Anne Frank. A traição judia que destruiu a família Frank

Anne Frank. A traição judia que destruiu a família Frank


Talvez esta seja uma das grandes “descobertas do século”, já que há 77 anos que se procura o responsável pela denúncia do Anexo Secreto onde a família Frank se escondeu durante dois anos, evitando a deportação para os campos de concentração da Alemanha nazi. Agora, um livro conta-nos a parte da história que nos faltava.


Perguntamo-nos o que levaria um grupo de investigadores a analisar “quilómetros” de arquivos de todo o mundo; visualizarem horas de material em vídeo e áudio; estudarem o padrão da prisão holandesa de 1943 e 1944; lerem todos os relatórios diários do século XX da polícia, analisarem todos os moradores do bairro de Prinsengracht, quantos colaboradores viviam nessa área e quem lá estava no dia da detenção; recolher todas as declarações sobre a traição que as testemunhas fizeram ao longo dos anos, em todos os lugares do mundo, há mais de seis anos?

A verdade é que já se passaram quase 80 anos desde que Anne Frank, um dos rostos mais conhecidos do Holocausto, juntamente com a sua família e amigos, foi traída e, de seguida, deportada para o campo de concentração de Westerbork, Países Baixos, que, naquela época, já havia servido como destino final para cerca de 100 mil judeus, principalmente neerlandeses e alemães.

Para quem conhece a sua história, esta pode ter sido, até hoje, uma pergunta que invade o pensamento na hora de deitar. Talvez pela sua forma prematuramente madura de assistir aos acontecimentos, pela maneira poética de ver e sentir os outros, a forma como, através das palavras, nos coloca em sítios e nos faz identificarmo-nos sempre com qualquer coisa, apesar de jovem. O medo, a interrogação, o crescimento, e a dor disfarçada de esperança. Anne presenteou-nos com o seu diário, publicado em 1947 pelo seu pai Otto Frank, o único sobrevivente das oito pessoas que, durante dois anos e 30 dias, se esconderam juntas, no chamado Anexo Secreto que hoje é uma das principais atrações de Amesterdão.   

A investigação Quem denunciou aos nazis o seu esconderijo? Uma equipa de investigação diz ter encontrado o responsável e alega ainda que Otto Frank o conhecia. Mas como? The Betrayal of Anne Frank: A Cold Case Investigation, o livro da autora canadiana, que assina 15 outros títulos, entre eles a biografia A Filha de Estaline (Temas e Debates) – Rosemary Sullivan – lançado mundialmente ontem, acompanha a investigação que encontrou respostas, do começo ao fim. “Com atenção ao detalhe, entusiasmo e sem moralismos”, tal como escreve Alexandra Jacobs, no The New York Times, especialista no tratamento de temas ligados à Segunda Guerra Mundial.

Depois de seis anos a procurar respostas para este mistério, uma equipa de cerca de 20 historiadores, criminalistas, cientistas forenses, analistas de dados e ainda um rabi – chefe religioso de uma comunidade judaica – liderada por um agente norte-americano do FBI já reformado mas muito “resiliente” – Vincent Pankoke – chegou ao nome do alegado “culpado”: Arnold van den Bergh, um rico notário judeu. 

Recorrendo às novas tecnologias, foi criada uma complexa base de dados com listas tanto de colaboradores como de informadores dos nazis, registos da polícia e outros documentos históricos, bem como os resultados de investigações anteriores. Essa informação reunida foi cruzada com um mapa da cidade em que se assinalou a localização de vários possíveis suspeitos, averiguando-se, em seguida, se conheciam o esconderijo, se tinham algum motivo para denunciar os Frank e se tiveram oportunidade de o fazer.

De acordo com o site da editora Harper Collins, a obra dá a conhecer ao leitor a equipa de investigação, mostra como viveram durante dois anos aquelas oito pessoas no anexo e traça ainda o perfil de alguns dos suspeitos identificados ao longo dos anos, ao mesmo tempo que faz um retrato de Amesterdão durante a Segunda Guerra Mundial. 

O traidor Arnold van den Bergh era membro do Conselho Judaico em Amesterdão e provavelmente teria uma lista de esconderijos que deve ter passado para as mãos do Sicherheitsdienst, Serviço de Segurança Alemã (SS), na altura, em troca da proteção da sua família.

No meio de toda a pesquisa, a equipa encontrou uma declaração de testemunha que afirmava que o Conselho Judaico tinha centenas de endereços de pessoas escondidas. O Conselho, estabelecido em 1941 por ordem das forças de ocupação para gerir a comunidade judaica, aparentemente gozava de tanta confiança dentro da sua própria comunidade que, por exemplo, os prisioneiros do campo de concentração de Westerbork enviavam para ele as cartas destinadas aos membros da família que se encontravam escondidos.

Nessa época, Bergh era um notário de direito civil muito bem sucedido que, pela posição no seu trabalho, tinha ligações dentro da hierarquia nazi e, por isso, durante dois anos, conseguiu tanto a sua proteção como a da sua família. Segundo um dos líderes da investigação, Van Twisk, em declarações ao jornal holandês de Volkskrant, no decorrer do ano de 1944, essa proteção acabou por cair, e, provavelmente, Bergh entrou em “pânico”.  

