, nem que seja só um livro de outro autor… E ir escrevendo… Voltar a ver a minha filha também é um desejo forte que tenho. Já não a vejo há três anos.
Não está cá?
Está cá. Mas não consigo vê-la. E cuidar deste que vem aí agora. Vou voltar a ser pai agora.
Quantos filhos tens?
Com este, serão quatro.
Voltando atrás, tu tiveste uma coisa que, hoje, tanta gente ambiciona. Tiveste um emprego em que eras bem pago. Isto embora, às tantas, tenhas tido uma desavença com a própria profissão, com a publicidade… Porque sentias que a tua inteligência estava ao serviço da produção de uma forma de miséria, não é?
Sim, por ajudar a reproduzi-la.
E quanto tempo estiveste ligado à publicidade?
Dos 21 até aos 26. Depois tive recaídas ocasionais, quando precisava de ganhar algum dinheiro mais consistentemente. Mas nesses primeiros tempos apanhei aquelas anos dourados, quando vinha dinheiro da CEE. Então, havia muito dinheiro, eram muitas as empresas a investir na publicidade. Nessa altura, os ordenados eram altos, ganhava-se bem. Ao mesmo tempo, se ganhavas bem, o certo é que não tinhas horário. Andavas ao sabor das vontades desses empresários. Bastava que alguém dissesse que havia alguma coisa de errado, que não gostava desta cor, ou daquele aspecto, e lá tinhas de fazer mais uma noitada, passar uma série de dias de volta daquilo só porque o senhor tinha embirrado com qualquer coisa. Rapidamente se esgotou aquele charme da publicidade, e já contei do mal que chegavas a sentir-te por trabalhar em certas campanhas, como quando o cliente era a Cofidis. Até a General Electric tem a General Finance que impinge créditos desses, em que a ideia é enterrar as pessoas com créditos em cima de créditos. É a forma como hoje se produzem escravos. Nunca mais voltei a fazer nada na publicidade, mas também se esgotou essa fonte.
Actualmente, um fenómeno comum é as pessoas a meio da cadeia não questionarem os efeitos ou o impacto que as suas acções têm, aquilo que a sua actividade profissional acaba por representar. Parece ser essa a condição da nossa sociedade, uma grande engrenagem que oferece a todos uma espécie de desculpa…
Mas ninguém é inocente, ninguém é inocente. Toda a gente sabe o que está a fazer. Eu sabia o que estava a fazer na publicidade, e como eu várias outras pessoas que trabalhavam comigo e que sabiam claramente ao que aquilo conduzia, o que era aquilo. A questão na vida é esta: tens de decidir. Ou decides ou não o fazes. Se não decides, manténs-te. Compactuas. Se não o fazes, então o que importa é ter ganas de procurar outras coisas. Porque o mais fácil é manteres-te ali. Há pessoas que trabalharam comigo em publicidade que ainda lá estão, trabalham em agências de publicidade, ainda fazem a mesma coisa. 20 anos, 30 anos depois. A poesia também é isto, é arriscares, é cortares: partir vida, partir verso. É a mesma coisa.
Logo no início, perguntei-te se estavas bem… Deste a entender que a vida te tem aguentado, vai-te dando as forças de que precisas. Da tua experiência, sentes que há uma espécie de sorte que protege as pessoas que ainda põem a consciência à frente, ainda se servem dela para tomar essas decisões difíceis, e que defendem as coisas importantes?
(Longa pausa) Acho que toda a gente tem essa consciência. Eu não salvava ninguém. No fim, não salvava ninguém.
Parece-te que estamos naquele ponto em que Deus desafia Abraão a encontrar 10 homens justos como condição de salvar Sodoma e Gomorra? Tu nem tentarias encontrar esses 10 homens?
Nunca me proporia a essa tarefa. Aí é que te digo: Deus me livre. (Risos)
E não sentes que é isso o que tens feito depois de teres deixado uma vida profissional que te garantia um sustento e uma vida livre de preocupações? Afinal, segundo contava o Vitor Silva Tavares, o Cesariny dizia que, para sobreviver, para ganhar esse pouco para um tipo se aguentar, até se pode matar a tia. Depois disso, para ir além desse pouco que basta, aí é que um tipo se condena.
