Apesar de ter deixado a presidência da Inditex em janeiro de 2011, Amancio Ortega, atualmente com 85 anos, desloca-se todos os dias à sede da Inditex, fixada no município de Arteixo, na província da Corunha, Galiza, e ainda detém uma participação maioritária de 89 mil milhões de euros, o que faz dele o homem mais rico do país. Mas há pelo menos uma década que uma grande interrogação pairava sobre o mais importante conglomerado de empresas têxteis espanholas do mundo: qual será o seu futuro quando o fundador se “afastar”?
Para o alívio de muitos, a pergunta acaba de ser respondida: o conselho de administração da Inditex anunciou esta semana que, a partir do dia 1 de abril, Marta, filha de Ortega, de 37 anos, assumirá a presidência do império da Zara. O contraste será, por isso, gritante, já que durante a sua liderança, o seu pai, que começou a trabalhar como empregado de balcão aos 13 anos, nunca deu uma entrevista, raramente usava os produtos da própria empresa e se recusava a ser fotografado.
O “LUGAR” DE MARTA Apesar de, até então, não ter ocupado nenhum cargo executivo no grupo, nem nenhuma posição oficialmente definida, Marta Ortega desempenha um importante papel no departamento criativo, sobretudo na parte visual e na gestão da imagem da Zara. Durante estes anos, as suas aparições em desfiles de moda, na Riviera francesa e italiana e nos casamentos da alta sociedade ofereceram-lhe os holofotes para publicações na ¡Hola! e imprensa cor-de-rosa.
Em Agosto, já a herdeira do império de moda espanhol havia dado uma entrevista ao Wall Street Journal (WSJ), quase que se revelou quase um presságio daquilo que viria a seguir. Ao diário americano, Marta lembrava a primeira semana em que começou a trabalhar na empresa – há 14 anos, quando acabou os estudos universitários, aceitou um cargo de assistente de vendas numa Zara na King’s Road, em Londres. “Na primeira semana pensei que não ia sobreviver”, recordou ao WSJ. “Mas depois desenvolve-se uma espécie de vício na loja. Algumas pessoas nunca querem sair. É o coração da empresa”, admitiu. Tal como o seu pai, todas as semanas visita lojas da marca, a “pedra basilar da cadeia”. “Estarei sempre onde a empresa mais precisa de mim”, declarou, como se fosse um “teaser” para o anúncio da sucessão. Talvez seja um resultado do império com alicerces semelhantes a autênticas rochas construído por Amancio Ortega que agora ganhará uma “lufada de ar fresco”, seguindo a linhagem familiar. Tal como o pai, o seu principal interesse é a coleção Zara Woman, que corresponde a quase 70% das vendas da Inditex.
Em jovem, Marta não sabia sequer que o seu pai era dono de tamanha empresa e foi uma amiga e colega do Ballet, que desvendou esse “mistério”, ao perguntar-lhe por que vestia sempre roupas da Zara. Ao questionar a mãe, Marta Ortega, que até aí só sabia que os pais viajavam muito e se dedicavam à moda, percebeu que a família era dona de um dos maiores e mais prósperos negócios têxteis do mundo. Atualmente, a “curiosa”, Tamara Sánchez, integra também a equipa, ocupando o cargo de chefe de departamento de malhas da Zara.
Foi também na adolescência que Marta se apaixonou pelo processo de criação de imagem, numa altura em que competia em provas de hipismo. Porém, “sempre soube que uma carreira como cavaleira profissional não estava nos planos”.
Nascida em Vigo, na Galiza, em 10 de janeiro de 1984, antes de se formar em negócios na European Business School de Londres, em 2007, Ortega frequentou um estabelecimento educacional religioso na Corunha e, em seguida, obteve a sua licenciatura na Suíça.
