A clareza do jogo baralhado


O Presidente passou de assistente, no sentido de apoiar, a assistente, como espetador, com um poder de intervenção mais próximo de um caniche do que de um rottweiler.


A maioria absoluta nunca pode ser um fim em si mesma, devendo ser caldeada entre a resposta ao presente e uma visão estratégica para o país, muito além da transição energética, da transição digital ou do combate às alterações climáticas, que são impulsos importantes, mas de contenção, podendo ser ainda mais penalizadores da realidade se forem assumidos com fundamentalismo e sem compensações para os afetados.

Portugal é o que é. Não vale a pena fustigar os eleitores porque não conferiram os resultados eleitorais pretendidos pelo partido A ou B, nem desculparem-se com circunstâncias que foram geradas pelos protagonistas da política portuguesa.

Marcelo Rebelo de Sousa configurou a presidência a um exercício de afago aos portugueses e ao Governo, não ponderou o nível de fermento que tinha colocado na equação das eleições antecipadas e terá um resto de mandato com muito menos condições de influir nas opções da maioria absoluta. O Presidente passou de assistente, no sentido de apoiar, a assistente, como espetador, com um poder de intervenção mais próximo de um caniche do que de um rottweiler.

Rui Rio e o PSD não conseguiram tranquilizar quem decide sobre a bondade de uma alternativa política que apresenta como proposta o cautelismo servido em termos que suscitam dúvidas e receios sobre pilares fundamentais da vida das pessoas. Apresentou-se para o incerto quando o poder propunha o certo, poucochinho, mas certo. O protagonista da alternativa não apresentava risco maior, mas a proposta política sim. Nem sequer conseguiu atrair o voto útil à direita, depois de anos de oposição insuficiente, quanto mais atrair o eleitorado de centro, já que à esquerda o PS construiu a absorção eleitoral do BE e do PCP.

Bloco e PCP, apesar dos sinais emanados das eleições autárquicas e das últimas legislativas, foram vítimas de si próprios e da narrativa da distribuição ilimitada de recursos que não existem. De pouco ou nada vale responsabilizar a bipolarização política subjacente à crise política que provocaram com o chumbo liminar do Orçamento do Estado. A verdade é que depois de terem sido suportes da governação, apesar de um pé na governação em Lisboa e outro fora dela no país, BE e PCP fugiram à convergência, mas agora temem a ausência de diálogo num quadro de maioria absoluta. Caíram em todos os engodos que a governação criou, pagaram por isso agora e no futuro.

O PAN é o exemplo maior da desproporção entre a realidade política e a vida concreta das pessoas e dos territórios. A partir de uma representação parlamentar conquistada em meio urbano quis impor ao país uma visão, perspetivas de gosto e um proibicionismo sem limites. Cavalgou com populismo situações sem ter em conta a realidade e o contexto. A resposta era sempre proibir, impor, amarfanhar quem pensa e age de forma diferente. É vítima do seu radicalismo insano, que coloca os seres humanos no mesmo patamar dos restantes seres vivos, e das contradições da sua liderança entre o discurso e as atividades no Mundo Rural que tanto abocanha.

O Chega e a Iniciativa Liberal são, sobretudo, êxitos das circunstâncias, com caminhos de futuro diferentes. O partido de André Ventura cresceu à boleia das oportunidades geradas pela governação e da fragilidade da oposição do PSD. PS e PSD são responsáveis pelo enchimento do balão, que só não estará na força máxima se estes não o quiserem. O Chega vive da oportunidade e do populismo. Se deixarem de existir fundadas razões de queixa no Interior, no Mundo Rural, nas Forças de Segurança, nos Bombeiros e nos Militares, conjugada com evidência do que são os parlamentares eleitos, o fenómeno reconduz-se à sua expressão residual. Em sentido diverso, até pela adesão jovem e de quadros qualificados, mas também pelo perfil dos eleitos, a Iniciativa Liberal pode consolidar o seu posicionamento, enquanto o PSD procura novos protagonistas e caminhos, cujo foco não estará no Parlamento.

O CDS, de forma trágica, acompanha um certo caminho já percorrido em Espanha pelo Partido Popular, que durante anos conseguiu acolher as diversas expressões da direita, até que o deixou de fazer e surgiram outras realidades partidárias. A diferença é que, em Espanha, a casa nunca ficou totalmente entregue aos miúdos.

A maioria absoluta, de que ninguém estava à espera, às 17 horas ainda se ponderavam reuniões para a configuração de soluções de governo com apoio à esquerda, transportando a tal clareza do jogo baralhado no Partido Socialista e no perfil da governação.