Em janeiro de 2019, Pankoke teve acesso à investigação policial de 55 anos sobre o filho de um ex-detetive holandês, Van Helden. O arquivo sobre a mesa continha uma cópia de um papel na qual aparecia o nome do homem que revelou o esconderijo de oito pessoas no Prinsengracht de Amesterdão durante a Segunda Guerra Mundial. O conteúdo da nota (ainda não se sabe quem a escreveu) que chegou a ser deixada também no correio de Otto Frank, deve ter inicialmente parecido completamente inacreditável para este, já que Bergh era bastante respeitado na comunidade judaica. Em 1963, o patriarca da família mencionou o papel à polícia e até investigou o caso num notário. Contudo, nada aconteceu. Quando foi confrontado com o nome do notário judeu, Otto Frank disse ao detetive Helden que não o conhecia, o detetive acabou por deixá-lo em paz e nem incluiu a cópia que fez do documento no seu arquivo oficial. 

A proteção de Otto Mas é bizarro pensar a quantidade de anos em busca de um nome, quando, ao que parece, Otto Frank o conhecia. Por que razão deixou o assunto de lado, já que este foi motivo da destruição e morte de todos os elementos da sua família? Segundo a investigação, este teve vários motivos para isso: não querer sobrecarregar e responsabilizar os filhos do notário com o erro que o seu pai cometeu; temer as reações extremas que, provavelmente a revelação provocaria e ainda, a consciência de que – provar que a família não foi traída por um nazi, mas sim por um respeitado judeu – traria e despertaria ainda mais sentimentos antissemitas. “Provavelmente há outra razão pela qual Otto manteve a boca fechada toda a sua vida”, acrescentou Twisk.

“O notário não era uma má pessoa, foi confrontado com um dilema horrível e Frank deve ter percebido isso. Como teríamos agido? É uma pergunta que todos os membros da equipa se perguntam com frequência. Vivemos em liberdade, não podemos fazer nenhum julgamento moral sobre isso”, sublinha.

“Mas este é o cenário mais provável. O único cenário em que o traidor tinha motivo, conhecimento e oportunidade, os três pilares de qualquer investigação criminal. Também o único cenário que pode explicar muitos eventos e testemunhos misteriosos que a equipa encontra”, explica Pankoke.

Além disso, a equipa descobriu que Miep Gies – uma das ajudantes das pessoas escondidas no Anexo Secreto, que salvou as folhas soltas do diário da jovem Anne, depois desta ter sido descoberta e que as deu a Otto – deu a entender várias vezes durante toda a sua vida que sabia quem era o traidor, mas não podia dizer nada sobre isso. Numa palestra que deu em 1994, Gies chegou a afirmar ao público americano que o traidor já havia morrido quando uma nova investigação policial foi aberta em 1963.

Karl Silberbauer, o oficial austríaco das SS responsável pelo ataque ao Anexo Secreto no dia 4 de agosto de 1944, acabou por retornar a Viena após a guerra e começou a trabalhar como polícia. Foi preso em 1963 depois do “caçador de nazis” Simon Wiesenthal o ter localizado. Contudo, a sua acusação acabou por ser interrompida, em parte devido a uma declaração de Otto Frank, que afirmou que este se “comportou corretamente durante a detenção”. 

Guardado por Miep Gies e publicado em 1947 pelo pai de Anne, O Diário de Anne Frank está hoje traduzido em 60 línguas e já terá sido lido por mais de 30 milhões de pessoas, tendo-se transformado num dos mais tocantes testemunhos do Holocausto. Depois de descobertas pelas autoridades, a jovem e a família foram deportadas para campos de concentração. Anne morreu com tifo em 1945, em Bergen-Belsen, poucos dias depois da irmã, Margot. Tinha 15 anos.

Quem escreveu a nota com o nome do notário judeu? E onde está o original? Ainda há muitas perguntas às quais a equipa de investigação não conseguiu responder. Van Twisk espera que novas informações cheguem após a publicação do livro. Até porque, “se o notário traiu mais endereços, é bem possível que notas semelhantes tenham sido enviadas para outros antigos esconderijos após a libertação”, explica. Otto Frank foi provavelmente o único que regressou ao antigo prédio, portanto, o único a ver tal bilhete.

A equipa afirma estar na mesma batalha pela qual Otto Frank provavelmente passou: tornar público ou não? “É sobre fatos históricos e é muito importante que eles venham à tona. Mas há uma mensagem, uma advertência muito importante a acrescentar às conclusões… Foram os nazis os responsáveis ​​pela morte das pessoas escondidas, não aqueles que deram os seus endereços”. Por sua vez, Pieter van Twisk, outro dos líderes da pesquisa, defende que “é importante que nos lembremos que, quando perdemos os nossos valores democráticos, as pessoas colocam-se umas contra as outras. Atualmente, precisamos de estar muito mais conscientes disso”, remata.