Viver com os mínimos é óptimo. Mantém-te ligado à vida. Nem mais nem menos, é o que é necessário.
Nesse aspecto, pelo menos, tornaste-te um mestre, dado que a maioria das pessoas da geração mais nova não sabem sequer como é que hão-de fazer para sobreviver. Pois chegámos a este ponto, em que o problema nem é só ter um bom trabalho, uma casa, ter filhos, mas para muitos o problema é conseguir o suficiente para viver.
Pois, eu tenho tido sorte porque houve alturas em que não tive de pagar renda. Acho que basicamente é esse o problema: se tens uma despesa mensal alta ou baixa. Eu optei por ter uma despesa mensal muito baixa, mesmo com filhos. Portanto, vou conseguindo o mínimo para ajudar e para me ir mantendo. O que me salva às vezes são uns trabalhinhos que eu faço extra. Às vezes pagam-me pelas leituras que faço, o que é fantástico.
Nunca mais fizeste qualquer incursão nesse mundo dos assalariados?
Não. Sobrevivo à base dos trocos da Douda Correria, que agora com os poucos exemplares que fazemos muitas vezes nem trocos me dá, depois há as leituras que vou fazendo, sobretudo no Porto, nas Quintas de Leitura, às vezes nalgum encontro de escritores… Este ano ganhei 500 euros numa leitura. Isso salvou-me por dois meses.
500 euros dá-te para dois meses?
Em despesas fixas, sim.
E onde é que isso foi?
Em Oeiras, agora Oeiras é um maná.
Por se estar a candidatar a capital europeia da cultura, não é?
Sim. E está a mostrar o seu peito. Para mim foi bom, e fiz uma leitura quase só de Cesariny. Soube-me bem esse dinheiro. Também recuso muita coisa, ou porque não gosto das pessoas que organizam ou por serem coisas sem interesse.
E achas que te estás a tornar um tipo bastante intransigente desse ponto de vista? Intransigente no sentido de se ser fiel a si próprio, aos seus princípios?
Sim, esses princípios já não vacilam. Nem estou a ver outra maneira de estar nas coisas. Pode vir a Porto Editora a querer comprar a Douda Correria e oferecer-me um ordenado chorudo… mas acho difícil. (Risos). Bem, eles é que perdem.
Suponho que já tenhas amargado bastante nesta vida, e com esta intransigência que manténs… Quando falas com os teus filhos, com pessoas que estão dependentes de ti, e para quem a tua voz não é apenas a de um amigo, que oferece um conselho, mas é uma voz que tem um grande peso, sabendo tu que este é um mundo muito adverso à tua concepção da vida, como é que é falar a partir daí?
O meu filho mais novo, o Jonas, tem onze anos e defende ferozmente a ideia de que a Douda Correria devia ser uma empresa. Portanto, ele já está a pensar no seu próprio futuro. O que me agrada, claro. Se fosse por aqui… Ao olhar para estes putos que não lêem, eu tenho um filho que pensa: Se calhar a editora do meu pai até pode dar algum sustento, alguma paz financeira e algum prazer. Mas eu corto-lhe logo as vazas. Digo-lhe: Puto, vai fazer outra coisa, não penses nisso. É claro que, no fundo, essa ideia me agrada, alguém que pudesse dar seguimento à Douda Correria… E digo isto quando a Douda Correria pode acabar de um momento para o outro. E acho que é isso que vai acontecer, à imagem do que aconteceu com a & etc.
Quando perde a pessoa que lhe dava o seu perfil?
Acho que sim. São projectos editoriais muito ligados à figura do seu editor.
Sendo embora o teu gosto bastante lato, o que existe nesse esforço que fazes é algo como o empenho de um perdigueiro em resgatar alguma coisa que ficou viva debaixo das ruínas de qualquer coisa que desabou. Mas gostava de saber, além daquilo que se vê nas edições que fazes, o que é que tens encontrado nas ruínas deste tempo em que já não há colecções de poesia fortes e que possam guiar os leitores e os poetas, e isto ao fim destes oito anos da Douda Correria, que surge já depois da Mariposa Azual e da Mia Soave.
