Benfica-Sporting. Mais do que inimigos eram irmãos (parte II)

Benfica-Sporting. Mais do que inimigos eram irmãos (parte II)


De repente, aproveitando a crise que grassava no Sport Lisboa, o Sporting foi buscar oito jogadores ao adversário. A rivalidade acendeu-se.


(continuação da última edição)

O livro de Júlio Araújo, Meio-século de Futebol (1888-1938), é um grande repositório da realidade do futebol em Portugal nessa primeira década do século XX. Também nos socorremos dele para ir tentando ficar com uma ideia clara da génese desta rivalidade que marcou até aos dias de hoje a vida do país.

Orgulhoso das suas instalações e da sua sede, com lugar num edifício que era propriedade da sua família, ali ao Lumiar, José Holtreman Roquette sonhava agora com um grande “team” de futebol. O descontentamento dos jogadores da primeira categoria do Sport Lisboa entreabria-lhe uma porta que não tardou em abrir às escâncaras. De uma assentada, traz para o Sporting oito deles: José da Cruz Viegas, Emílio de Carvalho, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Daniel Queirós dos Santos e Henrique Costa.

Parecia o fim da linha para o Sport Lisboa, até porque a sangria não ficava por aqui. Manuel Mora, o guarda-redes, partiu para a Argentina; Fortunato Levy para Cabo-Verde; outros optaram por seguir a sua carreira no Ginásio Clube Português, no Grupo Sport Benfica, no Cruz Quebrada, no Académico de Lisboa, no Nacional, etc.

Deserção? Dessidência? Traição?

Ao longo dos anos, este episódio da vida dos dois clubes foi visto por diversos prismas. Um deles, o mais curioso, assumido por Cândido Rosa Rodrigues, declarando que não se poderia falar de dessidência ou de traição até porque não existia rivalidade entre Sport Lisboa e Sporting, e apenas entre Sport Lisboa e Internacional, o velho CIF.

Receio Temeu-se, assim, pela vida do Sport Lisboa. Terminada a época do futebol, entrava-se na época dos desportos de Verão. Os protagonistas eram os mesmos. Isto é: jogador de futebol que se prezasse, chegando o calor, dedicava-se a desportos sem botas, fosse ele a natação, a vela, o ciclismo ou o automobilismo.

E o sol parece ter auxiliado o olvido e cicatrizado feridas.

Um belo dia, Marcolino Bragança, um dos melhores jogadores das segundas categorias do clube, ainda um jovem estudante do 4º ano do Liceu, lançou a ideia, tão óbvia que parecia pecado ninguém ter feito eco dela até aí:

– Ouçam lá, e por que é que não passamos o segundo “team” a primeiro?

Era bem visto, sim senhor. Não houve quem se opusesse. Pelo contrário.

Fez-se o apelo geral. Juntou-se a linha dura dos resistentes: pouco menos de 30 rapazes empenhados em continuar com o clube. Houve até quem regressasse: gente que tinha ido para o Cruz Quebrada, o Sport Benfica, o Académico de Lisboa…

Os do Sporting não voltaram.

Félix Bermudes e Cosme Damião tomam as rédeas do clube que ressurgia. Todos se dispuseram ao pagamento da quota de dois tostões por mês. Félix Bermudes, escritor bem conhecido pelos seus poemas, peças de teatro e operetas – como foi o caso da famosa ‘O Timpanas’ – , um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores à qual presidiu durante 32 anos, num gesto magnânimo, ofereceu cinco mil réis para uma bola nova.

Aqui sim, o Benfica, que ainda não era completamente Benfica, começava a ver medrar as suas raízes populares. Bem ao contrário do Sporting.

Os ricos Ah, sim, o Sporting nascera em berço de ouro.

Se para os lados de Belém se lutava contra as dificuldades económicas crescentes, para os lados do Campo Grande a realidade era bem outra.

No final de um encontro contra o Carcavellos, por exemplo, no campo do Lumiar, foi oferecido um finíssimo chá às senhoras presentes, realizando-se em seguida numa das grandes salas da casa do Exmº Senhor Visconde de Alvalade, o avô de José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, um banquete no qual estiveram presentes todos os jogadores, a Imprensa e os delegados da Liga de Foot-ball.

Ah! No Sporting vivia-se bem. Cáspite! Era de estalo!

Tão de estalo que, numa exibição de abastança à qual nenhum outro clube tinha acesso, o Sporting fazia questão de apresentar uma bola nova em cada desafio. Em determinado encontro, durante o qual choveu torrencialmente, chegou mesmo a apresentar uma bola nova no início do desafio e outra por estrear após o intervalo. Das bancadas choveram “OHS!” de surpresa e admiração.

Júlio Araújo foi testemunha de tais episódios, pelo que não há que duvidar das suas palavras.

Como se vê, tanto um clube como o outro foram fundados por gente de sociedade. Enfim, estávamos ainda nos anos da monarquia, e haveria de fazer a ligeira distinção entre sociedade e fidalguia. Aceitemos esta diferença como boa: gente de sociedade em Belém, gente fidalga no Campo Grande.

Desde cedo, o Sporting pretendia assumir a sua costela elitista. Enquanto no Laboratório Franco – Especialidades Farmacêuticas, a primeira acta de constituição do Sport Lisboa era exarada num papelucho vulgar de Lineu, a ideia de fundar o Sporting surge para os lados de Belas, onde Francisco Gavazzo realizava uns piqueniques, festas dançantes, e umas partidas de ténis e de “foot-ball” que reuniam, segundo a imprensa da época – “personalidades da melhor sociedade de Lisboa”.

Les Uns et les Autres, como no filme de Claude Lelouch.

José de Alvalade era decididamente um visionário.

Sonhava com um clube “grande entre os grandes”. E propunha-se chamar-lhe Grande Sporting Club de Portugal.
Era preciso dinheiro? Problema resolvido: o avô deu-lhe 200 mil réis. E graças à carteira bem recheada de Alfredo Augusto das Neves Holtreman, o Visconde de Alvalade, o Sporting nasce já com campo próprio e tudo – na Alameda do Lumiar, hoje Alameda das Linhas de Torres, no Sítio das Mouras.

Uma diferença que começava a mexer com o orgulho da rapaziada de Belém. E a fomentar as raízes da maior rivalidade da história do futebol português. Vinham aí tempos de luta rija, Que se prolongaram até hoje, 114 anos depois. De tal forma que cada Benfica-Sporting, como o que se disputa amanhã, no Estádio da Luz, pelas 21h15, nunca deixa ninguém indiferente. Pelo menos na cidade de Lisboa, esparramada à beira Tejo sob a luminosidade de um céu inconfundível. Azul-ferrete, como lhe chamava o divino Eça.

(continua na próxima edição)