“Vou em busca de Itália, que é terra de meus antepassados, e a minha raça vem do próprio júpiter. Atravessei o mar com vinte navios, sempre com a minha mãe a indicar-me a rota, mas já só me sobram sete, baldeados por ventos e vagas. E eis-me aqui, pobre e sem nome, a caminhar nos desertos da Líbia, expulso da Europa e da Ásia”. A fala, cheia de queixume, é de Eneias, o herói que empreende sem entusiasmo a missão de que foi providencialmente investido, e foi retirada do Livro I – “Os sobreviventes de Troia” – desta adaptação admirável da Eneida. Assina-a Carlos Ascenso André, exímio a subir e a descer a escala dos séculos. E a escada íngreme da linguagem.
Má estrela, partida apressada, canseiras marítimas, errância, frustração, naufrágios, sobras de embarcações, corpos exaustos ou boiando à tona da água, ímpetos de heroísmo. O sumário narrativo serve à primeira parte do clássico de Virgílio (Públio Virgílio Marão). É a história de Eneias e dos seus homens em pleno Mediterrâneo, ansiosos para alcançar terras de Itália, essa meta sempre mais além, depois de terem escapado ao mundo hostil de uma Troia em chamas. Mas poderia ser a história dos refugiados que no século XXI, em embarcações precárias, atravessam o Mediterrâneo. Como Eneias, são homens e mulheres vulneráveis e tantas vezes impotentes, enfrentando o desconhecido. “Uma espécie de poema de migração”, assim se assume a primeira parte desta Eneida adaptada para jovens por Carlos André, professor de línguas e literaturas clássicas da Universidade de Coimbra, a revelar-se um mestre também na arte das falas dialogadas.
Naquela que é sua primeira aparição, Eneias surge-nos como um náufrago, perdedor e necessitado, carecido de protecção e de meios, num retrato de medida humana habitualmente dissociado do heroísmo épico, a tornar mais difusa e elástica a nossa ideia daquilo que seja um herói. A imagem que se nos prende à retina é, aliás, a de um vencido.
O desembarque forçado da expedição troiana nas costas da Líbia, por onde transitam tantos migrantes na viagem rumo à Europa, e o que se lhe seguiu – Cartago e o acolhimento na corte da rainha Dido, contornos daquilo a que chamaríamos hoje um casamento-relâmpago – faz pensar numa longa e improvável lua de mel. Acontece que em contexto épico há um tempo para ficar e um tempo para partir. Eneias, o único herói épico que se esquece do seu projecto de heroísmo no regaço de uma mulher, terá de devolver um dote que não lhe pertence – o poder sobre os Cartagineses (Dido, entretanto, transferira para o Troiano as suas funções) – e declinar o estatuto do marido que ali não pode ser. A fala acusadora do deus Mercúrio, a recordá-lo disso mesmo, é bem um exemplo da fluidez que Carlos André empresta às palavras de Virgílio, mantendo-se ao largo da asfixia de um vocabulário alatinado: “– Então tu entregas-te agora à construção de uma cidade, feito marido? Esqueceste-te, ó desgraçado, do teu reino e da tua missão? Pois fica a saber que foi o próprio rei e pai dos deuses, Júpiter, quem a ti me mandou com ordens muito claras. Que planos pensas que tens? Estás aqui à espera de quê? Se já não te move o desejo de glória, pensa ao menos no teu filho, a quem está prometida Itália!”
Destinada a um público jovem, mas sem excluir leitores de todas as idades – bem ao contrário – , esta adaptação não amenizará o suicídio de Dido nem a descida de Eneias aos infernos, tão-pouco as imagens de dor e de morte dos que com Eneias fizeram caminho ou a daqueles com cuja vida se cruzou. A tragédia de Dido é talvez a mais conhecida, mas é apenas uma delas, a somar à da Camila. A bela amazona, ou à de Turno, rei dos Rútulos, cuja magnanimidade não foi suficiente para vencer um duelo que tinha há já muito um vencedor. Eneias, esquecido das palavras do pai (“respeitar os que se submetem”), “mergulha a espada no peito de Turno, a ferver em fúria.”