UMA “LUFADA DE AR FRESCO” A filha de Amancio Ortega substituirá Pablo Isla, que ocupava o cargo de presidente desde 2011 e que o manterá até 31 de março de 2022, data onde lhe passará o mandato. “Quero agradecer ao conselho e, muito especialmente, a Amancio Ortega, o apoio e a confiança depositada em mim durante todos estes anos. Acreditamos que é o momento de começar esta nova etapa com Marta Ortega como presidente”, declarou o ainda presidente no seu discurso à imprensa, no dia 30 de novembro, após o anúncio da nomeação e a sua “demissão”. “A Inditex é uma empresa mais sobre equipas do que sobre indivíduos”, acrescentou. Após liderar a empresa durante 17 anos, como CEO desde 2005 e presidente desde 2011, no que foi descrito como “um período muito frutuoso”, o executivo considera as mudanças “muito importantes”: “ A Marta está na empresa há 15 anos, tem promovido muitas iniciativas e conhece-a muito bem. Continuará a estar muito envolvida com o produto, supervisionando a oferta de moda da Zara”, disse o presidente sobre a sua futura sucessora.
A “demissão” de Isla surge num momento em que a transformação digital e as obrigações de sustentabilidade estão a estabelecer a agenda dos gigantes da moda rápida. “Sempre disse que dedicaria a minha vida a desenvolver o legado dos meus pais, olhando para o futuro, mas aprendendo do passado, e ao serviço da empresa, dos nossos acionistas e clientes, no lugar onde considerem que faço mais falta”, afirmou Marta Ortega ao WSJ. Na entrevista, a herdeira defende que a Zara é mais que uma empresa de fast fashion – apesar do seu modelo de resposta quase imediato às necessidades do consumidor – e deseja atenuar cada vez mais a linha que separa o vestuário de luxo e o das massas. “Penso que é importante construir pontes entre a alta-costura e a moda de rua, entre o passado e o presente, entre a tecnologia e a moda, entre a arte e a funcionalidade”, afirmou a sucessora que em 2018 supervisionou o lançamento da SRPLS, a linha premium da Zara, que consiste em coleções bianuais de peças de inspiração utilitária e streetwear, com preços entre os 80 e os 200 euros. “Não deveriam ser apenas algumas pessoas a ter acesso a moda de boa qualidade. Queremos que todos os nossos clientes tenham a oportunidade de desfrutar dela”, acrescentou, revelando ser fã de alta costura, mas possuir no seu armário maioritariamente peças da marca da “casa”. Isla acredita que “o papel de Marta tornar-se-á mais evidente quando a empresa crescer na próxima década no que diz respeito a assuntos relacionados com a sustentabilidade”. Contudo, a sucessora confessa ter desejos de se manter próxima do produto, assumindo que “foi sempre isso que o pai fez, não querendo assumir um papel formal na liderança”.
Durante a entrevista, Marta Ortega fez questão de falar várias vezes da estrutura “não hierárquica” de Zara, que cria “uma dinâmica entre todos os que fazem parte da empresa”. “Não se trata de uma pessoa fazer um bom trabalho. Somos uma equipa. Acho que o meu pai nunca foi o melhor em nada em particular, mas foi o melhor em encontrar a melhor pessoa para fazer cada coisa”, frisou. Pai e filha trabalham no mesmo escritório, numa sala ampla com mesas partilhadas junto ao departamento da Zara Woman, rejeitando ocupar um lugar num escritório privado na grande sede da Inditex.
“Penso que ficarmos na Corunha tem sido parte do sucesso da empresa. Dá-nos uma perspetiva diferente”, explicou. “Penso que temos a nossa própria identidade. E temos vindo a desenvolver novos produtos a partir do zero há muito tempo”. A verdade é que a rapidez de reação da marca também é um dos segredos do seu sucesso que a coloca na dianteira das suas concorrentes diretas — como a H&M e a Topshop. Contudo, a herdeira garante que esse fator retira a qualidade e brio do processo.
