1. É muito grande a ingratidão do povo e dos média em relação a certas figuras. E há momentos em que essa injustiça fica mais patente. Aconteceu há dias quando jornalistas embevecidos assinalaram os 20 anos do início do enchimento da albufeira do Alqueva, que alimenta a barragem. E quem apareceu no boneco das televisões? António Guterres. E porquê?
Simplesmente porque foi ele quem abriu a torneira que encheu aquele reservatório que leva água a milhões de portugueses, que irriga como nunca se viu uma parte enorme do Alentejo que assim não morre à fome e onde nasceu uma zona de agricultura (controversa nalguns casos), que desenvolve também projetos turísticos, dando a Portugal a glória de ter o maior reservatório e lago artificial da Europa.
O Alqueva tem um perímetro de margens de 1.100 km, que é mais do que toda a costa portuguesa, do Minho à fronteira algarvia com a Espanha. A sua capacidade está quase a 80%, apesar da seca, o que permite uma reserva de água confortável para agricultura e consumo humano e animal. É o maior investimento público português com 2,5 mil milhões de euros a que acrescem 4 mil milhões privados. É obra! E sem Alqueva todo o sul do país estaria hoje ainda mais desertificado. O Alqueva é uma reserva de água fundamental para a nossa sobrevivência coletiva.
Foi a mais importante obra em 50 anos. Pensada nos anos 60, a barragem foi uma miragem simbolizada a certa altura por um muro onde se lia “construam-me porra!”. Cavaco viu, ouviu e decidiu. A decisão ocorreu num Conselho de Ministros realizado em 1993 e para não mais parou. Rezam relatos da época que, à primeira, não passou porque alguns ministros hesitaram. Alegavam, com razão, que a obra não reverteria a favor do Governo, a não ser muito mais lá para a frente. Ou seja, valia eleitoralmente zero. Cavaco pediu estudos complementares sobre o efeito futuro para o país. O caso voltou à mesa.
E aí decidiu avançar com algo que nunca mais parou e que tem de ser complementada ainda hoje. Ora, até nisso perdeu-se dinâmica, por via de uma lentidão culposa. Aníbal Cavaco Silva bem merecia que, mesmo contra a sua vontade, se desse o seu nome à barragem. Foi ele que mandou fazer as infraestruturas fundamentais. Mas foi Guterres que, sem culpa, foi lembrado vinte anos depois do início enchimento. É assim a memória dos homens, dos povos e dos média. Muitos são lembrados sem que se saiba porquê (veja-se a toponímia nacional). Outros são sistematicamente arquivados. Às vezes, a obra sobrepõe-se lentamente à luta política e ao esquecimento sectário. Cavaco Silva viveu e governou em democracia com resultados desenvolvimentistas únicos em dezenas e dezenas de anos. O tempo ainda não lhe rendeu toda a justiça. Mas há de fazê-lo.
2. Graças ao que foi anunciado como um suposto alerta lançado pelo FBI (que provavelmente não ocorreu) e a uma intervenção de vigilância da PJ, foi possível impedir o que, possivelmente, viria a ser um atentado terrorista praticado por um jovem estudante fanatizado e pouco ilustrado em ciberterrorismo por propósitos (psicológicos ou políticos, logo se verá) de uma mente perturbada. Tudo se soube através de um comunicado da judiciária que desencadeou um inusitado alarme social. Uma decisão dessas contraria práticas correntes em que só muito tempo depois dos factos e da anulação dos perigos é que as notícias são dadas.
Há muitas guerras de vaidades na investigação criminal entre, por exemplo, Ministério Público e PJ e entre esta e outras polícias, o que pode estar na origem deste estardalhaço. Foi um mau sinal. Neste caso, objetivamente, interessam três conclusões: a primeira, e vital, é que a chacina de estudantes da faculdade de ciências onde o autor frustrado estudava não aconteceu; a segunda, que pode haver na web interceções (fruto de investigação ou de acaso) que evitam ataques e salvam vidas; a terceira, que os média audiovisuais são facilmente manipulados e não sabem gerir situações deste género, embarcando (consciente ou inconscientemente) na tentativa desenfreada de ganhar audiências. Nunca tanta hora foi gasta com um ataque inexistente. Houve um empolamento lamentável dos factos.