O que ando à procura é de vozes, vozes. E eu próprio reconheço que há vozes com as quais me identifico mais e outras menos, mas não deixam de ser vozes próprias. Em oito anos, e 160 títulos, alguns deles repetidos, mas digamos que estamos a falar de 120 autores diferentes, quanto a mim, sinto-me acompanhado.
Nestes autores e livros em que foste trabalhando, o que é que evidenciarias num balanço sobre a Douda Correria?
A minha resposta é: todos, todos. Porque, na verdade, todos os autores me ajudaram a sobreviver, todos. Não paguei um cêntimo a nenhum autor, e no pouco lucro que há num livro, e estamos a falar algumas vezes de uns poucos euros, eu fiquei com esses poucos euros. Não lhes dei. Isto no contrato que não existe, porque isto é tudo claro. Todos os autores souberam das condições da Douda Correria antes de fazerem o livro. Sabiam que não iam receber um tusto, que a sua parte iam receber em livros. Portanto, a Douda também serviu para eu sobreviver. Isto no tal mínimo que me parece justo. Já na Mariposa Azual, eu pagava direitos de autor logo à cabeça aos autores: 10% sobre o PVP. Porquê? Porque foi uma altura em que eu tinha dinheiro. Vendi uma casa e fiquei com bastante dinheiro. Gastei como eu quis e a fazer os livros que quis na editora. Daí o termos feito aquela loucura da obra reunida da Adília Lopes, com desenhos da Paula Rego, e fizemos logo dois mil exemplares. Aquilo foi uma pipa de dinheiro, e só foi possível porque eu tinha esse dinheiro. Não tenho até hoje uma única dívida com ninguém, nem com gráficas. Isso eu aprendi com o Vitor: é melhor não ter dívidas. E muito menos com gráficas. Isto para dizer que estou mesmo agradecido a todos os autores. E não só, também aos capistas… Tem sido tudo uma grande bondade que fazem comigo. É claro que eu estou lá, trato das coisas e faço o trabalho que é preciso ser feito. E nenhum autor até agora se mostrou descontente, decepcionado. É claro que há sempre os autores que ambicionam mais, mesmo depois de termos chegado àquele acordo com estas condições. Mas eu já tinha avisado que não posso dar mais, e, por isso, estou de consciência tranquila.
Neste contacto com essa malta nova, velha, de todas as idades, quais é que te parecem ser os equívocos que persistem em relação a esta coisa da edição dos livros, da poesia… O que é que tens de estar sempre a explicar às pessoas?
Continua a haver uma ilusão de que, com um livro, entrar directamente no palácio da poesia.
E ao menos ainda existe esse palácio da poesia?
Não.
Mas já existiu?
Sim, existiu. Um palácio muito bem frequentado, sim. E aberto, não era um palácio fechado. No tempo do Herberto, Cesariny… Havia ali um templo aberto, sim. O que me parece é que esse templo tem vindo a fechar, porque querem pôr lá muitas janelinhas, cada um quer pôr lá a sua janelinha, e com isso, na verdade, acabam por tapar a luz.
Quando começaste a publicar nos anos 1990, as coisas eram, apesar de tudo diferentes, e até o mediatismo era de outra natureza, porque era uma coisa que tinha tempo, ao passo que o dos nossos dias é hiper-acelerado… No fundo, o que se perdeu foi precisamente as instâncias de mediação, porque se tudo hoje é mediatizado, como tu estavas a dizer, há um excesso de janelas, mas depois nem entra luz. Mas nesse outro tempo, quando contactaste com outros poetas, e tendo publicado na & etc, que era uma casa com tradição, que consciência das coisas é que se perdeu entretanto?
Acho que a grande consciência das coisas dependia do conhecimento. Para entrar aqui, eu tinha de saber o máximo daquilo em que me estava a meter. E isto porque não quero passar vergonhas, quero chegar lá inteiro, ter como ripostar, conversar… E isso é que eu acho que se perdeu. Hoje, damos por tanta gente que escreve um livro de poesia sem conhecer a grande família que está ali por trás. Abdicam disso. Mas como? E claro, isso depois vê-se no que escrevem.