A CONTROVÉRSIA EM TORNO DA NOMEAÇÃO A sua nomeação como presidente do grupo fundado pelo pai parece que surge como a consolidação da entrega geracional num projeto familiar que tem vindo a ganhar poder nos últimos anos e com a sua progressiva mediatização e expansão das suas iniciativas e responsabilidades no seio da empresa galega. No entanto, os investidores não acolheram com tanto otimismo as mudanças organizacionais e as ações da empresa com a maior capitalização bolsista na bolsa espanhola caíram mais de 6% no dia do anúncio, apesar de este ano terem acumulado ganhos de 9,5%.
Muitos críticos acusam a empresa de ter colocado à frente do currículo necessário uma história familiar. Pablo Isla conseguiu que a capitalização de mercado da Inditex se multiplicasse por seis e tem sido aclamado pela Harvard Business Review como o chefe executivo de melhor desempenho do mundo. De acordo com o relatório anual de remuneração da Inditex à CNMV, o executivo deixará a Inditex com um plano de pensões no qual acumulou 9 milhões de euros, para além dos quase 2 milhões de ações (avaliadas em cerca de 55 milhões de euros) que detém desde a sua nomeação como presidente do grupo.
“É a história típica das empresas familiares espanholas – chega um momento em que a segunda geração, que se sentia pouco valorizada, se convence de que pode administrar o negócio melhor do que os profissionais”, afirmou ao mesmo jornal Lorenzo Bernaldo de Quirós, presidente do Freemarket, uma consultoria fixada em Madrid. A empresa rejeita qualquer acusação desse tipo, argumentando que a Inditex “será administrada mais de acordo com as linhas anglo-americanas, com um novo CEO a assumir a função executiva de liderança e seu comité de administração a ganhar mais poderes”.
Para liderar a nova fase da empresa, a Inditex olhou para fora das suas fileiras. Óscar García Maceiras, um advogado galego com uma extensa carreira no setor bancário e que aderiu à empresa há apenas alguns meses, é o novo CEO, substituindo um dos homens próximos de Isla, Carlos Crespo.
As origens humildes do império Amancio Ortega Gaona nasceu nas vésperas da Guerra Civil Espanhola, no dia 28 de março de 1936, na província de León. Filho de Amancio Ortega Rodrígues, ferroviário, e de Josefa Gaona Hernández, dona de casa, é o mais novo de quatro irmãos. A família mudou-se para Tolosa, quando este ainda era bebé, e depois acabou por se estabelecer na Corunha, onde Ortega vive até hoje. A família passava por dificuldades financeiras e quase não tinha dinheiro para comprar comida. Na biografia Así es Amancio Ortega, el hombre que creó Zara (Assim é Amancio Ortega, o homem que criou a Zara), da jornalista Covadonga O’Shea, o empresário conta que, aos 12 anos, foi a uma mercearia com a mãe e ouviu do funcionário: “Senhora Josefa, sinto muito, mas eu não posso mais vender-lhe fiado”. “Aquilo deixou-me arrasado”, revelou.
Em função disso, aos 12 anos de idade, o jovem Ortega resolveu largar os estudos e começou a trabalhar para um fabricante de camisas local, Gala, que ficava na cidade. Posteriormente, conseguiu um outro emprego na loja de confeções La Maja, na qual trabalhavam os seus irmãos Antonio e Josefa, e onde conheceu a sua primeira mulher, Rosalía Mera, vendedora.
Em 1963, ao lado do irmão, da irmã e da futura mulher, fundou a confeção GOA, nome formado pelas suas iniciais ao contrário nada (Gaona Ortega Amancio). Naquela época, funcionava numa garagem com pouco mais de 80 metros quadrados e focava-se na produção de roupões femininos, sempre nas cores azul e rosa. Ortega e Mera casaram-se em 1966 e tiveram dois filhos, Sandra e Marcos. Inicialmente, era ela que costurava as peças vendidas pela empresa familiar.