O que seria se o ataque tivesse ocorrido mesmo e tivesse tido consequências graves? Há uma irresponsabilidade absurda nisto, tanto mais que se sabe que os atentados e certos tipos de violência podem arrastar seguidores. A medicina e a justiça dirão o grau de culpabilidade do jovem estudante. Mas dificilmente alguém fará a avaliação do comportamento das autoridades e dos média audiovisuais que se lançaram de imediato numa corrida louca à não notícia com uma mão cheia de diretos acerca de pontos onde nada acontecia e uma catadupa de especialistas que falaram sobre factos que não conheciam de todo. E assim se ganhou share, ranking e publicidade. De sério nada trouxe este histerismo coletivo! Está tudo louco, ou quê?
3. Aguardamos pelo Governo e pelas primeiras definições internas no PSD. No primeiro caso, será o que António Costa decidir. Há oito dias, entrou-se aqui na futurologia do momento e não vale a pena voltar. No segundo, serão mais uma vez os dirigentes e militantes do PSD a decidir. Aparentemente, há três nomes fortes em processo de ponderação: Montenegro, Pinto Luz e Rangel, menos provável. Não há sinais de que Jorge Moreira da Silva, outro potencial líder, esteja agora mais disponível do que esteve há meses.
Em contrapartida, apareceu inopinadamente Ribau Esteves a dizer que está a ponderar uma candidatura. Muitos pensaram que era uma “fake new”, mas não é! De todos, Montenegro é o que tem, nesta altura, mais capacidade de gerar consensos internos para reestruturar e relançar o partido, dando-lhe um tempo de reflexão sem deixar as grandes lutas.
Nenhum dos putativos líderes tem assento parlamentar, o que é naturalmente um handicap. A luta política do futuro presidente do PSD terá, em grande medida, de ser feita cá fora, como, há anos, sucedeu com Marcelo que trouxe para agenda questões como a regionalização, a qual conseguiu travar, através de um referendo que ganhou. Esse cenário pode voltar a repetir-se, se efetivamente o futuro líder e o PSD forem contra a regionalização, ao contrário do que sucede com Rui Rio e boa parte dos seus homens de confiança.
4. As legislativas em números simples. Estavam recenseados 10.829.337 eleitores. Só votaram 5.647.496, ou seja, 51,19%. Dos votos que entraram nas urnas e foram validados, houve 189.365 que não serviram para eleger nenhum deputado de partidos em que os eleitores depositavam confiança. A esses se juntam 65.094 brancos e 54.299 nulos (ou seja, 119.393) que também não elegeram ninguém. Há ainda sobras de votos em partidos que são desperdiçados porque não chegam para atribuir mandatos. A tudo isto se juntou uma confusão que anulou cerca de 157 mil sufrágios de emigrantes, contabilizando-se apenas à volta de 15 mil.
Lamentavelmente o ministério da administração interna não se fez representar nas reuniões prévias sobre o método de apuramento, nas quais PS e PSD decidiram a forma de contagem, através de funcionários manifestamente impreparados. Contas feitas, o PS ganhou com 2.343.866 votos. Conseguiu uma maioria absoluta virtual, embora politicamente indiscutível. Factos são factos. Mas há qualquer coisa que tem de ser revista quando 671 mil votos não serviram para determinar mandatos.
5. À hora de mandar esta crónica sabia-se que o Tribunal Constitucional (TC) deu razão a queixas apresentadas por alguns partidos sobre irregularidades ocorridas em mesas de apuramento do círculo da Europa, determinando a repetição do ato eleitoral. Obviamente a decisão do TC atrasa a instalação da nova Assembleia da República, a posse do governo e a aprovação do orçamento. É um facto inédito em 50 anos. Mostra que gerimos mal a democracia e que a incompetência reina na política.