A ideia de preparar esta edição adaptada para jovens partiu do editor Francisco José Viegas, que, no seu apego aos clássicos, prometeu já aos leitores uma edição bilingue da Eneida de Virgílio, também com o selo da Quetzal. A Carlos André o repto fez soar as campainhas do sacrilégio e suscitou-lhe desafios que, disse ao i, “nunca tinha imaginado enfrentar. A primeira grande questão era o receio de dessacralizar um texto que para mim é sagrado. Se alguém para quem fazer isto era um risco grande de entrar no domínio do sacrilégio, esse alguém sou eu. A Eneida é o livro que mais me marcou, é um texto fantástico: estamos lá todos e a história que nos trouxe até aqui, o mundo que somos e que fomos.” E continua: “Este livro é a raiz do Ocidente, é a expressão da história do Ocidente”.
Carlos André diz ter escrito este texto, não apenas para os jovens, mas para todas as pessoas que têm dificuldade em ler um texto denso como é A Eneida, em 2020 vertida pelo professor para a língua de Camões. Mas tornar acessível a obra máxima de Virgílio, muitíssimo habitada, implicava a simplificação, sendo certo que “o resumo não simplifica, condensa”. Decidiu assim escrever este livro “em cima da minha tradução de A Eneida. À medida que construía, ia destruindo. Tratava-se de refazer a casa”. Optou Carlos André por não deitar a casa toda abaixo: “fiz parede por parede, peça por peça, metro por metro; ia convivendo com os dois textos, o texto velho e o texto novo. Não avançava para uma sala antes de ter refeito a sala anterior. Mas a todo o momento senti que era difícil.”
A somar à inicial e impecável “Nota explicativa”, seguida de um 'Who is who', um guião muito útil quando se trata de conviver com múltiplas figuras humanas, imortais de complicada biografia e geografias antigas, são muitas as qualidades que recomendam esta adaptação como via de acesso à epopeia latina. E resultam de um somatório não decomponível: o saber profundo do especialista em literatura latina, o trato íntimo com a epopeia de Virgílio, a favorecer um registo narrativo fluído, criteriosamente atento aos momentos essenciais da epopeia e ao seu encadeado, a sensibilidade do poeta que o autor também é. Carlos André sabe que a erudição acumulada é o seu capital, mas também sabe que esse capital deve ser controladamente gerido. Assinalável é o uso de uma linguagem acessível, por vezes muito próxima dos mais novos, pelos seus momentos coloquiais, pelo uso de um glossário comunicativo onde cabem verbos como “magicar”, “tramar”, palavras como “tino”, “doideira”, ou expressões como “cabeça a prémio”, sempre num hábil equilíbrio entre a voz de Virgílio e a voz moderna do autor em que o texto, na sua versão simplificada, se realiza.
O que mais visivelmente emerge nesta Eneida é uma força comunicativa que se traduz num ritmo bem movimentado, em acertadas escolhas lexicais, em homologias estilísticas (“[vulcano] o deus do fogo, das forjas e da fuligem”), em imagens adequadamente poderosas, mas também numa notável capacidade integradora, capaz de converter uma nota explicativa, ou um comentário erudito, num momento divertido para os leitores, que dos defeitos e da desdita das personagens retiram um perverso prazer: “Um casal estranho, se pensarmos que Vénus era a deusa da beleza, por ser a mais formosa de todas as deusas, e Vulcano era uma figura tosca e feia, coxo e vesgo, sempre coberto de fuligem, por gastar o seu tempo nas forjas onde se fabricavam os raios de Júpiter. Mas os antigos eram assim mesmo: para que a beleza excessiva não subisse à cabeça de Vénus, fora-lhe dado em casamento o mais feio de todos os deuses. O que pouca diferença lhe fazia, valha a verdade, já que Vénus estava sempre a ser-lhe infiel, com deuses e com humanos”.
É um livro de prosa desperta e desenfadada de elevada qualidade literária que sabe agarrar o leitor a uma das obras primas da literatura ocidental. Abandona o comentário especializado, os envios constantes à mais exigente cultura erudita e o exército das notas de rodapé, que não mata mas mói e desmobiliza a gente nova. Fazia falta.