O negócio prosperou e em dez anos chegou a 500 funcionários. Em 1975, o empresário abriu a primeira loja de roupas Zara, inaugurada na Corunha. Inicialmente, Amancio queria que a marca se chamasse Zorba, no entanto já havia um café na região com o mesmo nome, o que fez o empresário mudar de ideias.
O nome Zara deveu-se a dois motivos: o primeiro era o facto de Zara ser um nome fácil de pronunciar em diversas línguas; o segundo foi Amancio precisar de fazer poucas modificações no letreiro que havia comprado para a Zorba – bastava retirar o “b” e comprar um novo “a”.
Em 1977, Ortega inaugurou duas fábricas em Arteixo para suprir as lojas Zara, enquanto a rede se espalhava pela Espanha. Em 1984, foi inaugurado um centro de distribuição de 10 mil metros quadrados no mesmo município e um ano depois era criado o grupo Inditex como uma forma de reunir as várias marcas de Amancio Ortega: Zara, Pull&Bear, Massimo Dutti, Bershka, Stradivarius, Oysho, Zara Home e Uterqüe. A internacionalização, porém, ainda demoraria. A primeira unidade no exterior foi inaugurada somente em 1988, no Porto, em Portugal. Pouco tempo depois foi a vez de Nova Iorque e Paris receberem as primeiras lojas Zara.
O homem que não gosta de ser reconhecido Antes da criação da empresa, já Ortega e Mera se haviam separado, após o empresário ter uma filha fora do casamento, Marta, que nasceu fruto de um relacionamento com Flora Pérez, então funcionária da Zara, hoje a sua segunda mulher. Apesar do caso extraconjugal e do divórcio, Ortega é descrito como um homem discreto, avesso a entrevistas e pouco dado a extravagâncias. O empresário é tão discreto que, em 1998, o Diário de Notícias chegou a colocar a sua existência em dúvida. No ano seguinte, 1999, o primeiro balanço publicado pela Inditex trouxe finalmente uma foto do fundador da empresa. “Na rua, eu só quero ser reconhecido pela minha família, pelos meus amigos e pelos colegas de trabalho”, declarou Ortega, segundo a Forbes.
Apesar disso, Marta Ortega conseguiu também ir introduzindo gradualmente o seu pai como um rosto na vida pública espanhola. O fundador da Zara apareceu com a filha no dia do seu primeiro casamento com o equestre Sergio Álvarez Moya, em 2012. Também compareceu numa festa da empresa que Marta organizou quando ele completou 80 anos e, mais recentemente, no seu segundo casamento, com Carlos Torretta, que agora também trabalha na Inditex.
A Zara está presente em 96 países, distribuída por 6.654 lojas — algumas delas em coexistência com marcas de luxo como a Louis Vuitton, Chanel ou Dior, sobretudo nas grandes avenidas cosmopolitas. Atualmente, a Inditex dá emprego a mais de cinco mil pessoas só na Corunha. Por ano, a Zara vende mais de 450 milhões de artigos de roupa feminina. Em 2020, as receitas líquidas chegaram aos 14 mil milhões de euros.
Amancio Ortega é o homem mais rico de Espanha, o segundo mais rico da Europa e o 11.º a nível mundial, de acordo com cálculos da revista Forbes, tendo a sua fortuna sido avaliada em 64,8 mil milhões de euros este ano.
Quando Marta Ortega assumir o lugar à frente da Inditex, tornar-se-á a mulher mais poderosa (e mais jovem) no pequeno clube de mulheres líderes do Índice Ibex 35 da bolsa de valores da Espanha. A lista inclui Ana Patricia Botín, presidente executiva do Banco Santander, María Dolores Dancausa, CEO do Bankinter, Cristina Ruiz, CEO da Indra e, em quinto lugar, Beatriz Corredor, que dirige a concessionária espanhola Red Elétrica de España (REE).