Falaste no acto de estreia como essa tentação de se conquistar uma espécie de título, uma espécie de faixa das misses, e isto contrasta com o que se passava com figuras como o Cesariny e o Herberto, que tu referiste. O Cesariny ou o Herberto podiam ser bastante duros, até um com o outro. Sabe-se daquele episódio que ocorreu quando o Herberto se estreou com a plaquete O Amor em Visita, publicada pelo Luiz Pacheco na Contraponto, e como o Cesariny fez uma célebre sessão em que leu aquilo tratando muito mal o texto e depois andou aos pontapés ao livrinho. Mas havia até esse cuidado daqueles que queriam publicar submeterem os seus livros aos poetas que tinham já um percurso para obterem o aval de que falavas.
Bem, eu como editor não fico à espera do aval de ninguém. Acho até incrível quando me vêm dizer que esta pessoa já leu o livro e gostou. Isto na apresentação de um original, não é? O que eu respondo é: O que é que eu tenho a ver com isso e o que é que isso interessa? Vou ler e depois logo decido. Agora esse aval a questão é saber quem é que tu podes procurar, hoje, para to dar? Mas tenho amigos poetas que se procuram mutuamente, se lêem uns aos outros antes de avançarem para a edição. Mas a quem é que se iria mostrar agora o que se escreve para conseguir esse aval?
Tu mostras a alguém aquilo que fazes?
Não, eu não mostro a ninguém.
Mas este texto que acabas de publicar leste-o aqui…
Sim, li aqui. Mas não me passou pela cabeça que viria a ser editado pelo Changuito. O que sabia era que integrava esse projecto imaginário que eu tenho que são os Cantos. Começou com o Canto Nono, este Mais S.F.F. é o primeiro canto. O segundo canto é o Cavalo Alucinado, o terceiro é a Terceira. O quarto é este que acaba também de sair na Douda Correria, o Cordas Veias. E ainda hei-de escrever o quinto, sexto, sétimo e oitavo.
E acaba no nono?
Sim, não há um décimo canto, como n’Os Lusíadas.
Como é que encaras esta estrutura?
É só para eu me segurar no tempo. É só uma ideia, e o mais provável é que nem chegue ao fim. Mas é a busca de uma certa segurança.
E que queda é essa em que te sentes para te levar a procurar algo a que te segurares? Agora que tens toda esta gente à tua volta, e os teus filhos, o que é que persiste daquela sensação que tinhas quando eras mais novo?
Se calhar isso tem só a ver com as expectativas. Não há maneira de deixar de ter esta esperança de que a coisa talvez ainda possa melhorar, ou que vais chegar mais proximamente do outro. Muitas vezes essa impossibilidade entristece-me, fico descrente. Mas também já vou daqui contente.
O que é que sentes que foste buscando ao longo da tua vida a esse nível do encontro?
Ui… (Pausa) O que eu busquei sempre foi outro corpo, mais do que uma cabeça em consonância de ideias com a minha. Foi mais um corpo em consonância com o meu corpo. Essa foi a base, que foi falhando ou não. Depois há o resto, a poesia…
E a poesia foi-te dando uma espécie de…
Uma espécie de corpo. Foi, foi. Uma espécie de corpo invisível, ali… Algo que pudesses conseguir tocar. Como a ideia de tocares num anjo. Acho que é isso a poesia. É essa a busca, mas não quer dizer que alcances. O que te posso dizer é que já estive quase-quase a tocar num anjo.
Parece haver aí uma tristeza muito próxima da que sentia o Cesariny, em quem também havia essa persistência na busca de um corpo que lhe amparasse a queda. Ao mesmo tempo, havia nele uma espécie de chaga social pela forma como o quiseram envergonhar pelo desejo que havia nele e que o guiava, por ele amar os corpos errados. No teu caso, a ferida parece ser mais flamante e mais dura porque não houve nada que te tenha sido proibido violentamente e apesar disso há essa sensação de não te ser possível alcançar…
Se calhar, porque o violentamente não me é permitido. Ou eu não mo permito, ou só às vezes. Talvez a minha tristeza venha da sensação de que devia viver constantemente aí. Assumir isso. Mas não consigo, porque assumir isso seria, aí sim, ficar completamente sozinho.