Sob o ponto de vista interno, a maioria absoluta baralha as contas da sucessão. António Costa, que estava condicionado pelo peso interno de Pedro Nuno Santos, deixou de o estar, podendo-se dar ao luxo de elevar a protagonistas maiores alternativas ou até de posicionar alguém que possa prosseguir o mandato da maioria absoluta, se, entretanto, surgir alguma oportunidade no quadro europeu ou internacional. Neste contexto, mantendo-se a pasta atribuída ao protagonista a quem António Costa já passou a bola, noutras campanhas eleitorais, com a pesarosa TAP e outros encargos, resta saber qual o momento da demarcação política, sobretudo de o perfil da governação for recentrada, sem as derivas mais radicalizadas e os ziguezagues do passado.

Sob o ponto de vista da governação, a maioria absoluta alarga o leque de recrutamento e a atratividade em fazer parte do governo; o grupo parlamentar não será problema maior, embora a margem seja por poucos, o que obriga a grande monitorização dos egos e das ações dos eleitos; o diálogo político pode ser exercitado sendo as potenciais mordidelas ao nível dos calcanhares, quase sem relevância na mobilidade governativa; e o Presidente da República estará, mais do que nunca, no domínio do simbólico.

Mas, a grande questão é saber se a governação se posiciona com uma visão integrada, equilibrada e com ambição transformadora da realidade do país, mais ao centro e com senso, ou se prosseguirá algumas guinadas, truques e cedências a visões urbanas, parciais e extremistas das anteriores soluções governativas orientadas para a manutenção do poder.

Em suma, a maioria absoluta é para um governo de turno ou para uma governação de projeto, com visão e ambição, no limiar dos 50 anos de Democracia em Portugal.

NOTAS FINAIS
INSANIDADE. O processo do lítio tem sido conduzido com os pés. A atividade mineira em Portugal tem um lastro histórico negativo, que se projeta nos receios reais ou aditivados das comunidades. Avançar para um processo desta dimensão, com a relevância estratégica que tem, sem procurar inverter as perceções locais e sem ter claras as contrapartidas reais para a vida das pessoas e dos territórios é uma irresponsabilidade. Ganha o preconceito, em alguns casos fundado, perde o país.
CONFORMISMO ELEITORAL. A maioria absoluta e a melhoria da participação eleitoral retiraram do radar o problema da abstenção. Ter 3.899.685 cidadãos, 42,04% de eleitores que não participam nas escolhas do país, é e continuará a ser grave. Bem sei que o recenseamento eleitoral e os cadernos eleitorais são critério para muita coisa, mas têm de ser fiáveis, não configuráveis por egos ou interesses locais.
Escreve à segunda-feira

A clareza do jogo baralhado


O Presidente passou de assistente, no sentido de apoiar, a assistente, como espetador, com um poder de intervenção mais próximo de um caniche do que de um rottweiler.


A maioria absoluta nunca pode ser um fim em si mesma, devendo ser caldeada entre a resposta ao presente e uma visão estratégica para o país, muito além da transição energética, da transição digital ou do combate às alterações climáticas, que são impulsos importantes, mas de contenção, podendo ser ainda mais penalizadores da realidade se forem assumidos com fundamentalismo e sem compensações para os afetados.

Portugal é o que é. Não vale a pena fustigar os eleitores porque não conferiram os resultados eleitorais pretendidos pelo partido A ou B, nem desculparem-se com circunstâncias que foram geradas pelos protagonistas da política portuguesa.

Marcelo Rebelo de Sousa configurou a presidência a um exercício de afago aos portugueses e ao Governo, não ponderou o nível de fermento que tinha colocado na equação das eleições antecipadas e terá um resto de mandato com muito menos condições de influir nas opções da maioria absoluta. O Presidente passou de assistente, no sentido de apoiar, a assistente, como espetador, com um poder de intervenção mais próximo de um caniche do que de um rottweiler.

Rui Rio e o PSD não conseguiram tranquilizar quem decide sobre a bondade de uma alternativa política que apresenta como proposta o cautelismo servido em termos que suscitam dúvidas e receios sobre pilares fundamentais da vida das pessoas. Apresentou-se para o incerto quando o poder propunha o certo, poucochinho, mas certo. O protagonista da alternativa não apresentava risco maior, mas a proposta política sim. Nem sequer conseguiu atrair o voto útil à direita, depois de anos de oposição insuficiente, quanto mais atrair o eleitorado de centro, já que à esquerda o PS construiu a absorção eleitoral do BE e do PCP.

Bloco e PCP, apesar dos sinais emanados das eleições autárquicas e das últimas legislativas, foram vítimas de si próprios e da narrativa da distribuição ilimitada de recursos que não existem. De pouco ou nada vale responsabilizar a bipolarização política subjacente à crise política que provocaram com o chumbo liminar do Orçamento do Estado. A verdade é que depois de terem sido suportes da governação, apesar de um pé na governação em Lisboa e outro fora dela no país, BE e PCP fugiram à convergência, mas agora temem a ausência de diálogo num quadro de maioria absoluta. Caíram em todos os engodos que a governação criou, pagaram por isso agora e no futuro.

