Agora que os dias nascem de sobrolho carregado, as nuvens multiplicando-se em ondas como se o mar estivesse ao contrário, Lisboa ganha aquela tonalidade triste da solidão. Ou talvez Wagner tivesse razão quando escreveu: “A tristeza não está nas coisas; está em nós”.
Pela madrugada o Bairro Alto está vazio, restamos o grupo fraterno, uma luz bruxuleante lutando contra a escuridão, o Bernardo Trindade, o Nuno Miguel Guedes, o Horatiu, o Nilesh (sim, e o Cotrim também), as conversas multiplicadas à mesa do canto esquerdo do Calcutá, que é a nossa mesa de Inverno. Somos muitos, sendo poucos.
Muitos e persistentes, não virando nunca a cara à celebração da amizade. Por isso passam por nós, ao sabor da música que o Hiren vai mudando sem deixar que as canções cheguem ao fim, os mortos que também vão a nosso lado, como dizia o José Gomes Ferreira na música de Lopes Graça: “Aqueles que se percam no caminho/Que importa? Chegarão no nosso brado/Porque nenhum de nós anda sózinho/E até mortos vão a nosso lado”. Sim, eu si que vão.
Eu sei que o meu profundamente irmão Paulo Pimenta, o Gelateiro, que cada vez mais falta me faz à medida que os anos se empilham sobre a data da sua morte, num dia tão escuro que as gotas de chuva pareciam feitas de alcatrão, caminha a meu lado, como caminhámos sempre pelas noites infinitas de Lisboa, noites que eram inconfundíveis amantes da alegria e da liberdade. Não, não foi daqueles que se perdeu pelo caminho.
Apenas decidiu continuar connosco de uma forma diferente, coração bom que tinha sempre algo para dar nem que fosse a grandeza alacre do seu sorriso ou da sua gargalhada inimitável. Ele está aqui, todas as noites. morcego como é e como eu sou, alérgico às manhãs que são, sobretudo, o momento certo para se fecharem as gelosias. Não, não ficaste para trás. ò companheiro. Eis-te aqui em cada segundo que vale por mil eternidades. E, unidos como os dedos da mão, havemos de chegar ao fim da estrada…