Mãos de Ferro

Mãos de Ferro


Para o público leitor europeu, pouco ou nada familiarizado com essa manifestação cultural tão específica, levada de cá para lá, de Portugal para o Brasil, onde foi sendo reelaborada, adquirindo um perfil próprio, esta característica de André Diniz, simultaneamente tão brasileira e tão pessoal, traz um frescor inusitado.


André Diniz é um brasileiríssimo autor de BD, com tudo o que isso tem de bom – quadrinhos no Brasil é mesmo outra história… –, a residir em Portugal já há alguns anos. Dono de um traço único, uma visita à Lambiek (www.lambiek.net – esplêndido dicionário enciclopédico de BD online) –, lembra o óbvio ululante, mas que ainda não nos ocorrera: a influência da xilogravura no seu trabalho, técnica muito utilizada na ilustração da literatura de cordel no nordeste brasileiro, que o talento do autor naturalmente pessoaliza e enriquece. Para o público leitor europeu, pouco ou nada familiarizado com essa manifestação cultural tão específica, levada de cá para lá, de Portugal para o Brasil, onde foi sendo reelaborada, adquirindo um perfil próprio, esta característica de André Diniz, simultaneamente tão brasileira e tão pessoal, traz um frescor inusitado. A isto, que já seria muito, acresce um evidente estro narrativo transbordante, um comprazimento em contar história e expor situações.

É o que acontece com o livro de hoje, a edição portuguesa de A Revolta da Vacina, que, podendo ser lida como uma piscadela de olhos aos dias que correm – que também é –, é também muito mais que isso. Em 1904, o Rio de Janeiro sofria os efeitos de uma epidemia de varíola, com medidas tomadas pelo poder de compulsão vacinal, sob pena de multas e penalizações várias, originando motins populares na então capital federal, com a qual o governo lidou com mão de ferro – nada que ver, por enquanto, com o arbítrio deixado à liberdade dos cidadãos a que assistimos por quase toda a parte com a covid-19; uma liberdade, de resto, muitíssimo questionável em certos casos, sempre que interfere com a liberdade dos outros, tema que para aqui não é chamado, também por falta de espaço. 

A Revolta da Vacina ultrapassa, porém, as peripécias em torno da questão sanitária, servindo como pano de fundo para a narrativa principal: o percurso de Zelito, jovem adulto de Fortaleza que se desloca para o Rio, sonhando com um trabalho como desenhador de imprensa, contra a vontade do pai, um comerciante rígido que não crê que tal profissão tenha futuro; ainda para mais, o irmão, preferido pelo progenitor, filho modelo de curso superior tirado e já noivo, com um plano de vida promissor, acabara de morrer. Zelito, que passa a arcar com a expectativas de filho único relativamente a uns pais pouco confiantes, sabe o que quer, mas é também uma pessoa atenciosa, lamentando essa divergência que pode hipotecar as suas aspirações e a vida futura. Acertará com pai um período de seis meses no Rio, para provar o que vale, voltando ao negócio familiar em caso de falhanço. E é assim que vamos assistir à difícil adaptação do protagonista em a busca de trabalho e ao nascer de uma relação que parecia promissora, numa cidade em tumulto epidémico, mas também perturbada por um amplo plano de renovação urbanística na faixa costeira, que atrapalha a vida de todas. E neste contexto se dará a metamorfose do homem em fera.

BDTECA

Abecedário 
U, de Urtigão / Hard Haid Moe (Dick Kinney e Al Hubbard, 1964)
. De longa barba, espingarda à mão na companhia do cão “Cão”, Urtigão é um parolo das montanhas (Apalaches e Ozark), um hillbilly, como o nome indica, espécie de saloio violento e bronco que fez as delícias dos leitores dos “Patinhas”, quando interagia com os citadinos de Patópolis. Uma das raras personagens dos quadradinhos Disney que é verdadeiramente humana, e não um animal antropomorfizado. Tornou-se muito popular no Brasil e em Itália, trabalhado por autores locais. 

Evocação
João Paulo Cotrim
. Já tudo terá sido dito e escrito, em particular a propósito da BDteca de Lisboa, da LX Comics, o argumentista; mas fica aqui escrito o que não se encontrou em nenhum lado, também in memoriam do investigador a que tive o gosto (e o privilégio) de revelar algumas pepitas stuartinas, e que ele soube valorizar com a inteligência e cultura que lhe foram reconhecidas, nesse belíssimo Stuart – A Rua e o Riso, de que aqui se falou há uns meses, tão longe deste desfecho absurdo. E assim, numa coluna de um modesto leitor de banda desenhada, que fique registado. Como homenagem, a convicção de que o papel desempenhado por João Paulo Cotrim na afirmação da BD portuguesa equipara-o a figuras históricas como Adolfo Simões Müller, Vasco Granja ou Jorge Magalhães. Diferentes gerações, gostos e abordagens, e assim é natural e também desejável.