O PAN é o exemplo maior da desproporção entre a realidade política e a vida concreta das pessoas e dos territórios. A partir de uma representação parlamentar conquistada em meio urbano quis impor ao país uma visão, perspetivas de gosto e um proibicionismo sem limites. Cavalgou com populismo situações sem ter em conta a realidade e o contexto. A resposta era sempre proibir, impor, amarfanhar quem pensa e age de forma diferente. É vítima do seu radicalismo insano, que coloca os seres humanos no mesmo patamar dos restantes seres vivos, e das contradições da sua liderança entre o discurso e as atividades no Mundo Rural que tanto abocanha.

O Chega e a Iniciativa Liberal são, sobretudo, êxitos das circunstâncias, com caminhos de futuro diferentes. O partido de André Ventura cresceu à boleia das oportunidades geradas pela governação e da fragilidade da oposição do PSD. PS e PSD são responsáveis pelo enchimento do balão, que só não estará na força máxima se estes não o quiserem. O Chega vive da oportunidade e do populismo. Se deixarem de existir fundadas razões de queixa no Interior, no Mundo Rural, nas Forças de Segurança, nos Bombeiros e nos Militares, conjugada com evidência do que são os parlamentares eleitos, o fenómeno reconduz-se à sua expressão residual. Em sentido diverso, até pela adesão jovem e de quadros qualificados, mas também pelo perfil dos eleitos, a Iniciativa Liberal pode consolidar o seu posicionamento, enquanto o PSD procura novos protagonistas e caminhos, cujo foco não estará no Parlamento.

O CDS, de forma trágica, acompanha um certo caminho já percorrido em Espanha pelo Partido Popular, que durante anos conseguiu acolher as diversas expressões da direita, até que o deixou de fazer e surgiram outras realidades partidárias. A diferença é que, em Espanha, a casa nunca ficou totalmente entregue aos miúdos.

A maioria absoluta, de que ninguém estava à espera, às 17 horas ainda se ponderavam reuniões para a configuração de soluções de governo com apoio à esquerda, transportando a tal clareza do jogo baralhado no Partido Socialista e no perfil da governação.

Sob o ponto de vista interno, a maioria absoluta baralha as contas da sucessão. António Costa, que estava condicionado pelo peso interno de Pedro Nuno Santos, deixou de o estar, podendo-se dar ao luxo de elevar a protagonistas maiores alternativas ou até de posicionar alguém que possa prosseguir o mandato da maioria absoluta, se, entretanto, surgir alguma oportunidade no quadro europeu ou internacional. Neste contexto, mantendo-se a pasta atribuída ao protagonista a quem António Costa já passou a bola, noutras campanhas eleitorais, com a pesarosa TAP e outros encargos, resta saber qual o momento da demarcação política, sobretudo de o perfil da governação for recentrada, sem as derivas mais radicalizadas e os ziguezagues do passado.

Sob o ponto de vista da governação, a maioria absoluta alarga o leque de recrutamento e a atratividade em fazer parte do governo; o grupo parlamentar não será problema maior, embora a margem seja por poucos, o que obriga a grande monitorização dos egos e das ações dos eleitos; o diálogo político pode ser exercitado sendo as potenciais mordidelas ao nível dos calcanhares, quase sem relevância na mobilidade governativa; e o Presidente da República estará, mais do que nunca, no domínio do simbólico.

Mas, a grande questão é saber se a governação se posiciona com uma visão integrada, equilibrada e com ambição transformadora da realidade do país, mais ao centro e com senso, ou se prosseguirá algumas guinadas, truques e cedências a visões urbanas, parciais e extremistas das anteriores soluções governativas orientadas para a manutenção do poder.

Em suma, a maioria absoluta é para um governo de turno ou para uma governação de projeto, com visão e ambição, no limiar dos 50 anos de Democracia em Portugal.

NOTAS FINAIS
INSANIDADE. O processo do lítio tem sido conduzido com os pés. A atividade mineira em Portugal tem um lastro histórico negativo, que se projeta nos receios reais ou aditivados das comunidades. Avançar para um processo desta dimensão, com a relevância estratégica que tem, sem procurar inverter as perceções locais e sem ter claras as contrapartidas reais para a vida das pessoas e dos territórios é uma irresponsabilidade. Ganha o preconceito, em alguns casos fundado, perde o país.
CONFORMISMO ELEITORAL. A maioria absoluta e a melhoria da participação eleitoral retiraram do radar o problema da abstenção. Ter 3.899.685 cidadãos, 42,04% de eleitores que não participam nas escolhas do país, é e continuará a ser grave. Bem sei que o recenseamento eleitoral e os cadernos eleitorais são critério para muita coisa, mas têm de ser fiáveis, não configuráveis por egos ou interesses locais.
Escreve à segunda-feira